A gastronomia, das páginas dos livros à sétima arte

A comida é das mais inebriantes temáticas, pelo prazer e pela partilha, tal como a acção que se desenrola à mesa, palco de conversas, decisões, celebrações ou simplesmente do desafio constante da procura de um segredo há muito guardado, e, já agora, motivo para ir ao cinema, com estreia marcada de “Delicieux”, para 19 de Maio.

Comecemos pelos livros.


Coisas que eu Sei

Partilhar é a palavra que melhor define este livro de Maria de Lourdes Modesto. Grande conhecedora do receituário de todas as regiões do país e figura de destaque, na década de 1960, no que à arte de cozinhar diz respeito, a grande “diva da gastronomia portuguesa”, designação pela qual ficou conhecida, reúne, neste livro, crónicas, com o objectivo de enaltecer a importância da tradição à mesa, mas sem exagerar na inflexibilidade “a qualquer mudança”.

Munida das palavras certas e da escrita simples, Maria de Lourdes Modesto recorda os sabores e os aromas de infância, no Alentejo, e a importância do pão nos pratos de tão enorme região, seja na dimensão, seja na cozinha, e, porque não, nas sanduiches. Das sopas à sobremesa, passando pelos pratos principais, chama subtilmente à atenção, para a crescente importância a atribuir aos produtos da estação, como o feijão-verde, em Setembro, por exemplo. 

O protagonismo do tomate, no Verão, e das saladas, dos folares transmontanos; os benefícios do iogurte, a introdução da curgete na nossa alimentação, o gengibre e a ancestral tempura, no ponto de preferência. E nada há que enganar, até porque receitas exemplificativas não faltam! Sem esquecer o que o mar nos dá. 

Nos doces, há o mel, que fora, mais tarde, substituído pelo açúcar, os figos e as castanhas. É dado igualmente palco à laranja, com o seu contexto histórico, o arroz doce, o verdadeiro pudim flan, a desmistificação do enredo criado em redor dos crepes Suzette e a marmelada de Odivelas, que partilha sem pudor, pois há que imortalizar o passado, mesmo à mesa da ceia natalícia, que termina esta viagem de fazer crescer água na boca.

Páginas: 196
Editora: Leya/Oficina do Livro
Preço: €21,90 ou €15,99 na Apple Livros (versão portuguesa)


À Portuguesa – Receitas em livros estrangeiros até 1900

Virgílio Nogueiro Gomes, docente, investigador na área da alimentação e gastrónomo, expõe um primoroso repositório de receitas de cá, publicadas em impressos além fronteiras. Este longo desfile de puro prazer traduz-se numa viagem entre 1604 e 1900, em que o grosso das receitas eram apresentadas em texto corrido, ou seja, sem indicação prévia dos ingredientes. 

A título de exemplo, o escritor dá a conhecer a receita original sobre “Perdizes na panela à portuguesa” ou “Uma ave à portuguesa”, ou os escritos sobre “Como fazer tartes portuguesas para banquetes”, sem esquecer a “Nata à portuguesa”. Junte-se o lúcio-perca, o esturjão e a lampreia, peixe de rio outrora mais consumido, e faça-se a festa!

A maioria destas narrativas gourmands consta em livros de língua francesa, com a assinatura de grandes nomes da cozinha à época, com a particularidade de haver um repositório de várias receitas com laranja, talvez graças à exportação registada, entre finais do século XVIII até finais do XIX, nomeadamente, a partir das ilhas de São Miguel, Terceira e São Jorge, nos Açores, para o mercado anglo-saxónico. Em quartos, em metades ou inteiras, em aguardente ou para fazer “Licor de Portugal”, em marmelada, sem desperdiçar a casca, muito há para descobrir neste compêndio de culinária de Virgílio Nogueiro Gomes. Para o fim, estão as referências do Vinho Madeira e do Vinho do Porto, em sorvete.

Páginas: 200
Editora: Marcador
Preço: €16,90


A Cozinha Inglesa de Miss Eliza

Mergulhemos novamente no século XIX, época em que as mulheres das famílias abastadas estavam impedidas de entrar na cozinha. Aliás, era de mau tom pôr os pés em tão reduto lugar de qualquer casa de “boas famílias”. O convite é feito pela escritora inglesa Annabel Abbs, que nos mostra a determinação e o arrojo de uma mulher solteira, pertencente à alta sociedade britânica, em perseguir o seu sonho, ser poetisa. Eliza Acton, que, sem deixar a poesia, decidiu escrever receitas, confeccionadas a par com Ann Kirby, o seu braço direito – imagine-se! – na cozinha e igualmente personagem fulcral neste romance, graças à sua perspicácia e maneira de descrever os seus sentimentos, sempre que provava uma receita nova.

Ao longo de uma década, as duas mulheres seleccionaram produtos, experimentaram e registaram medidas e tempos de cozedura, que julgaram ser os mais adequados a cada prato. Fosse entrada, peixe, carne ou sobremesa. Tudo era feito com o maior rigor e descrito da forma mais sublime possível, como se de um bailado se tratasse, ou não fosse o acto de cozinhar uma experiência inebriante, apaixonante e um desafio constante.

Em paralelo, Eliza Acton aprendeu truques e absorveu recomendações, à mesa, onde degustava cada prato, com a precisão de um relojoeiro e a delicadeza superior de um “Lago dos Cisnes”. E até recebeu conselhos de um chef francês, para quem as especiarias eram o seu maior pesadelo na cozinha. Mas esta narrativa não fica por aqui, ou não fosse, de facto, Eliza Acton a mulher que mudou o universo da escrita relacionada com os livros de culinária modernos.

Páginas: 368
Editora: Leya/Asa
Preço: €17,50 ou 12,99 na Apple Livros (versão portuguesa)

Benjamim, Louise e Piérre Maceron são os impulsionadores da criação do espaço de restauração em França… no filme


Delicieux

Terminemos esta epopeia das letras, com o novo filme de Éric Besnard, com estreia marcada para amanhã, dia 19 de Maio de 2022, nos Cinemas NOS. Chama-se “Delicioso” e o nome faz justiça a esta película da sétima arte. A história começa na cozinha do castelo do Duc de Chamfort (Benjamim Lavernhe), onde o chef Piérre Maceron (Grégory Gadebois) está a colocar minuciosamente finas rodelas de batata e trufa numa massa, que, terminada, dá origem a uma empada delicadamente decorada. A acção desenrola-se no ano de 1789, época em que ambos produtos, assim como os demais colhidos sob a terra, não eram servidos à mesa da Nobreza, da Realeza e do Clero. Tão deliciosa criação é, precisamente, a razão do despedimento do chef francês do Châteaux de Chamfort, ou não fossem os tubérculos cingidos à alimentação do povo. É aqui que começa toda a acção, com Piérre Maceron a regressar a casa onde nasceu, agora em ruínas. Quem o recebe é Jacob (Christian Bouillette), caçador e amigo de longa data, que, mais tarde ensina Benjamim (Lorenzo Lafebvre) a aprender a arte de caçar. Entretanto, entra em cena Louise (Isabelle Carré), com o intuito de aprender a cozinhar com o famoso chef Maceron. 

A casa devoluta, localizada numa envolvente bucólica onde, hoje, é muito procurada por quem tanto aprecia o sossego, a pouco e pouco, vai mudando, tornando-se cada vez mais acolhedora. Simultaneamente, toda a história se desenrola, em redor da redescoberta do sabor naturais dos alimentos frescos, elevando a comida ao mais celestial patamar do prazer de estar à mesa, até a própria casa se transformar num restaurante, com cozinha aberta para a sala, na região francesa do Cantal, a poucas semanas da Tomada da Bastilha, no ano de 1789. Assim, a partilha de tão deleitosa experiência passa a ser servida à mesa e a transpor a fronteira das classes sociais mais abastadas, a preços ajustados, numa alusão à criação do primeiro restaurante em França. A comida que se vê no grande ecrã é preparada sob a consultoria dos chefs historiadores de comida Thierry Charrier e Jean-Charles Karmann. O filme é uma inspiração, para quem possui o dom absoluto de surpreender quem come, recebe os conselhos de bom grado, de quem tanto gosta, e se mune de determinação, para concretizar o sonho: servir a felicidade à mesa! E numa paisagem bucólica, que, no entanto, é real.

+ Cinemas NOS

Boas leituras e bons filmes!


© Fotografia dos livros: João Pedro Rato
Legenda da imagem de entrada: A sala do restaurante, no filme “Delicieux”

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