Lyon / No coração de Rhône-Alpes

Entre o Mediterrâneo e os Alpes franceses há uma cidade a que os romanos chamaram de capital das Três Gálias. Uma cidade de bairros com história e estórias sobre o fabrico da seda, de revoluções e tradições gastronómicas, encaixada entre as colinas Fourvière e Croix Rousse e atravessada por dois rios, dominada por um conceito urbanístico sólido, pela cultura e pela arquitetura, com passagens secretas… Para guardar na memória e para voltar as vezes que apetecer, Lyon.

Depois das boas vindas num fim de tarde salpicado por um céu cinzento, os bons dias da manhã seguinte são acompanhados por um azul celeste envergonhado, mas com o mercúrio do termómetro pronto para uma subida extática. A começar pela parte mais antiga da cidade, classificada de Património da Humanidade pela UNESCO, em 1998. Da igreja de Saint Jean à basílica de Lyon, no alto da colina Fourvière, é feita uma viagem ao passado mais longínquo da urbe, a bordo do funicular. Ao longo da subida há tempo para contemplar objetos de arte pertencentes aos romanos, numa espécie de galeria subterrânea aberta ao público mais atento.

Na colina de Fouvière, no coração da velha cidade romana, a vista do miradouro alcança a cidade de Lyon, com os dois traços verdes, que acompanham o leito dos rios Rhône e Saône, a Praça Bellecour, a Ópera de Lyon, os Alpes no horizonte… No alto da colina está a imponente Basílica de Notre Dame de Fourvière projetada, no século XIX, pelo arquiteto neo-gótico Piérre Bossan, cuja decoração é digna de nota, assim como as quatro torres que ladeiam o edifício, numa alusão a uma fortaleza, erigida em homenagem a Virgem Maria, que teria afastado o exército da Prússia que invadiu Lyon, em 1870. No centro do topo do edifício está representada a oferenda de uma moeda de ouro, numa almofada, a Nossa Senhora, ato simbólico de agradecimento pela supressão da peste, que em 1643, assolou a cidade. No interior, os mosaicos revestem a Basílica de Lyon e ornamentam as sumptuosas paredes com murais alusivos a passagens bíblicas, ao lado de episódios da história da cidade. Um quadro decorativo composto por magníficos vitrais e mármore trabalhado com mestria.

O grande teatro da música

A descida pela colina de Fourvière, em direção ao rio Saône é feita a pé, para melhor conhecer a história da cidade. A viagem no tempo, iniciada no funicular, continua pelo grande teatro e pelo odeon, vestígios que demarcam a presença dos romanos em Lyon, complementados pelo anfiteatro da Gália, datado de 19 d.C., na encosta da colina de Croix Rousse. Hoje, o grande teatro é palco da Festa da Música, um evento eclético no universo dos bons sons com data marcada para muitas noites, entre 4 de junho e 31 de julho de 2013.
No declive das ruas estreitas, o casario de pedras cravadas de conchas convidam a um percurso pelo período medieval, com o cimo do mosteiro de Saint Georges a descoberto por entre as folhagens das árvores frondosas. A passagem pelo Théatre la Maison de Guignol, personagem rude e irreverente criada, no século XIX, por Laurent Mourget, é obrigatória. Mais à frente, depois da catedral de Saint Jean, de estilo gótico, está o Musée de Miniatures et Décors de Cinéma. Antes de chegar ao bairro de Saint Paul, não deixe de visitar o Hôtel de Gadagne.

Para o repasto, reserve mesa num dos muitos restaurantes dos bairros antigos da cidade: os bouchon. Criados pelas mères (mães), as cozinheiras das casas das famílias burguesas, das quais foram dispensadas em meados do século XIX, os bouchon são verdadeiros lugares de culto da gastronomia lionesa para os gourmands de Lyon e os eleitos pelos viajantes e turistas. A lista é extensa, pelo que a escolha se torna difícil… A título de exemplo, recomenda-se o Cafe Comptoir Chez Abel, em Perrache, perto da Confluence. A sul.

Entre o passado e o futuro

Nas ruas de Vieux Lyon, num dos mais antigos bairros da cidade, as traboules mostram recantos que cruzam ruas. Ocultam pátios de casas habitadas, datados do século XV, com galerias repletas de janelas que remontam ao gótico, e poços ancestrais, assim como a gigantesca escada em espiral de La Tour Rose, famosa pelo serpentear quando vista de baixo para cima. Um mundo de beleza enigmática, imerso no segredo pela Resistência Francesa, pela altura da II Guerra Mundial.
Do registo da história, consta-se que as primeiras traboules datam do século IV. No século XVI, o bairro de Saint Georges assiste ao início dos tecelões que, 200 anos depois, rumam para a colina de Croix Rousse, onde as passagens entre pátios exibem a história de cinco séculos de produção de seda a cargo dos tecelões, os canuts. Uma narrativa das páginas dos manuais franceses continuada pelo rei Francisco I que, no século XVI, criou a fábrica de mui nobre tecido em Lyon; e que é contada enquanto são percorridos um número infinito de degraus de uma traboule ao som de música turca. Com a chegada da revolução industrial, a arquitetura das casas obriga a que as mesmas passem a ter um pé direito altíssimo, por causa dos gigantescos teares usados no fabrico da seda, colocados junto às janelas para captar a luz natural ao longo do dia. À noite, o trabalho faz-se à luz dos candeeiros a óleo ou a azeite.
Hoje, na Soierie Saint Georges, o atelier-boutique, do século XIX, pequenos teares rodeados de mostras de tecido em seda e de dezenas de fios, finamente enrolados em carretos antigos, podem ser apreciados com a serenidade merecida, a convite de Ludovic de la Calle, que dá seguimento a tão ilustre legado, como a arte de tecer a seda.

O percurso termina na passagem Thiaffait, um pátio que alberga a Village des Créateurs, composta por lojas de jovens criadores. Espaços arrendados a artistas e designers que, depois de apresentarem o seu projeto à câmara local e do mesmo ser analisado e aprovado, abrem pequenos ateliers, nos quais têm cerca de 18 meses para mostrarem o que valem.

Ou melhor, continua num passeio de Vaporetto (ponto de partida: a Pont de lá Feuillée) até à Confluence, a sul, onde está a nascer a cidade do futuro. Um modelo de urbanismo contemporâneo, repleto de obras de arte urbana como Musée des Confluences ou a futura sede da Euronews. A adicionar ao roteiro.

Uma obra de arte para a arte

A Place de Terreux é o ponto de partida para a visita à deslumbrante obra de arte de Jean Nouvel: a Ópera de Lyon. O arquiteto francês cumpre, com efeito, a missão de renovar o antigo Théâtre Chenavard et Pollet, transformando-o numa enorme sala de espetáculos, dedicada à música, ao bailado, à dança, à ópera… que ocupa um quarteirão de 18 pisos, onde o neoclássico e o moderno convergem na sua plenitude. Cinco dos pisos estão a 20 metros abaixo do solo, convertidos numa caixa gigante de cimento e aço rodeada pelas águas do rio, nos quais um elevador de grandes dimensões transporta, ora para cima ora para baixo, os cenários, os instrumentos entre mil e um artefatos necessários para uma peça de teatro, um concerto, um espetáculo de dança… até à sala onde os atores treinam a voz, a qual apresenta um pé direito titanesco.
O anfiteatro, no piso abaixo do acesso para o exterior, de paredes e chão negros, é o palco eleito para, por exemplo, os concertos de música, como o jazz. O acesso ao bar permanece ocultado por detrás das portas dissimuladas até ao intervalo.
Já no piso 0, o olhar contempla a rua através das arcadas que ornamentam a frente do edifício, uma vista que, à noite é, certamente, mais bela. Mais um andar, o do vestiário, atrás do qual está o elevador que (e)leva a orquestra para o auditório, encimado por colunas em betão, uma estrutura semelhante a uma mão que suporta o palco. A passagem seguinte é feita pela sala anterior ao auditório, um convite faustoso ao romantismo do século XIX num espaço com um pé direito imenso, que casa as cores brilhantes com o dourado dos frescos na parede e no teto, combinados com os castiçais e os apliques. O contraste perfeito do negro mate, opção estilizada de Jean Nouvel que, uma vez mais surpreende com a antecâmara do auditório forrada, desta vez, a vermelho – até mesmo as portas. Por fim, o terraço, no topo da cúpula de vidro, com uma vista deslumbrante sobre a zona antiga da cidade e privilegiada para os jardins da câmara municipal, mesmo em frente à Ópera de Lyon.
E uma vez que o tempo está de feição, há que aproveitar para visitar o Museu das Belas Artes de Lyon e descobrir o Bairro Auguste Comte, com lojas de design, por trás da Place Bellecour ou preguiçar nos jardins contíguos a esta praça quando o sol parece não dar tréguas…

Les Halles de Paul Bocuse: O mercado de gourmets e gourmands

Porque os apreciadores da gastronomia de excelência exigem a distinta arte de cozinhar, a recomendação recai no Les Halles de Paul Bocuse, perto das galerias Lafayette, numa merecida homenagem ao lendário chef francês, com presença assídua no prestigiado Guia Michelin desde há 40 anos. Reaberto em 2006, o espaço comercializa produtos de elevada qualidade provenientes da região de Rhône-Alpes e das circundantes, pelo que se encontra na lista de favoritos de gourmets e gourmands, que diligenciam a compra dos melhores queijos, vinhos e enchidos, das tão cobiçadas trufas, das ostras, dos chocolates, da doçaria refinada e do pão mais conceituado da cidade. Uma viagem plena de aromas e sabores, a começar pela Quenelle, especialidade do século XVIII, semelhante a um souflé com peixe ou lagostim, ou trufas, ou para adoçar a boca…
Sobre a doçaria da cozinha lionesa há que falar dos coussins da centenária Voisin, feitos com maçapão verde a envolver chocolate negro perfumado com licor de laranja. Ou a tarte aux pralines vermelha ou rosa, a qual serviu de inspiração para a criação dos cake aux pralines, uma especialidade da Maison Jocteur, a padaria eleita por Paul Bocuse. A tentação sobe de tom com os célebres macarrons e chocolates de Sève, o mestre chocolateiro e pasteleiro de Lyon cujos bolos e bombons são verdadeiras obras de arte efémera; e com o cocoon, uma deliciosa interpretação dos casulos dos bichos da seda, em maçapão amarelo a abraçar uma pasta de chocolate perfumada com licor de laranja.
Do mar, a diversidade salta à vista, apenas com uma ressalva para os apreciadores de ostras, que têm de aguardar pelo inverno para as adquirir e degustar na companhia de um copo de vinho branco. Sobre o néctar dos deuses, há os vinhos do vale do Rhônes do Louis, que também casam bem com os produtos de charcutaria do Les Halles. A saber: a rosette, o salsichão feito a partir de uma parte do intestino grosso; o jesus, numa alusão a Jesus enquanto bebé, que aparece sempre enfaixado; o sabodet, feito com cabeça de porco e temperado com brandy; e as cervelas, com trufas e/ou pistácios, muito apreciadas no Natal e na Páscoa. E, uma vez que os queijos fazem parte da tradição francesa, há que conhecer os Saint Marcellin de La Mère Richard, entre muitos outros sabores.

O tempo passa a correr e, quando se dá conta, já lá vão onze anos desde a última vez que o deixei no aeroporto de Lisboa para rumar a Lyon. Onze anos passaram e, desta vez, vamos os dois encontrar uma cidade diferente, apaixonada pela história e pela arquitetura. Mais trendy. •

Leia também a reportagem da nossa visita a Saint Étienne e sobre o hotel Mama Shelter Lyon.

A Mutante agradece todo o apoio concedido na organização desta viagem ao Turismo de França  e à easyJet .

© Fotografia: João Pedro Rato