A cozinha, o copo, a perfumaria e as artes deles

O que acontece quando um chef, um mestre de blends de chás, infusões e tisanas e uma perfumista se juntam? A resposta está num jantar no Contemporâneo, o restaurante do MACAM Hotel, em Lisboa. O encontro gastronómico reuniu, respectivamente, Tiago Valente, Miguel Moreira, da Infusões com História, e Cláudia Camacho.

MACAM é sinónimo de Museu de Arte Contemporânea Armando Martins, palco de uma multiplicidade de obras-primas abrangidas pelas tendências artísticas datadas da segunda metade do século XX até hoje. A mesma sigla também é o nome da unidade de cinco estrelas instalada no antigo Liceu Rainha Dona Amélia, em Lisboa, recentemente inaugurado, o MACAM Hotel.

Sem deixar a arte de parte, mas agora numa tónica mais efémera, recomenda-se a ida ao Contemporâneo, onde a equipa de cozinha conta com o saber-fazer do chef Tiago Valente. Eis o anfitrião do jantar de um sábado e o autor do “Menu dos sentidos”, constituído por sete momentos, os quais foram acompanhados por igual número de blends divididos entre chás e infusões. Estas foram pensadas, doseadas e feitas ao vivo por Miguel Moreira, cofundador da Infusões com História, “um projeto diferenciador e um dos parceiros do MACAM”, declara Tiago Valente. Cláudia Camacho, a única mulher perfumista num pequeno universo de três mestres com este ofício, em Portugal, que conduziu os presentes por uma viagem sensorial, no sentido de reforçar que o olfato e o paladar são indissociáveis. 

Foi o que aconteceu à mesa do Contemporâneo, onde o desfile de pratos harmonizados com chás e infusões foi uma estreia, evento gastronómico feito à imagem que Vera Cordeiro, diretora-geral do MACAM Hotel, quer promover no restaurante.

Matéria-prima

O “Menu dos sentidos” seguiu a linha do Contemporâneo. Isto é, parte da cozinha é fornecida pela horta existente nas traseiras do MACAM, criada no âmbito da “sensibilização da administração em relação ao biológico e ao produto em si”, afirma Tiago Valente. As boas práticas ligadas à sustentabilidade determinaram a que recorressem à horta do oitocentista Palácio Correio-Mor, em Loures, propriedade da casa, onde a produção de legumes é uma realidade. Ou seja, há que “desenvolver o produto, enobrecer o produto e o trabalhar o menos possível”, acrescenta o chef. 

Acrescem o trigo Barbela, os peixes que habitualmente não constam na carta da maioria dos espaços de restauração e o arroz carolino, entre outras matérias-primas nacionais. “Desde o primeiro dia que queremos que seja um regresso às raízes, um palco de regresso às coisas simples”, destaca David Trovão, diretor de F&B (Comidas e Bebidas) do MACAM Hotel.

A mesma filosofia é seguida na Infusões com História, cujos produtos são feitos a partir de “matéria-prima portuguesa, com certificação biológica e kosher, e uma pegada carbónica baixíssima”, em prol da estabilidade ambiental. Neste contexto, Miguel Moreira destaca ainda a utilização de papel reciclado e reciclável e tinta de água. O projeto envolve ainda “pequenos produtores localizados em território de baixíssima densidade”, no sentido de estimular a economia local e contribuir para essas comunidades.

Quanto aos jantares especiais com o cunho da Infusões com História, “o maior desafio é perceber as técnicas e as texturas que o chef e a equipa de cozinha fazem. Depois é mais fácil ajustar”, explica o cofundador da Infusões com História. “Temos um portefólio com mais de 70 referências, que conseguimos personalizar em função do espaço, da cozinha e dos copos que temos disponíveis, e temos, aqui, belíssimos copos para fazer a harmonização”, assegura. 

Mas para fazer bons chás e infusões, e tisanas, é necessário ter à mão água de qualidade para infusionar: “é o epicentro dos chás, das tisanas e das infusões. Portanto, tem de ser neutra.” À falta de uma água neutra, basta que esta seja filtrada, “mas a filtragem tem de ser bem feita”.

Miguel Moreira resume o trabalho em três aspetos fundamentais: “a linguagem do chef, o perfil da água e os copos.” A ligação com o trabalho de Cláudia Camacho começou há algum tempo. “É um trabalho de laboratório de perfumes e matéria-prima”, define Miguel Moreira. Para a perfumista, o foco está em “trabalhar a ligação entre olfato e paladar. Não existe um sem o outro”, sublinha.

Ao contrário da equipa de cozinha de um restaurante, como em casa, usam-se, por exemplo, os frutos na decoração ou complementaridade de um prato. Na perfumaria, o processo é feito de outra forma: “aquilo que conseguimos extrair de um morango ou de uma amora é totalmente diferente do cheiro a que estamos habituados.” No caso da tília, por exemplo, “o que vamos extrair é o cume daquela matéria-prima”, esclarece Cláudia Camacho, para quem a perfumaria é uma arte, com o foco nas matérias-primas naturais, “a beleza que a natureza nos pode dar”.

Sete blends para sete pratos

“Erva-peixeira, hortelã, hortelã-da-ribeira, hortelã-pimenta, funcho, agastache anisado, arroz carolino, algas, hibisco, folha de framboeseiro, flor de equinácea, folha de mirtilo, malva, lúcia-lima, tílias, invólucro do cacau, chá preto, avelã tostada, laranja e limão desidratados, erva-príncipe, tomilho-limão”, foram algumas das matérias-primas usadas nos sete blends criados para harmonizar cada momento do “Menu dos sentidos”. Mas também de memórias, como o snack e leitão e laranja, que remeteu a uma viagem à Mealhada, bem conhecida pelo mais famoso prato deste concelho, o leitão à moda da Bairrada. Seguiu-se a infusão balsâmica, para acompanhar o pão e a mousse de enchidos, que, através do olfato e do sabor, transportou todos para ‘aquele’ episódio no fumeiro. Quem nunca esteve num espaço como este?

Vendam-se os olhos, pois é chegada a hora de descobrir, através do olfato, o que é disposto à frente de cada um. Sem mais delongas, foi colocado num prato a trilogia constituída por atum, batata e caviar, complementado por flores da horta. O arroz carolino de coentros e o pargo capatão grelhado acicatou as papilas gustativas dos apreciadores de peixe de mar. 

Entre momentos, Cláudia Camacho deu a conhecer as notas marinhas, igualmente designadas ozónicas, numa tira de papel. Embora dê preferência aos ingredientes naturais em detrimento dos sintéticos, decidiu comprovar que o aroma dos primeiros se preserva por muito mais tempo em relação aos segundos, como se comprovou poucas horas mais tarde. Quanto à percepção do fumo, aroma associado ao prato de peixe, a perfumista recorreu à bétula branca, de onde extraiu este cheiro.

De volta à cozinha do Contemporâneo, foi servido o trio composto por pato, castanhas e foie gras, que deliciou quem tanto gosta de carne. Este último também foi acompanhado pelo desafio de adivinhar os aromas, entre os quais o ligeiro travo terroso dos chanterelles e da mousse de castanha levou a que se apostasse em algo semelhante ao cacau.

À sobremesa, entrou em cena “A mulher de laranja” inspirada no quadro homónimo do pintor português Eduardo Viana, pelas mãos da chef de pastelaria Lara Figueiredo. Sobre esta espécie botânica, Cláudia Camacho exaltou as inúmeras fontes de extração, entre folhas, flores e casca, os quais fornecem o aroma deste fruto conhecido como portucale, por exemplo, em árabe. O desfecho foi protagonizado pela trufa de chocolate com infusão, bebida muito versátil, como se pode comprovar com este jantar, que, além das memórias, incidiu no olfato e no paladar.

+ MACAM Hotel
+ Infusões com História
+ Cláudia Camacho
© Fotografia: João Pedro Rato

Legenda da foto de entrada: Atum, batata e caviar, trio harmonizado pela infusão diamante

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