Responsável pela cozinha do The Oitavos, hotel localizado nas dunas quase lunares da Quinta da Marinha, em Cascais, Cyril Devilliers regressa ao trabalho com o foco no produto e no produtor locais, e mais centrado na “cultura portuguesa” à mesa.
Natural da Normandia, região situada no Norte de França, é no seu país natal que Cyril Devilliers inicia o seu percurso profissional na cozinha. Ao rumar a Espanha, leva na bagagem a experiência somada no Hôtel Les Prés d’Eugénie e no Restaurant La Ferme Aux Grives, ambos em Eugénie-les-Bains, bem como no La Compagnie des Comptoirs, em Montpellier, tendo o Girasol, de Joachim Koerper, em Moraira, Alicante, como destino. Segue-se o Eleven, em plena cidade de Lisboa, em 2005, em resposta ao desafio do chef alemão que o deixa escapar, ao fim de dois anos, para o Penha Longa Resort, na poética Sintra. Em 2010, decide ir para mais perto do mar, ao aceitar o convite de chef executivo da cozinha do The Oitavos, onde o Ipsilon é um verdadeiro espaço aberto para as enigmáticas dunas da Quinta da Marinha.
A que se dedicou a fazer durante estes últimos meses?
A tratar da minha família, coisa que nunca tinha acontecido até agora. O meu trabalho esteve sempre à frente de tudo e, por isso, deu para restaurar algum equilíbrio. Aproveitei, também, para retomar as minhas receitas do caderno pessoal e actualizá-las – algumas delas tinham mais de 25 anos – e estive a ler imensos livros de cozinha, claro!
Se lhe pedisse para falar sobre o seu percurso profissional, o que diria acerca destes últimos tempos?
Têm sido tempos inacreditáveis, com uma sensação de amputação, sem controlo nenhum sobre a situação e sem saber quando nem como iria poder voltar a cozinhar. Sem falar da parte financeira. Tem sido uma situação realmente muito difícil, sobretudo mentalmente. A actividade física consegue-se manter, mas sentir a cabeça a mil à hora e não ter onde aplicar as ideias, a criatividade… É muito complicado e frustrante.
Foi fácil retomar a relação com os fornecedores ou esta manteve-se durante a interrupção temporária no Ipsylon?
Mantive contacto com muitos deles. Até para desabafar e por solidariedade. Fazia as compras para minha casa, sabendo que também estava a ajudá-los a manter alguma actividade.
Que pratos desenvolveu para esta nova temporada?
Nada muito específico. Voltei com vontade de fazer as coisas de maneira diferente, de trabalhar cada vez mais com o produto/produtor local, convencer os produtores a produzirem algo especial como um bom pato, por exemplo (já trabalho nisso há algum tempo), recentrar o foco no essencial, numa cozinha com a cultura portuguesa ainda mais presente, mas trabalhada com a minha escola e as minhas técnicas.
Teve de implementar mudanças na sua cozinha, no sentido de abranger um público mais lato, substancialmente portugueses, ou a estratégia é cingir o serviço a um grupo mais restrito de clientes? Como explica esta decisão?
Não tive de mudar nada. Sempre trabalhei com o produto local e com a cozinha tradicional do país onde me encontro. Esse é o fundamento da escola francesa: ir buscar perto, com qualidade, e tirar partido da sazonalidade dos produtos. Isso funciona tanto para o cliente estrangeiro em busca de cultura local, como para o cliente local em busca de confiança e de sabores conhecidos, mas bem trabalhados e consistentes. Saber que aqui se encontra o melhor recheio de sapateira ou a melhor salada de polvo, uma patanisca de caras de bacalhau, sempre óptima, ou uma pescada au Meunière com puré e molho de manteiga fresquíssima. Mesmo uma simples salada de estação garantidamente crocante e cheia de vida.
Qualidade. Criatividade. Preço. Como é a sua cozinha e como vê o futuro do sector da restauração a partir destas três palavras?
A relação qualidade/preço sempre foi uma prioridade para mim. Cobrar o preço justo por um produto de elevada qualidade servido com igual competência. Vejo isso como a obrigação de qualquer profissional que quer conquistar um cliente, sem esperar nada em troca que não a sua felicidade e a sua fidelização. Um cliente tem de receber valor pelo preço que paga. E esse valor está no produto, na confecção e no serviço. A relação qualidade/preço continuará a ser, na minha opinião, a chave do sucesso, bem como estarmos cada vez mais próximos dos nossos clientes, sermos mais autênticos. Os cozinheiros, mesmo os que chegam a chef, são “artesãos”, como o pasteleiro, o canalizador ou o carpinteiro. Depois existem os bons profissionais que querem dar o melhor aos seus clientes e os outros que não se importam com isso. Eu cobro, basicamente, o preço certo pelo valor entregue ao cliente e também para que as minhas equipas possam ter um salário decente, para darem o seu melhor e continuarem connosco.
Quão desafiante se tornou este último ano no percurso do chef?
Como já referi antes, o maior desafio foi manter a fé em que tudo o que iria retomar mais cedo ou mais tarde, e a vontade de fazer mais e melhor. Foi um período muito difícil. Quando estamos cansados, basta deitarmo-nos mais cedo e dormir, mas quando sofremos uma desaceleração de ritmo com esta intensidade, é muito mais complicado. Além disso, percebi que além de cozinhar, comer, beber e trocar informações e conhecimentos com os meus fornecedores, não encontrei nenhum hobby que me satisfizesse. Nem andar de bicicleta nem correr. Nada conseguiu colmatar o vazio de não poder exercer a minha profissão. O que faço é a minha verdadeira paixão. Esta interrupção longa e forçada foi um tormento. A minha reforma vai ser complicada! [risos]
+ The Oitavos
© Fotografia: D.R.