bacalhau d’assinatura • chef Luís Gaspar: Brilhante é seriedade, criatividade e consistência

Eis as palavras selecionadas pelo chef Luís Gaspar para definir o sucesso do restaurante mais sofisticado do Cais do Sodré, em Lisboa, onde clássicos da restauração de outrora recebem uma homenagem de génio e o bar de uísques dita o glamour ao jantar.

A movida do Cais do Sodré empresta o ambiente boémio a este restaurante aberto desde 2022, em Lisboa, O conceito foi criado e desenvolvido pelo chef Luís Gaspar, que, desde o primeiro dia, suplanta a aguardada experiência à mesa de tão sofisticado espaço recriado à imagem dos requintados cafés e restaurantes do século XIX, na capital do país. 

O couro, os veludos e os dourados reforçam esta tendência de sofisticação, que começa logo com as ostras provenientes do Sado, rio que banha a península de Setúbal. A mestria do conhecimento culinário passa pelo bife à Brilhante, um clássico lisboeta a comer no ponto e servido com um molho muito especial. Mas a ementa convida a redescobrir os compêndios culinários franceses de chefs reconhecidos em todo o mundo, através de recriações, que vão das entradas às sobremesas. O melhor é ler a entrevista ao chef Luís Gaspar.

“Sinto que faço parte de uma geração que tem orgulho em promover a gastronomia portuguesa”

Uma vez eleito “Chefe Cozinheiro do Ano”, em 2017, e “Chef l’Avenir”, em 2023, pela Academia Internacional de Gastronomia, o que significa para Luís Gaspar ser “chef do futuro”?
Ser “chef do futuro” é o reconhecimento do passado, do presente e do que pode vir a ser o futuro. É o reconhecimento da minha carreira, do que já fiz, do que estou a fazer e da expectativa que há do que possa vir a fazer no futuro. É um prémio que tem vindo a reconhecer muitas pessoas da cozinha portuguesa, muitos deles meus amigos e alguns deles que foram minhas referências de carreira. Portanto, poder estar no painel ao lado desses grandes cozinheiros é uma grande honra.

Como se define como chef? Tendo em conta que executa e, ao mesmo tempo, é responsável pelas equipas dos restaurantes Pica-Pau, da Sala de Corte e do Brilhante.
É acima de tudo o criativo, que cria e desenvolve conceitos e que, em conjunto com a equipa, através da minha liderança, do cariz, consegue implementar esses projetos no mercado. Acima de tudo, sou um criativo, com grande respeito pelo património, pelo receituário português. Obviamente que o Brilhante e a Sala de Corte têm uma presença mais internacional, com técnicas. Acima de tudo, gosto muito de criar e desenvolver conceitos.

Considera-se um embaixador da gastronomia portuguesa?
Sim. Sinto que faço parte de uma geração que tem orgulho em promover a gastronomia portuguesa. Não sou isoladamente responsável por este feito. Há uma comunidade e uma geração de chefs de cozinha, que tem feito um trabalho incrível na promoção, na preservação e no reconhecimento da gastronomia portuguesa no mundo. 

O restaurante Pica-Pau espelha o respeito pela gastronomia portuguesa, mas centremo-nos no Brilhante, que foi “beber” muito do legado da cozinha galega, a qual permaneceu na cidade de Lisboa.
Nós, no Brilhante, quisemos recuperar o registo dos restaurantes e dos cafés boémios de Lisboa dos anos 70 e 80. Na altura, havia três temáticas predominantes: a cozinha popular portuguesa, os restaurantes galegos e os restaurantes de cozinha internacional, mais afrancesada, porque era a cozinha mais predominante no mundo, que era aquela que proliferou com maior força por ser a nouvelle cuisine, por ser a que trazia uma maior novidade traduzida em produto e técnica. Este era o registo muito particular dessas duas décadas e nós fizemos um estudo, que convergiu com António Marrare, cozinheiro que se fixou em Lisboa. Teve um restaurante na rua dos Remolares, que fica perto daqui. Portanto, quisemos trazer esta história do bife à Marrare para o Brilhante, que serve de inspiração para o bife à Brilhante e cujo molho da receita tem uma interpretação minha. Aqui, aromatizamos o molho com Vinho Madeira. O Vinho Madeira, historicamente e gastronomicamente, tem muita força na gastronomia francesa. Muito mais até do que o Vinho do Porto, que era utilizado em harmonizações, enquanto o Vinho Madeira, segundo Auguste Escoffier, era usado para cozinhar. Houve aqui uma pesquisa da minha parte, daí trazer o Vinho Madeira para perfumar e aromatizar o molho, dando-lhe uma característica diferente.

Descreva-me o processo de recriação do receituário no Brilhante. Também recorreu ao gastrónomo Virgílio Nogueiro Gomes.
O Virgílio Nogueiro Gomes tem sido, em vários momentos e desde o princípio da minha carreira, o meu conselheiro, um consultor. Conheço o Virgílio há muitos anos. Por isso, sempre que tenho alguma dúvida ou sempre que tenho de esclarecer algum detalhe técnico ou de património, recorro ao Virgílio. O Virgílio é uma referência, uma enciclopédia de gastronomia do mundo.

A que manuais, livros, documentos recorreu, para completar este processo de recriação culinária do Brilhante?
No Brilhante, Auguste Escoffier foi uma grande referência. Trouxemos de volta alguns clássicos da cozinha francesa. Mais recentemente, temos pratos inspirados em receitas de Paul Bocuse e receitas base de Joël Robuchon. Por exemplo, o puré de batata trufado, que é feito com 50 por cento de batata e 50 por cento de manteiga, é de Joël Robuchon. Portanto, há aqui uma grande influência da cozinha francesa. O que é recriado é o molho Brilhante, que é uma recriação do molho Marrare. Para a confeção de todos os outros pratos, vamos buscar referências do receituário de chefs franceses internacionais, mas Paul Bocuse, Auguste Escoffier, Alain Ducasse, Joël Robuchon são algumas das inspirações do Brilhante.

Houve receitas que tiveram de ser atualizadas, trabalhadas, para dar resposta ao palato atual, em contraposição ao açúcar excessivo utilizado em outros tempos?
Nas sobremesas, obviamente que o nosso chef de pastelaria, o Claiton [Ferreira], é muito atual e tem tudo muito ajustado ao momento em que vivemos. Portanto, a redução do açúcar é um tema muito presente em todos os restaurantes e em todas as recriações dele. Depois há também reajustes nas técnicas, para melhorar as receitas e trazer alguma portugalidade ao restaurante. Apesar das influências internacionais, temos alguma portugalidade naquilo que é trazer o produto e trouxemos o arroz de lavagante, que era um dos clássicos dos cafés dos anos 60 e 70.

Além da criatividade, ingrediente igualmente preponderante no Brilhante, quão divertido e, ao mesmo tempo, sério é desenhar um prato?
A criatividade é partilhada em equipa e a equipa ajuda que haja maturidade, para que a criatividade seja séria. Os três restaurantes [Brilhante, Sala de Corte e Pica-Pau] são muito conceptuais. Criando um restaurante bem formatado e com ideias muito próprias, torna o restaurante mais sério e mais atrativos. Por exemplo, a Sala de Corte faz, este ano, 10 anos. Foi um dos primeiros restaurantes de carne de Lisboa. Houve muitos restaurantes de carne, em Lisboa, e muitos deles tinham propostas na carta, como peito de frango, magret de pato, borrego, polvo… Provavelmente, nenhum desses restaurantes está hoje aberto. Quiseram diversificar tanto, ser tão democráticos e, se calhar, a criatividade não foi tão séria, provavelmente nenhum está aberto. Ao contrário da Sala de Corte, em que houve uma criatividade madura, soubemos crescer de um espaço com 28 lugares para um espaço com 120 lugares, nunca nos desviámos do caminho, do ADN do restaurante – um restaurante de carne maturada clássico. Hoje, o restaurante afirma-se no panorama gastronómico nacional e internacional.

Que ingredientes e pratos permanecem na ementa desde o início do restaurante Brilhante?
O bife à Brilhante, o bife icónico do restaurante, é recriado através do bife à Marrare. A carne é nacional e o molho é feito com Vinho Madeira, trazendo, aqui, produto português. O Vinho Madeira também assume uma tendência preponderante na harmonização, isto é, uma das muitas sugestões de harmonização é o Vinho Madeira, principalmente com as sobremesas, também para criar aqui uma harmonização vínica que usamos no prato principal do restaurante. O lavagante é nacional, o robalo é nacional. Fazemos cá o salmão gravlax. O foie gras Torchon também está desde o início, bem como o bife tártaro ou os croquetes de novilho. Há clássicos que dificilmente vamos tirar da carta do Brilhante. No caso do soufflé [nas sobremesas] trocamos o ingrediente de acordo com a estação: no verão temos o pistácio e, no inverno, fazemos de chocolate.

E o bacalhau?
Esteve sempre presente na carta, mas em versões diferentes. Este prato traz alguma portugalidade enquanto prato, porque há milhares de formas de cozinhar bacalhau. Aqui é confecionado como se fosse um bacalhau à Braz, como forma de acrescentar valor ao prato. Por uma questão de sustentabilidade, com as espinhas, as peles e as aparas, que iriam ser descartadas, fazemos o molho pil pil, para conferir o colagénio e a untuosidade, alguma potência de sabor ao prato. O primeiro foi a brandade de bacalhau.

Qual é o segredo para levar o restaurante Brilhante a bom porto?
A consistência do produto e do serviço, ou seja, da equipa. Depois é a seriedade e a criatividade. É que, às vezes, no início dos projetos, há dúvidas quanto ao caminho que estamos a seguir. Em 2022, pós-pandemia, tivemos um arranque difícil. Pusemos em cima da mesa várias questões: se faria sentido ter um restaurante tão exclusivo ou se devíamos democratizar um bocadinho o conceito. Mas, fruto da estrutura e da maturidade do grupo  [Plateform], decidimos manter aquilo que era o projeto original. É talvez um restaurante mais intimista, mais exclusivo e mais luxuoso do Cais do Sodré.

A viagem vínica deste restaurante tem muitos destinos nacionais para esmiuçar na boca?
Temos vinhos portugueses de velho mundo, ou seja, mais antigos e as referências nacionais mais emblemáticas. Também temos vinhos mais contemporâneos, com pouca intervenção. Nos internacionais, é exatamente a mesma coisa. Depois temos a componente do bar, que tem uma presença muito forte, mais ao jantar, em que a disponibilidade do consumo do álcool é maior, os cocktails clássicos e as 52 referências de uísque que temos. É um uísque bar, para trazer de volta o uísque ao restaurante e ao bar de restaurante, o qual, nos últimos anos, foi substituído por outros destilados, como a vodka, o rum, o pisco. O uísque sempre esteve muito presente neste tipo de restaurante. Temos também a velha história do cliente poder comprar a sua garrafa e a poder reservar no bar, com uma placa com o seu nome, para poder pedir a sua garrafa, que está guardada.

É ir! Bom apetite!

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© Fotografia: João Pedro Rato

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