“Se pensarmos bem, apercebemo-nos que está a fundar-se aqui algo que é verdadeiramente português”

A portugalidade e o respeito pelos produtos da região de Trás-os-Montes recebem o primordial respeito por parte de Óscar e António Gonçalves. A dupla de irmãos, que está à frente do restaurante mais premiado de Bragança, falou acerca da escola e da inspiração de ambos, da cozinha na actualidade, bem como da fidelidade para com a terra.


Os clientes do restaurante G Pousada desfrutam da privilegiada vista sobre o Castelo de Bragança

Cerca de quatro anos e meio depois, voltámos ao G Pousada (1 estrela Michelin). Falamos do restaurante da Pousada de Bragança, localizada no Monte de São Bartolomeu, com uma vista singular sobre o casario da cidade e o castelo, onde António, o escanção, e Óscar Gonçalves, o chef, fazem um trabalho exemplar.


O desfile dos azeites produzidos em Trás-os-Montes é apresentado a preceito na sala

À mesa é apresentada uma generosa selecção de azeites transmontanos monovarietais e blends provenientes da Terra Quente, situada a norte do concelho de Bragança, e da Terra Fria, mais a sul. O pão é cortado ao momento. A variedade dificulta a escolha, mas os apreciadores deste alimento raramente escapam ao desafio de os provar a todos, até mesmo a broa e a manteiga da Ilha das Flores.


Os vinhos da região são as estrelas da respectiva carta

António Gonçalves, escanção do G Pousada, adianta que “os vinhos são só de Trás-os-Montes”. Estes harmonizam os três menus de degustação do G Pousada assinados pelo chef Óscar Gonçalves: Graça Morais, Nadir Afonso e Armando Alves. Os dois primeiros são uma homenagem a grandes nomes das artes em Portugal nascidos em Trás-os-Montes. O último é um tributo ao roteiro transmontano do pintor português.


As facas de Gilberto Ferreira, cupineiro transmontano, são presença assídua à mesa do G Pousada

De fio a pavio, os produtos nacionais denotam predominância, sobretudo regional, a remeter para o território. Importância crescente à medida que é servido o menu deste “estrela Michelin” aberto todos dias ao jantar (das 19h30 às 23h00).

Apesar do esforço e da enorme dedicação que António e Óscar Gonçalves têm vindo a demonstrar ao longo destes quase cinco anos, este é “um produto inacabado”, reforça o escanção da casa. Por isso, “é impossível parar” este trabalho de permanente procura para, com criatividade, continuar-se fiel ao facto surpresa que se quer diferenciador no G Pousada. Sempre acompanhado por sonoridades transmontanas, com destaque para Né Ladeiras, nome indissociável a Trás-os-Montes, cuja voz se ouve na ampla sala-de-estar recentemente reabilitada – à semelhança do interior do edifício, como os quartos dominados por uma paleta de tons suaves – “sem perverter o trabalho do arquitecto José Carlos Loureiro”, autor do projecto da Pousada de Bragança datado de finais da década de 1950. Um verdadeiro museu de arte contemporânea constituído por obras de Graça Morais, Nadir Afonso, Armando Alves e Júlio Resende, autor do painel de azulejos exposto no restaurante G Pousada. 


Bola de Berlim recheado de Queijo Terrincho e acompanhado por presunto de porco Bísaro, ambos produtos regionais

O que vos incentivou a apostar na Pousada de Bragança, particularmente, no restaurante, negócio que chegou ao que é hoje? Porque razão optaram por uma cozinha de assinatura?

Óscar – Se calhar teria sido mais fácil sair daqui, na altura, mas optámos por ficar. Se formos a ver, temos Espanha a pouco quilómetros, onde há aldeias com restaurantes de referência, hotéis de referência, com uma cultura gastronómica e nós temos produtos sazonais tão bons aqui, em Trás-os-Montes, que nos permite fazer uma carta para cada estação do ano. Desde a terra aos animais. Infelizmente, o rio já tem poucas trutas, barbos, enguias, bogas. Portanto, quando nos apareceu esta oportunidade, dissemos ‘porque não fazermos um restaurante de assinatura nossa na pousada, sem descurar o que é Trás-os-Montes. Porque não faria sentido não o fazer assim, porque quem vem a Trás-os-Montes quer provar os nosso produtos. Podemos dar um ou outro apontamento com outros produtos nacionais e, até mesmo, internacionais, mas não nos podemos esquecer o que é nosso e todos os nossos pratos tendem sempre a ligar à terra, a Trás-os-Montes.

António – É preciso fazer uma contextualização muito objectiva que é nós acreditarmos na potencialidade da região, sabendo nós que a tarefa iria ser árdua. A verdade é que, mais uma vez, o que fizemos foi tornarmos uma fraqueza uma força, ou seja, conseguimos singrar e trazer à tona o nosso trabalho. Foi claramente um factor diferenciador comparativamente aos outros restaurantes, porque todos acabamos por ter uma base de cozinha contemporânea portuguesa, por assim dizer. A grande questão no meio disto tudo é saber se um negócio como este é sustentável ou não numa cidade como Bragança e a grande luta é essa: tentarmos se é possível continuarmos o negócio como este nesta cidade e desta maneira. Acreditamos que sim, mas obviamente que o tempo o dirá. Tem corrido bem e tem sido um crescimento sustentável e tem trazido assunto à região.

“O meu irmão e eu não viemos para aqui fazer réplicas de pratos que aprendemos.” {Óscar Gonçalves}


Vieiras e lingueirão em caldo de peixe e com trigo

Já há quatro anos ambos tinham tudo definido, bem estruturado. Qual a origem da vossa inspiração, a experiência que possuem? Essa vivência foi trazida para aqui?

Óscar –Temos uma série de amigos de profissão aos quais estamos muito ligados, com os quais falamos muito e que nos incentivaram a pegar nos produtos de Trás-os-Montes. 

António – Há aqui uma coisa importante que não se tem falado e que é relativamente nova no panorama da gastronomia nacional: de repente, começa a haver satélites. Antigamente, as pessoas escondiam-se mesmo que aprendessem com outros cozinheiros. Queriam sempre a luz dos holofotes. Hoje há claramente ramificações do trabalho. O [restaurante] Feitoria é uma belíssima base disso mesmo. É provavelmente o primeiro caso de pessoas que estiveram – e estão ligadas – a um projecto inicial ou que estagiaram, ou trabalharam lá e que fazem o seu caminho com a sua visão, fazem um restaurante que tem uma base filosófica idêntica, mas não se cola àquilo que é a produção final, o prato, a criação. O meu irmão e eu não viemos para aqui fazer réplicas de pratos que aprendemos. Agora, podemos fazer em técnicas e filosofias, o que não acontecia que é dois restaurantes estarem ligados e, de repente, um ganha a estrela e, mais tarde outro, com a mesma filosofia, ramificado, ganha a estrela. Acho que é um bom sintoma do que está a acontecer em Portugal. Houve muita coisa a mudar em poucos anos, principalmente a partilha.


Pargo, bivalves da costa Norte do Atlântico e cabelo da velha com milhos ou sêmola de milho que acompanha tradicionalmente a costela de porco ou o chouriço ou são servidos doces

O restaurante Feitoria, do Altis Belém Hotel & Spa, em Lisboa, com João Rodrigues, é uma escola, como foi o El Buli, na Catalunha, com Ferrand Adriá?

António – Pensar nisto e alguém falar disto desta maneira, em Portugal, nunca se fez. Se viessem de fora, diziam logo “eu estive aqui, além e acolá”. Aqui não! Se calhar o nosso contributo humilde a isto tudo é assinalar a portugalidade. Não imaginais a quantidade de pessoas que nos disseram “não estiveste lá fora” e nós respondemos “não!” Se pensarmos bem, apercebemo-nos que está a fundar-se aqui algo que é verdadeiramente português.

“Se estive com o João [Rodrigues] e o Vincent [Farges], se tenho pessoas com quem troco ideias, como o Leonel [Pereira] ou o Vítor [Matos], qual é o mal de pedir ajuda? A partilha é que nos faz mais fortes.” {Óscar Gonçalves}

Mais desafiante.

António – Claro! Se reparar, até mesmo na comunicação social são mais bem sucedidos, porque tiveram num Noma ou num Mugaritz, ou estiveram no Alain Ducasse… O que acontece depois? Voltam para cá com a filosofia de onde estiveram, esquecendo a base da portugalidade e não são bem sucedidos. Estou a ser objectivo.

Óscar – Desculpa a interrupção, mas não posso esconder com quem aprendi! Acho que as pessoas que o fazem são pessoas inseguras. Se estive com o João [Rodrigues] e o Vincent [Farges], se tenho pessoas com quem troco ideias, como o Leonel [Pereira] ou o Vítor [Matos], qual é o mal de pedir ajuda? A partilha é que nos faz mais fortes. Se todos andarmos para a frente, temos mais força perante vós, da comunicação social nacional, perante os meios de comunicação social internacional, perante determinadas instituições.

António – O que estamos a fazer entre todos é a alavancagem da cozinha portuguesa com um novo estatuto, uma nova imagem mas, acima de tudo, com um vinco de autenticidade própria. Nada contra com quem vai aprender lá fora. 


Ossobuco com creme de cogumelos, castanha e demi glace

Acham que não são facilmente “aceites” por não terem saído do país e de lhes ser apontado o dedo por não terem aprendido com outros chefs.

António – Exactamente! A pergunta de alguns clientes é mesmo essa: “Onde estiveram?” Como se o facto de termos de ir lá para fora ser uma obrigação.

Há quem não saiba que cresceram e aprenderam muito no Geadas, o restaurante dos vossos pais, onde aprenderam o mais simples de uma cozinha e foram evoluindo a partir daí? Para além do saber receber.

António – Pessoalmente, acho que é uma nova forma de estar e uma nova realidade que, até há pouco tempo, importava não falar sobre ela. Lembro-me do Aimé [Barroyer] e dos seus grandes discípulos. Ele foi um dos grandes “pregadores” que deixou muitos discípulos em todo lado, mas os objectivos para os quais toda a vida trabalhou nunca foram conseguidos. Era-lhe conferido grande conhecimento de técnica, grande conhecimento de produto e grande trabalho com as pessoas, mas acabou por ficar na surdina. O que tento explicar com isto é que estamos num ponto de viragem, numa altura em que é preciso falar mais sobre os produtos, a matéria-prima, o que realmente cada pessoa tenta fazer no espaço que tem mas, a partir de uma determinada altura, temos de ser objectivos.

Voltando à portugalidade, esta temática, tanto quanto a importância atribuída aos produtos transmontanos, já fazia parte da carta do G Pousada em Dezembro de 2014. 

António – É acreditar num modelo de projecto. Está a falar de há quatro anos e de hoje. É a matriz do nosso projecto, a partir da qual discutimos muito – o meu irmão e eu – e procuramos encontrar aqui algo que possa ser, verdadeiramente, a viragem, mas sem sair dessa matriz.

“Temos de ser portugueses, regionalistas e, neste caso, bairristas.” {Óscar Gonçalves}

Presa de porco Bísaro – raça autóctone da região de Trás-os-Montes – e cuscus

Mas a importância atribuída aos produtos desta região foi e continua uma forma de impulsionar a matéria-prima da região ou trata-se de uma questão de necessidade?

António – Não pode parecer tão poético. Temos de ser realistas. Custa-nos menos uma carne que seja abatida aqui, na região, do que importar uma angus ou uma wagyu

Óscar – O Instituto Politécnico de Bragança e a ANCRAS [Associação Nacional de Caprinicultores da Raça Serrana] fazem um trabalho conjunto em que os animais pastam no prado do instituto e, ao mesmo tempo, são feitos estudos, para ver qual alimentação que melhor se adequa a cada espécie. Temos de dar o que é nosso. Temos de ser portugueses, regionalistas e, neste caso, bairristas.

É fácil manter as relações com os produtores daqui?

Óscar – Com alguns produtores sim mas, quanto às carnes, é mais fácil manter essa relação com as associações, como a ANCRAS, porque eles próprios promovem as carnes de tudo o que é caprino, como a churra galega, da Terra Fria. Por isso não usamos carnes congeladas. Semanalmente temos produtos frescos para o consumo.

“Isso leva-nos ao nosso terroir, procurar os produtos que se comiam e, hoje, ainda se comem” {Óscar Gonçalves}

O peito e a perna do pombo são cozinhados à parte por respeito ao ponto de cozedura de cada um

Em 2014 os dois já apresentaram um trabalho muito curioso e criativo, em que o produto principal ia para a mesa acompanhado pelos alimentos que “comia”.

António – Acaba por ser desmontar aquilo que é a criatividade e as nossas cartas. 

Óscar – O pombo, por exemplo, não é um cliché. É um produto nosso. Antigamente, era utilizado para fertilizar as terras. Não é por acaso que aqui à volta existam centenas de pombais que, de um momento para o outro, ficaram inactivados. O pombo faz parte do compêndio gastronómico desta região. Infelizmente não são de pombais daqui. Vêm de Espanha. São de um senhor que está a produzir pombos, aos quais é dado o nome de pombos de casario. O que nós fazemos é um bocado o “desmontar” o que é a alimentação do animal. Por isso, o que está no prato a acompanhar o pombo é, basicamente, o que ele come e que nós podemos comer. Como o porco, que come castanhas, nabo, cenouras. Isso leva-nos ao nosso terroir, procurar os produtos que se comiam e, hoje, ainda se comem, como as rabas de soeira – um nabo mais adocicado, de cor amarelada e sabor de nabo e cenoura, da família dos rábanos – que, só se produz na época no Natal. Há uma procura infindável por este produto, para comer no Natal e, depois, deixa-se de ver. 

Este respeito pela sazonalidade leva-vos a fazer quantas carta por ano?

António – São duas três cartas. Há uma intermédia, na entrada das estações, na qual vamos substituindo os elementos. Mas este negócio é feito a pensar no cliente, que vem cá uma, duas, três vezes e não vai comer a mesma coisa. Ou seja, vai ter uma surpresa, da qual vem mesmo à procura. Os ingleses e os americanos chamam a isto hospitality business. É o facto de receber pessoas, trabalhar com pessoas e receber pessoas. É gerir as expectativas que as pessoas têm acerca do produto final, da experiência, da recepção. A verdadeira experiência aqui é, portanto, a da hospitalidade.


O arroz doce e canela do imperdível G Pousada

Quem vos visita mais: o estrangeiro ou o português?

António – A base do nosso negócio é estrangeiro, mas o português está a crescer, o que nos agrada profundamente.

O que trouxe a estrela Michelin? Houve um boom de clientes no vosso restaurante?

Óscar – Trouxe mais movimento, mas traz, também, pessoas que dizem “uau!” Assim como traz pessoas que dizem: “É isto?” Temos de estar preparados.

António – O trabalho da surpresa é um jogo de antecipação. Agora é um jogo de gestão de expectativas.

“O cliente estrangeiro vem mais preparado e acaba por valorizar muito mais a portugalidade; o cliente português vem à espera da excentricidade.” {António Gonçalves}

Ao dizerem “é isto?” significa que estão à espera de um caviar, de foie gras?

António – Aí é que está! Mas há aqui uma coisa interessante. O cliente estrangeiro vem mais preparado e acaba por valorizar muito mais a portugalidade; o cliente português vem à espera da excentricidade. Ou seja, a gestão de expectativas dá-se entre estrangeiro vs. português.


Chocolate, café e caramelo: a trilogia não falha!

Como reagiu a população de Bragança à atribuição da estrela Michelin ao G Pousada?

Óscar – Foi muito bonito!

António – Para mim foi a grande surpresa!

Óscar – Sentimo-nos acarinhados.

António – Sentiram os filhos da terra. Houve o peso da meritocracia, ou seja, sentiram que havia mérito por trás do nosso trabalho. As pessoas perceberam que havia trabalho que, de facto, era muito difícil e que se tinha conseguido lá chegar. Isso, obviamente, que nos encheu de orgulho. Foi histórico! Foi a primeira estrela [Michelin] em Trás-os-Montes, acima de Amarante.

Óscar – Primeiro, temos de acreditar. Segundo, não devemos desistir. Quando uma pessoa faz o que gosta e tem a chamada hospitalidade para com o cliente, sem entrar em devaneios, sem desvirtuar a nossa “transmontalidade”, procurando sempre o produto daqui. Custou chegar aqui, porque é uma caminhada diária que temos de fazer.

António – Quando falo de um negócio aqui falo num conjunto, com alojamento e restaurante, ou seja, não é um monoproduto. A frieza do negócio revela-se também dessa maneira. Aliás, estou a falar aqui num conjunto de negócios, onde tenho o tradicional, o contemporâneo e o alojamento. São vários pólos de negócio. 

Foi por esse motivo que comecei esta entrevista a perguntar se, quando ficaram com a Pousada de Bragança, já tinham tudo definido.

António – Sim! E, atenção, o meu irmão é uma peça fundamental em vários níveis inclusive quando diz “não, é por aqui, não é por ali”

Óscar – Eh lá! A defender-me! [risos]

António – Quando começas a pensar em números, entras numa aflição… Nesse aspecto, o meu irmão foi fundamental a indicar o caminho mais viável. Ou seja, toda a estrutura do negócio tem de ser sustentável. Se vamos enriquecer com isto? Nunca! Agora, acho que é um negócio honesto.

Vale sempre a pena voltar ao G Pousada. É ir! Bom apetite!

+ G Pousada
© Fotografia: João Pedro Rato

Legenda da foto de entrada: António e Óscar Gonçalves, a indissociável dupla de irmãos que está à frente da Pousada de Bragança e do G Pousada desde 1 de Março de 2014

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