Degustar com ousadia / Chef Rui Paula

Olfato. Visão. Paladar. Tato. Audição. Os cinco sentidos são servidos com ousadia à mesa de um chef portuense, autodidata, que preserva na memória, de forte inspiração tradicional, os sabores e os cheiros de outrora, de uma infância passada, de tempos a tempos, na casa de família cheia de gente, em Alijó. O concelho duriense que, em 1994, assiste à abertura do seu primeiro restaurante de nome Cepa Torta.

Sequioso de saber, aperfeiçoa a arte de cozinhar com outros chefs e, mais tarde, casa a comida e o vinho com a paisagem, com o DOC, nas margens do Douro, onde os saberes conjugados com uma criatividade refinada e uma experiência sensorial convergem na criação de dar prazer ao palato dos comensais – o que é bem verdade –, fundamento alinhado com o DOP, ponto de paragem obrigatória no Porto, e no Vidago Palace Hotel, no Vidago, no qual é chef consultor. Falamos, claro está, de Rui Paula, que trouxe os sabores do norte, fechados num menu soberbo, até ao Terraço do Tivoli Lisboa, “um hotel emblemático no nosso país”.

O percurso dos sabores do norte cedo despertaram curiosidade no Rui Paula.
A minha família tinha uma quinta. Logo, havia muita gente para comer. Os trabalhadores da casa, os convidados dos meus avós, dos meus pais… Cozinhava-se muitas vezes lá em casa e eu sempre gostei muito de estar na cozinha, com a minha avó, a minha mãe… Era o lugar da casa onde comíamos – era muito grande, com um forno a lenha enorme. Portanto, cresci neste ambiente dos sabores… até que abri o primeiro restaurante, de cozinha tradicional, onde apliquei tudo o que aprendi naquela cozinha.

Caminhemos pelas reminiscências do chef. Que sabores, cheiros e texturas se recorda dos tempos de menino?
Dos enchidos, do cheiro dos legumes frescos. Saber o que é verdadeiramente bom. Tenho na memória o cheiro do caldo do feijão, da cevada, das carnes, da salgadeira… Cheiros e sabores que, hoje em dia, é muito difícil de encontrar. E quando encontramos o mais aproximado, o que nos faz lembrar desses tempos e nos faz sorrir temos, à partida, de aproveitar para trabalhar. A memória é a minha principal fonte de inspiração.

“Na minha cozinha está sempre presente a gastronomia tradicional.”

Autodidata, Rui Paula não quis sair da cepa torta; pelo contrário, abriu as portas de um restaurante com este nome. 
Quando percebi que era esta a carreira que pretendia seguir passei para o Cepa Torta. Cinco, seis anos depois de abrir o restaurante, comecei a confecionar pratos com os chefs e, para evoluir e aprender as técnicas francesas, que ainda hoje admiro muito, tive de me formar e atualizar com as pessoas certas. Mas na minha cozinha está sempre presente a gastronomia tradicional. Está sempre presente o sabor. Não admito que a comida não tenha sabor.

Agora falta explicar o porquê do nome: Cepa Torta.
O nome provém da cepa de vinho; torta, porque são todas tortas. Queria um nome curto para o restaurante; que ficasse facilmente no ouvido. Foi o meu primeiro negócio. Contei com as ajudas do meu avô, do meu pai… Não podia falhar. A criatividade não era arrojada, contudo, servia a comida com uma apresentação diferente do habitual, em faiança. Era tal e qual como a minha avó fazia. Seis anos depois é que comecei a confecionar pratos contemporâneos, a aplicar produtos que não os nossos… Não acredito nos chefs que não saibam fazer comida tradicional. Quem vive ou é de um país com tradição gastronómica tem de saber fazer a comida tradicional do seu pais; fazer tal e qual como uma senhora de 80 anos – que saiba cozinhar muito bem – o faz. Só quando se sabe tudo é que vai cozinhar alguma coisa.

De inspiração tradicional e regional, a sua cozinha acaba por embarcar numa viagem pelas memórias “com uma roupagem moderna”.
Alguns pratos são mais tradicionais, outros têm uma roupagem mais arrojada, mas todos têm de estar muito bem apresentados, têm de ser feitos com produtos de excelência… Se a comida que levamos à boca nos faz lembrar, por exemplo, “aquele” arroz de tamboril, então é mesmo boa! Assim conseguimos o sucesso da nossa casa. Por outro lado, precisamos de aliar a técnica francesa a um prato que é nosso, para o tornar mais apetecivel ao olhar… porque a nossa cozinha não deixa de ser um pouco “bruta”, chegando, por vezes, a ser um pouco pesada. A técnica é marcar bem os sabores do peixe e da carne, além de que é preciso respeitar o ponto das cozeduras, caso contrário o sabor fica alterado.

“Criamos para criar prazer”. Este é um dos fundamentos da cozinha do chef Rui Paula. A forma como confeciona e apresenta os seus pratos é, no fundo, um de desafiar constante do palato?
Temos de criar para dar prazer. Por exemplo, “o colher da trufa” [o amuse bouche do jantar no Terraço do Tivoli Lisboa] desperta emoções, desde a forma como o cliente o leva à boca – com a mão – à forma como é surpreendido. É importante que seja surpreendido, tenha prazer a comer. O melhor cliente que podemos ter no nosso restaurantes é aquele que tem prazer em comer. Isso requer tempo, gosto, vontade de experimentar…

“O prato ideal é aquele que convoca todos os sentidos à mesa”

Solicita a presença dos sentidos à mesa, pois os olhos também comem, os cheiros causam desejos…
Todos os sentidos são importantes. O tato, a visão, o cheiro… Quantos mais sentidos convocar à mesa, maior prazer a comida nos dá. Mais do que isso, o prato ideal é aquele que convoca todos os sentidos à mesa.
Em 2007 surge o DOC. Degustar. Ousar. Comunicar. Um convite para embarcar numa viagem pelos sentidos, provocada pela ousadia de Rui Paula. O DOC está inserido numa região vitivinícola, rodeado de vinhos e vinhedos. O nome significa que estamos a degustar, ousamos fazer coisas diferentes, sem ter medo de as fazer, e comunicamos, porque falamos sempre uns com os outros na cozinha e à mesa. Foi um caso único no país. Paguei o investimento que fiz num ano e meio, com o restaurante sempre cheio, num sítio improvável, onde não há mercado.

Três anos mais tarde, é a vez do DOP. Degustar. Ousar no Porto. Aqui, a degustação é de origem protegida. O conceito advém da forte ligação com a cidade que o viu nascer?
É um restaurante de produto – do bom azeite, do bom presunto… Com um conceito muito elaborado, de um rigor muito grande. Mas a tradição está lá, está no sabor. É um espaço mais evoluído, mais direcionado para o gourmet, no bom sentido da palavra. Tinha de mostrar que sei fazer. E faz sentido ter um restaurante mais encostado à raiz tradicional e outro um pouco afastado desse cariz, mas sempre fiel ao sabor.

Depois acrescenta o Vidago Palace Hotel, um desafio de pleno requinte num lugar com história, onde o Salão Nobre recebe os repastos com a sua assinatura.
É um hotel muito charmoso, lindíssimo. Fiz um menu à altura da nobreza da sala, muito artístico, mas com os pés bem assentes na terra.

Dentro em breve, a sabedoria de Rui Paula irá atravessar o Atlântico, até Recife, a capital do estado de Pernambuco, no nordeste brasileiro. O nome do restaurante é Rui Paula, onde vou investir em recursos humanos, pois é isso que eu faço. É esta a minha mais valia. Tenho de rentabilizar as pessoas em que acredito e em quem apostei; pessoas a quem ensinei e que me ensinaram. Prometo um bom trabalho! •

Leia aqui o artigo sobre o novo spot do chef Rui Paula, a Casa de Chá da Boa Nova.

+ Rui Paula
© Fotografia: João Pedro Rato

Partilhe com os amigos