O Centro de Arte e Cultura da Fundação Eugénio de Almeida, em Évora, mostra o trabalho multidisciplinar de uma vintena de artistas femininas portuguesas numa exposição colectiva imperativa. A visitar até 1 de Julho.
“Deus” é o título deste tríptico da autoria de Clara Menéres
Chama-se WHA! A sigla de We Are Here! A manifestação eclético-artística – se assim o podemos designar – de duas dezenas de mulheres que expressam a sua relação com a arte através da instalação, da bio-arte, da escultura, da pintura, do desenho, da gravura e da fotografia.
São elas Alice Geirinhas, Carlota Jardim, Célia Domingues, Clara Menores, Coca Froes David, Cristina Oliveira, Cristina Tavares, Estrela Faria, Joana Gancho, Leonor Serpa Branco, Margarida Lagarto, Maria Leal da Costa, Marta de Menezes, Noémia Cruz, Rita Vargas, Sónia Godinho, Susana Marques, Susana Pires, Susana Piteira e Virgínia Fróis. A curadoria é de José Aberto Ferreira, director do Centro de Arte e Cultura da Fundação Eugénio de Almeida (CACFEA), localizada no coração da cidade de Évora. Estão (ainda) abertas as portas para respirar, dançar, sentir e criar cumplicidade com cada obra e arte destas artistas.
“Porque não há centro sem periferia”, falemos de Évora como entrada em cena de lugar de convergência do resultado da pluralidade de trabalhos assinados apenas por mulheres que, de uma forma ou de outra, têm uma ligação estreita com o Alentejo, isto é, com a periferia. “São 20 mulheres ora eborenses, ora com relações a Évora em algum momento das suas vidas, e com uma disparidade de idade a realçar.”
Impõe-se a pergunta: qual a razão para uma mostra feminina? “A minha ideia não é original, mas o tempo respira estas questões que, em francês, se dizl’air du temps – expressão que está relacionada com uma determinada época – e talvez, por isso, estejamos mais sensibilizados para a criação feminina e para a sua valorização e integração nos centros”, esclarece José Aberto Ferreira. É, no entanto, um acaso quando lhe perguntamos se terá a ver com conjuntura actual no que ao papel da mulher na sociedade diz respeito. “É uma espécie de sintonia na sensibilidade do tempo. Há mais gente a trabalhar no recenseamento da criação, no pensamento das mulheres. Esta exposição não resulta desse conjunto de circunstâncias, mas é parte das declinações desta visão mais global, que não estava à vista na primeira opção, porque não vinha responder ao tema da periferia, mas quando se desenhou, vi que fazia parte deste tema”, assegura.
À lista inicial somaram-se outros nomes inerentes à multidisciplinaridade artística. “Podíamos ter outras mulheres – embora haja aqui as incontornáveis – mas foi tudo escolha de relações de presença, outras de ausência”, declara. Além disso, importa realçar o ofício de curador numa exposição, a articulação com cada artista e com quem colecciona as suas obras, no caso de Estrela Faria, sobre quem falaremos mais à frente. “Há duas pessoas deste grupo que conhecia menos bem, embora conhecesse os seus trabalhos públicos, mas a hesitação nunca passaria por aí. A exposição é tematicamente aberta, ou seja, não lhes propus que trabalhassem o feminino. Por isso, trouxeram o que quiseram.”
O desfile da criação no feminino
“Ama de Casa”, a obra Célia Domingues feita a partir três materiais: caramelos, arame e cordel
José Alberto Correia começa por falar acerca de Estrela Faria (Évora, 1910-1976), artista eborense que “corresponde à segunda geração de artistas modernistas. Fez pintura, cerâmica, azulejos, painéis publicitários, desenho de moda, serigrafia, postais… Apesar de ter sido uma figura notável da criação portuguesa, está permanentemente ausente das grandes narrativas da História da Arte Portuguesa da primeira metade do século XX por preconceitos ideológicos, em primeiro lugar, e por preconceitos de género, em segundo”, sublinha José Alberto Ferreira. Fez parte do grupo de artistas que colaborou com António Ferro na produção da imagem do regime, realidade que condenou esta artista ao esquecimento apesar do seu percurso marcante no universo das artes. “Em 1959, Estrela Faria fez aqui, em Évora, uma peça, a qual incluía dois nus, o que provocou um escândalo e causou uma certa contundência e uma mágoa da qual Estrela (Faria) nunca esqueceu. Uma dessas peças, chamada ‘Torso’ está na Gulbenkian. A outra desapareceu. Para a exposição escolhi dois grandes cadernos de desenho vindos de Paris onde há a evidência são os nus como exercício plástico, de 1948, tema artístico recorrente, e uma aguarela muito bela, a meu parecer que reforça o nu no trabalho da Estrela (Faria), além de quatro óleos desse período de Paris e um auto-retrato”, descreve o curador da mostra.
Clara Menéres (S. Vítor, Braga, 1943-2018) “é uma mulher guerreira e com particular relevo na História da Arte Portuguesa, sobretudo na questão feminina com importância nos anos passados”. Apesar da concluir a licenciatura em Escultura, na Escola Superior de Belas-Artes do Porto, em 1968, a sua estreia numa exposição individual data um ano antes, em 1967, e doutorou-se na Universidade de Paris VII em 1983. A actividade profissional está associada à Escola Superior de Belas-Artes do Porto, à Escola Superior de Belas-Artes de Lisboa (actual Faculdade de Belas-Artes da Universidade de Lisboa), onde foi professora e Presidente do Concelho Directivo, e à Universidade de Évora, como Professora Associada e, mais tarde, como Professora Catedrática. As exposições individuais e colectivas tomam conta do seu currículo até 1991.
“Alice Geirinhas, uma eborense que quase ninguém conhece como tal”, nasceu em 1964. O desenho e demais disciplinas das artes são uma constante no seu trabalho artístico iniciado na década de 1980, sendo esta a primeira vez que expõe as suas obras na sua cidade berço. É doutorada em Arte Contemporânea pelo Colégio das Artes da Universidade de Coimbra e professora auxiliar no Departamento de Arquitectura, da Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade de Coimbra. No CACFEA, a artista evoca os sete dias da criação do mundo em sete momentos retratados no espaço exterior, com vista para o Templo de Diana. “É uma artista com relevo nacional e artístico para estar aqui”, defende José Alberto Ferreira.
“A Noémia Cruz apresenta uma temática muito relacionada com as questões de igualdade de género. Acresce que trabalha com um universo que a arte nem sempre aceita muito bem: a cerâmica”, reforça o director do CACFEA. Quem conhece o mundo das artes, poder-se-á dizer que a cerâmica é uma disciplina arredada do centro das atenções. Define-se, muitas vezes, “como um trabalho de artesanato, em contraposição com o da nobreza da arte”, justifica. Contudo, a sua obra de Noémia Cruz (Santana da Serra, Ourique, 1948) “tem uma dimensão histórica muito grande”, enaltece o nosso cicerone.
A estas artistas reconhecidas, José Alberto Ferreira fez questão de acrescentar outros nomes de mulheres que estão alimentar o seu caminho nas artes. É o caso de Susana Pires (Évora, 1980). Licenciada (2004) e Mestre (2012) em Pintura pela Faculdade de Belas-Artes da Universidade de Lisboa, propõe três desenhos em volume. “Não são planos, são desenhos-escultura, que exige ao espectador que dance com eles.” A forma como estão expostas exige esse comprometimento, essa cumplicidade entre o visitante e a peça. “Aliás, há peças aqui que carecem que o espectador se posicione a elas não apenas como quem encontra o ponto de vista e fique a contemplar a obra, mas que se relacione fisicamente com elas.” Trata-se, no fundo, de uma espécie de convite impossível de declinar. “É um venha ver, respirar, dançar, sentir, criar cumplicidade”, acrescenta. Joana Gancho (Lisboa, 1980), licenciada em Pintura pela Faculdade de Belas-Artes da Universidade de Lisboa (2004), vive e trabalha em Évora. Ambas participam nesta exposição com criações que abarcam uma transversalidade de perfis enriquecedor. Já Carlota Jardim (Lisboa, 1995) é a mais jovem artista e finalista da licenciatura em Pintura, da Faculdade de Belas-Artes da Universidade de Lisboa. As artes plásticas já a levaram a viajar a Londres e Balbao, mas também a Évora.
As três jovens artistas complementam um núcleo de descoberta, de desafio. Em simultâneo, preenchem “um espaço de visibilidade e de oportunidade, e também de ‘recentramento’ da criação com assinatura feminina”, daí a necessidade de as incluir nesta exposição.
Uma vez que não existe um alinhamento pré-definido falemos, agora de Marta de Menezes (Lisboa, 1975). Licenciada em Belas-Artes pela Universidade de Lisboa, Mestre em História de Arte e Cultura Visual pela Universidade de Oxford, no Reino Unido, e doutoranda na Universidade de Leiden, na Holanda. É uma bio-artista, ou seja, a sua obra incide na intercepção e relação entre ciência e arte. Para José Alberto Ferreira, esta vertente “cria uma novidade no plano artístico onde as mulheres têm sido deficitárias”. Por isso, quis trazê-la e porque Marta de Menezes executa este trabalho “de maneira soberba”.
“Fóssil” ou os” restos mortais” em cerâmica de uma peça anelar, a qual germinou e, com o tempo, enrugou, exibida na Sala do Tribunal. Será esta uma alusão ao corpo feminino por Virgínia Fróis?
Virgínia Fróis (Rio Maior, 1954) “é ceramista e professora cujo percurso denota um grande enfoque na área da cultura”. É professora da Faculdade de Belas-Artes da Universidade de Lisboa e membro da Universidade de Investigação VICARTE – Vídeo e Cerâmica para as Artes (Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade Nova de Lisboa). “Tem feito um percurso um pouco por todo o mundo.” Esta é a primeira vez que está a expôr em Évora, apesar de estar representada na colecção da Universidade de Évora, entre outras instituições.
Rita Vargas (Évora, 1981) é, por sua vez, é o exemplo perfeita da dicotomia da relação de pertença ou não pertença com a cidade que a viu nascer. Licenciada em Artes Visuais pela Universidade de Évora e pela Winchester School of Arts, da Universidade de Southampton, no Reino Unido, Rita Vargas esteve no Japão e na Finlândia, de onde regressou para realizar uma residência artística. Seguiu-se Hamburgo, Alemanha e Finlândia onde, actualmente, vive e trabalha. “Vive da sua arte”, diz-nos o director do CACFEA. Na exposição, a peça-chave é o vídeo intitulado “Reconciliação”. “É um regresso e uma reconciliação, um gesto muito interessante precisamente nas declinações de toda a periferia. É o espírito dessa deslocação de centro”, explica José Alberto Ferreira.
Já Coca Froes David (Évora, 1955) mostra o seu mundo plástico. “Quem a conhece reencontram-na aqui.” Iniciou o curso de Pintura na Escola Superior de Belas-Artes de Lisboa, passou por Los Angeles, nos Estados Unidos, e pela capital francesa, Paris, onde o trabalho incidiu na ilustração e em cartões de tapeçaria. Foi professora, integrou na equipa de cenografia e de guarda-roupa em espectáculos e ilustrou livros para o atelier do designer português Henrique Cayatte.
Célia Domingues (Évora, 1978) vive e trabalha na cidade de Londres, no Reino Unido. Estudou Artes Plásticas na Universidade de Lisboa, na Escola Maumaus, também na capital portuguesa, e no Chelsea College of Art & Design, onde frequentou e concluiu o mestrado em Artes Visuais (2007). No sue percurso profissional constam exposições regulares com a permanência do cénico tal como as artes plásticas o permitem.
Cristina Oliveira (Porto, 1963) estudou Arquitectura (1984-1988), na Escola Superior Artística do Porto. Na lista de aptidões soma a pintura, o mixed-media, o design de mobliário, a escultura e a foto-performance. Tem fotografias compiladas num livro (2010), é colaboradora da Getty Images desde 2013. Foi co-fundadora da Galeria Lobo Mau (2008) e colabora assiduamente com a residência artística Córtex Frontal (Arraiolos), desde 2015, sendo a fotografia a eleita para a “WAH!”, no CACFEA.
Licenciada em Pintura pela Escola Superior de Belas-Artes de Lisboa, Cristina Tavares (Évora, 1963) é professora de Educação Visual na Escola Básica Santa Clara, em Lisboa. Participou em cerca de uma centena de exposições colectivas e individuais, co-fundou a Galeria Heart, na década de 1990 e realizou ilustração e grafismo para publicações. A poesia escreveu, esta artista plástica, em três livros. É conterrânea de Maria Leal da Costa (1964), que conviveu, desde sempre, com o mundo das artes e para quem a Escultura é a protagonista da sua carreira e das suas exposições iniciadas em 1994. Tem um livro publicado por ocasião dos seus 25 anos de trabalho nesta área: “Maria Lea da Costa – Escultura”. Já Sónia Godinho (Évora, 1983) estudou Pintura na Faculdade de Belas-Artes da Universidade de Lisboa, arte que tem realçado no seu trajecto profissional e com uma pitada de humor que vale a pena observar, esmiuçar.
Leonor Serpa Branco (Lisboa, 1961) também teve, de alguma maneira, ligação com a cidade de Évora, com destaque para a exposição individual na Galeria Évora Arte (1992) ou na Galeria Municipal de Montemor-o-Novo (1994), na periferia, portanto, mas com grande ligação à cidade Património Mundial da UNESCO.
De Lisboa são Susana Piteira (1963), licenciada em Artes Plásticas – Escultura, da Escola Superior de Belas-Artes (1990), e Susana Marques (1974) licenciada em Pintura, pela Faculdade de Belas-Artes de Lisboa (2001). Susana Piteira tem participado e organizado exposições, conferências, simpósios e workshops nacionais e internacionais no âmbito das artes; leccionou na Universidade de Évora e na Faculdade de Belas-Artes da Universidade de Lisboa. Actualmente, é assistente convidada da Faculdade de Belas-Artes da Universidade do Porto. Com quase dez anos de diferença, Susana Marques integrou a equipa do Projecto Ruínas, entre 2000 e 2007 e, em 2013, foi a vez de criar o projecto Pictógrafos baseado na investigação artística e de desenvolvimento, e ligado a crianças.
As visitas e a percepção do público
“Luxuriae”, obra de Susana Piteira, exposta no Gabinete do Inquisidor, consiste numa fina peça em mármore meticulosamente trabalhada, na qual são projectadas imagens do tecto deste espaço exíguo
“Quando fazemos as visitas acompanhadas não há a sensação de unidade formada, mas há a sensação de diversidade e a percepção de que o visitante sabe que está a ver o trabalho de 20 mulheres artistas. Cada caso tem as suas declinações, as suas variações e abordagens que estão com a assinatura individual, sem um tema definido.” Afinal, não se trata de uma exposição com um tema específico, daí a não preocupação em implementar a unidade dentro deste circuiro. “Em cada sala há um universo da criação e eles, ainda assim, tem uma coerência, porque as razões destes trabalhos estarem aqui são suportes suficientes que juntar estas mulheres de maneiras tão contrastantes”, adianta o curador.
Quando pedimos a José Alberto Ferreira para explicar o título, disse-nos que a primeira temática proposta foi “You Are Here!”, “pensando na temática das periferias, dos mapas, sendo claro que, na lógica dos mapas, se dissesse ‘você está aqui’. Mas, depois, olhámos para o valor colectivo que a exposição tinha e vimos que ‘You Are Here!’ teria o You como vocês ou tu. Por isso, passámos para We que dá um corpo mais colectivo, o que me pareceu mais justo. Quando introduzi esse elemento na frase, o mapa deixou de fazer sentido. Mas o We tem mais força no português e no inglês na frase ‘We Are Were‘, que tem um poder e um enunciado festivo, como se de um prazer se tratasse.” E uma celebração da arte a visitar até 1 de Julho, no Centro de Arte e Cultura, no Largo do Conde de Vila Flor, em Évora. A entrada é livre de terça-feira a domingo, entre as 10 e as 18 horas.
Enoteca Cartuxa: Depois do espírito vem o estômago
Pátio interior da Enoteca da Cartuxa
Após uma tão enriquecedora exposição, nada melhor do que acalentar o estômago na vizinha Enoteca da Cartuxa, agora com novos pratos para desfrutar e acompanhar com os vinhos produzidos sob a chancela da Fundação Eugénio da Almeida.
Amêijoas de coentrada
A cozinha, para quem não sabe, é baseada no receituário alentejano, com incidência nos petiscos, que resultam numa cozinha mais viajada pelo país. É o caso das iscas de coentrada e das amêijoas de coentrada, as boas novas da carta desta estação.
O tradicional ensopado de borrego
Nos pratos principais, reina o ensopado de borrego e o arroz de bacalhau na boas novas saídas das mãos do chef. A consultoria é do chef Vítor Sobral que, para agora, escolheu o arroz doce para integrar a lista de sobremesas liderada pelo pudim de azeite. É ir de segunda-feira a sábado, das 10 às 22 horas, e ao domingo, das 12 às 15 horas.
Quem alinha? Bom apetite! •