Saborosa e descomplicada. Eis a comida deste espaço de restauração, onde a culinária portuguesa e norueguesa convergem em produto e tradição. O menu de degustação é uma incógnita e mantido em segredo até ao final de cada jantar.

O n.º 70 da rua Waldemar Thranes, na cidade de Oslo, na Noruega, é a porta de entrada da Apent Bakeri Tranen. Não há enganos. No interior desta pastelaria cheia de vida está, do lado oposto, a escada de acesso ao Bar Amour. O porquê do nome? Porque, na década de 1970, foi um bordel. Fechou em finais da década de 1990. Após a reabertura algures na primeira década do século XXI, estreia-se, a posteriori, como restaurante.
Instalado num recôndito recanto do piso acima da Apent Bakeri Tranen, o Bar Amour é antecedido por uma sala de espera, na mezzanine da pastelaria. Aqui, são servidos os snacks. Merengue de cantarelos e mousse de fígado de galinha; bacalhau fumado, com emulsão de ostras e dashi do ‘fiel amigo’; polvo, com alho assado e emulsão de pimento assado e ovas de polvo sobre tosta de pão de leite constituem o trio de boas-vindas. Para acompanhar este trio é servido um espumante da região dos Vinhos Verdes.
Já tinha o nome Bar Amour antes de Carlos de Medeiros assumir a função de chef deste restaurante, “mas o estilo da decoração não era bem este. Era semelhante”, explica o cozinheiro português, que, em janeiro de 2023, aceita o desafio de conduzir a equipa deste restaurante. “Tinha acabado de sair do Maaemo [o restaurante em Oslo onde permanece entre 2021 e finais de 2022], quando um amigo meu me perguntou se queria ficar à frente do Bar Amour”, conta Carlos de Medeiros.
Desafio aceite. Ao longo dos primeiros seis meses, o chef português – com curso de cozinha concluído, em 2009, na Escola de Hotelaria e Turismo de Lisboa, três restaurantes lisboetas no currículo e restaurante próprio aberto, por um ano, em Linda-a-Velha – investe tempo e criatividade, à semelhança do que fez, ao longo de sete anos, no Reino Unido, sobretudo no The Clock House. E vai mais além, testando os limites da cozinha no Bar Amour, ao qual “fiquei rendido”. O reconhecimento surge em maio de 2024, quando este restaurante de 12 lugares e com um decor cénico, entra, com uma estrela Michelin, no Guia Michelin Países Nórdicos.
M de misterioso

A porta em madeira, com postigo, o chão de alcatifa vermelha, o papel de parede com motivos chineses, de fundo vermelho, em alusão ao tecido de seda de outros séculos, os candelabros em tecido e a média-luz, conferem um ambiente intimista a este espaço. A cortina, da mesma cor e que separa a sala da cozinha, reforça o ar misterioso, atributo partilhado com o menu de degustação. Afinal, este último é desvendado apenas à medida que se desenrola a refeição. O mesmo segredo é mantido a respeito da harmonização vínica, com a possibilidade de fazer pairing com bebidas não-alcoólicas. No entanto, “há liberdade para pedir à carta”, diz-nos Carlos de Medeiros, que reforça a visibilidade dos vinhos portugueses, bem como o desejo de “expandir a carta de vinhos portugueses”.
Os clientes são chamados para as mesas. Depois de estarem todos sentados, abrem-se as cortinas e dão-se as boas-vindas. Apresenta-se o conceito do Bar Amour, um restaurante norueguês, sem menu de degustação fixo e onde produtos e sabores portugueses também entram em cena. Os pratos são descritos por toda a equipa do Bar Amour, incluindo os cozinheiros Pedro Sequeira, de Portimão, Gonçalo Beija, de Sintra, Mathieu Santos, da Guarda, e Carlos de Medeiros. A louça portuguesa faz parte do desfile, assim como os materiais orgânicos, como a madeira.
Não é um teatro. É um restaurante
Ambiente teatral à parte, a comida é levada a sério no Bar Amour. “Sazonalidade é ponto assente, mas convém lembrar que não temos muito produto norueguês, sobretudo nesta época do ano. Por isso, recorremos a produtos selvagens, como bagas silvestres, rebentos… Colectamos durante a primavera e o verão, e fazemos fermentados e preservados em pickles, por exemplo, para usarmos durante o resto do ano.” Fá-lo em equipa, mas também o faz sozinho. Aliás, a cozinha não é trabalho para o chef português, “é um gosto, uma entrega total” e uma experiência sem fim. “Há todo um trabalho de aprendizagem constante.”
Os fermentados e preservados estão presentes em muitos pratos do Bar Amour, como na composição do lírio, groselhas e aneto ou no prato em que a vieira é acompanhada por ameixa fermentada.
A tradição norueguesa de ensinar os mais novos a fazerem fogo quando vão acampar para a floresta e utilizarem a navalha para afiar um pau de esteva, onde colocam massa de pão e salsicha também. Este costume é representado, no Bar Amour, com a massa do pão cozinhado e enrolado no pau, e as costelas de cabra desidratadas e grelhadas no grelhador disposto no balcão da cozinha, no qual é utilizado carvão japonês, “que não deixa o aroma forte do carvão na comida”, justifica. Nesta composição entram o gel de rábano-picante e pó de rosas.
Alinhamento gastronómico português

Açorda é prato-bandeira da mesa portuguesa. É servida com coração de rena grelhado e coentros, à boa maneira alentejana. “Os nossos pratos não são complexos, porque nos focamos muito nos sabores. A nossa ideia é que as pessoas identifiquem os sabores, numa escala de palatos, uma espécie de sucessão de sabores e não uma mistela, que não lhes permite perceber o que estão a comer”, esclarece Carlos de Medeiros.
No alinhamento da carne, é servido o lombo de rena grelhado, abóbora e trufas, sabores que rimam com o frio, tal como o javali e o veado, que entram na lista de carnes de caça servidas no Bar Amour durante o outono e o inverno. “Até há pouco tempo tínhamos um prato com presa de porco preto. Era feito com nabo e servíamos com molho de chouriço português e caviar sueco fumado, o Löjrom, da família do arenque”, informa o chef português. Além do porco preto, proveniente de terras lusitanas, pode haver pratos com ovas de polvo, percebes, farinha alfarroba, arroz carolino da lezíria do Tejo, chouriço, além de que “usamos muito bacalhau salgado”, confessa.
Por falar em peixe, além do lírio, a escolha pode recair no tamboril, acompanhado por um puré de feijão branco, por exemplo. Tudo depende do que está disponível em cada dia em que o Bar Amour abre para servir jantares.

“Os nossos pratos não são complexos, porque nos focamos muito nos sabores. A nossa ideia é que as pessoas identifiquem os sabores, numa escala de palatos, uma espécie de sucessão de sabores e não uma mistela, que não lhes permite perceber o que estão a comer”
chef carlos de medeiros
Segundo Carlos de Medeiros, 85 por cento dos clientes do Bar Amour é norueguesa. “Há muitos noruegueses que conhecem Portugal e quem vai ao Bar Amour está à espera de comer o pastel de nata, mas não quero cair nesse cliché”, revela Carlos de Medeiros. Como tal, o quarteto de cozinheiros portugueses opta por pão-de-ló com gelado de louro e crocante de presunto ibérico.

O desfecho é feito no ponto de partida, isto é, na mezzanine, onde pode ser dado protagonismo a quatro produtos algarvios: a amêndoa, o figo, a alfarroba e o licor de medronho. Uma ode ao país dos quatro cozinheiros portugueses, que têm, certamente, muitas outras saborosas histórias para contar.