Já diz o ditado “filho de peixe sabe nadar” e Arnaldo Azevedo faz jus ao dito popular. Chef no Palco há quatro anos, é do pai que herda o gosto pela cozinha. Uma aprendizagem que, depois das viagens entre norte e sul – Hotel Sheraton Pine Cliffs, em Albufeira, Mesa, no Porto, Amadeus, em Almancil –, leva na bagagem a experiência para o Palco, o restaurante do Hotel Teatro, no coração do Porto, onde apresenta, com erudição, uma gastronomia exigente e, em entrevista, sublinha a importância do saber fazer e do saber gerir, dois pontos fulcrais na vida de um chef.
Éclair e macarron com foie gras, e esparregado com boletos e trufa
A cozinha entra, muito cedo, em cena na vida de Arnaldo Azevedo.
Os meus pais têm um restaurante há 31 anos e eu ‘nasci’ lá, dois anos depois do restaurante ter aberto as portas. É um restaurante de família – o meu pai cozinha e a minha mãe serve à mesa. Apesar de ter crescido ali, passei – como todos – pela fase em que não sabia o que queria fazer na vida, além de que nunca gostei muito de estudar. Portanto, abdiquei dos estudos e comecei a ficar pelo restaurante. Comecei pela sala. Mais tarde é que fui para cozinha. Sempre gostei de comer – e bem – passei a ir para a cozinha. Sempre que o meu pai fazia algo de novo, dava-me a provar. Nos tempos em que estive a trabalhar no restaurante, passei a fazer algumas brincadeiras diferentes para os clientes. Gostava de ir com o meu pai, de manhã, às compras, ver os barcos a chegar com o peixe.
Com o tempo elegeu a Escola de Hotelaria e Turismo de Santa Maria da Feira para aprimorar a vocação.
Mais tarde, e apesar de pensar que ser autodidata não é crime, pensei em tirar um curso. Num dos dias em que estava no restaurante apareceu o chefe Cordeiro, com que fui ter no fim do almoço para lhe perguntar qual a escola de hotelaria que me aconselhava por aqui, pelo norte. Tinha 16, 17 anos. Das duas opções que me indicou, escolhi uma. Assim, inscrevi-me na Escola [de Hotelaria e Turismo] de Santa Maria da Feira, por ser mais perto, onde fiz três ano de curso de cozinha. Quando entrei, senti-me perfeitamente à vontade, porque pegar numa faca e picar uma cebola era, para mim, uma coisa natural.
Salmonete e lula braseada na companhia de vegetais
A experiência foi um dos pontos fortes no percurso de Arnaldo Azevedo no curso.
Era um pouco diferente dos meus colegas, também por, ao ver um peixe, saber dizer qual era ou ver uma peça de carne e saber que corte tinha de fazer. O problema é que, hoje, os miúdos na escola só conhecem duas peças: o vazio e o lombo. Porquê? Porque tudo chega lá pronto para preparar. Temos de saber, num talho, que carne vamos escolher para confecionar.
Face aos dias de hoje, em que ser chef é uma profissão ambicionada por muitos jovens, que opinião tem sobre os cursos de cozinha do país?
No tempo em que frequentei o curso, os formadores eram mais exigentes do que atualmente, também porque está na moda e, depois, nós é que sofremos. A exigência na cozinha é tão grande, mas os estagiários, hoje, não têm noção do tempo que têm de passar lá. Ou seja, essa informação não é passada devidamente aos estudantes durante o curso, embora haja excepções – há miúdos que saem da escola com a noção do que querem e que querem aprender. Em contrapartida, no meu tempo estávamos bem mais preparados para o mundo real. Os estágios que fazíamos já eram ‘o’ mundo real. Não podíamos chegar um minuto atrasados, senão éramos penalizados. Estar fechado em quatro paredes, num ambiente com muita pressão, onde temos de organizar a nossa vida e tentar perceber reações de elementos da equipa, é uma grande responsabilidade. Por isso digo, muitas vezes, que a palavra chef é-nos atribuída pela responsabilidade que temos, porque cozinheiros seremos toda a vida, chefs podemos vir a sê-lo ou não.
A gestão também deve ser um dos pratos fortes de um chef.
Tudo parece muito fácil quando estamos a trabalhar por conta de outrém, mas quando queremos abrir um espaço que é nosso, o cenário muda. No meu caso, o que aprendi no restaurante do meu pai foi muito importante e essa bagagem trouxe comigo para aqui.
Depois das “viagens gastronómicas” entre a região algarvia e a Invicta, entra em Palco e por cá permanece desde finais de 2010. Como descreve este percurso que conta com quatro anos?
Quando entrei aqui havia quatro elementos na cozinha. A pouco e pouco, passei a ter mais elementos na equipa, para a tornar minimamente sólida e esta solidez tenho-a há cerca de dois anos, sem alterações – neste momento, a minha equipa é formada por dez elementos. Isso é fundamental, porque até posso cozinhar bem, mas se não tenho uma boa equipa não faço nada. Os menus também sofreram mudanças graduais mas, durante muito tempo, fui confrontado com o preconceito de que ‘o restaurante de hotel não presta’. Hoje posso dizer que sou dos poucos no Porto que tenho um restaurante num hotel.
A criação de pratos resulta de ensaios feitos nos bastidores do Palco. Como é organizado o trabalho de equipa?
Quando queremos trabalhar numa carta nova, pergunto aos meus fornecedores o que há daqui por uns tempos, pois trabalho muito com os produtos da época, sobretudo o peixe. Normalmente penso numa proteína – carne ou peixe – e peço sugestões à equipa, ou seja, a partir da proteína escolhida, que podemos nós fazer para construir o prato. Depois fazemos testes, primeiro com a equipa de cozinha e, de seguida, com a equipa de sala, com vinhos, para fazer a harmonização, ver que vinho encaixa com determinado prato. Tenho muito o hábito de trabalhar produtos diferentes e evitar, ao máximo, o arroz e a batata, porque quando as pessoas vêm a um restaurante destes é para ter uma experiência gastronómica diferente. Afinal, estamos no Teatro, por isso, quem aqui vem, vem assistir a uma peça, entrar em cena. A própria estrutura da carta tem um formato que não é trivial, onde o menu de degustação tem um preço final, mas à frente de cada prato está o seu devido preço, pelo que as pessoas podem pedir peças individuais. Ao mesmo tempo, este exercício obriga a que o empregado de mesa tenha uma maior interação com o cliente, com uma explicação, uma apresentação. Um empregado de mesa é um vendedor e há uma grande diferença entre um empregado de mesa e um ‘transportador de comida’. E tem de partir de um princípio que o meu pais me ensinou: ‘Temos de pensar que, à mesa, está alguém que saiba tanto disto ou mais do que nós. Para quê estar a inventar?’
Vitela com terrina de foie gras
Optar pelo equilíbrio dos nutrientes num prato – já disse atrás que evita o arroz e a batata – é tarefa fácil para um chef?
Não é muito fácil, embora veja que as pessoas já comecem a habituar-se um pouco e, quando entram num restaurante como o Palco já sabem que não vão comer batatas fritas nem bateladas de arroz. Atualmente, na alta cozinha, conseguimos combater essa necessidade de alguns clientes com o amuse bouche, com os cumprimentos do chef, e uma variedade de pães, que acaba por ser uma conforto extra e o cliente fica mais confortável. Vejo isto como uma forma de ensinar o cliente a comer; e a cultura gastronómica está a mudar.
Na cidade, por excelência, do vinho e onde desagua o velho Douro, que dá nome à mais antiga região demarcada de vinhos, como é elaborada a carta dos néctares de Baco?
Embora não seja uma carta de vinhos muito extensa, é muito variada. Quando há um novo prato, pegamos em vários vinhos e testamos, para ver qual fica melhor com aquele prato. Aliás, na carta temos, associada ao prato, a harmonização feita por nós. É uma sugestão nossa, pois o cliente pode sempre escolher outro vinho. E esta harmonização é feita por todos – equipa de cozinha e equipa de sala –, porque a comida e o vinho são uma partilha.
Um quinteto protagonizado pelo limão, nas versões mousse, cremoso, sorbet, geleia e gelatina, ao lado de suspiros e crumble
Porque no teatro há sempre estrelas, quais as que protagonizam a carta de inverno?
Há produtos que faço questão de manter, como a vitela com foie gras e o borrego de Portalegre, porque quando mudo de carta, não o faço radicalmente; deixo ficar um ou dois pratos que as pessoas adoram. O meu foco principal é nos peixes e nos mariscos, até porque nem sempre há robalo, por exemplo, daí jogar um bocadinho mais nesta parte. Essa pergunta é pertinente, porque quando venho conversar com os clientes que, quando falam sobre o menu de degustação perguntam-me sempre ‘quais são os seus pratos preferidos?’ Tenho sempre um preferido no menu mas, de um modo geral, gosto de todos.
Ainda em Palco, quando entra em cena a estrela do Guia Michelin?
Há clientes que me perguntam o mesmo e eu respondo ‘estrelas são os nossos clientes’. Gostava. Acho que é o sonho de qualquer cozinheiro. Acho que todos nós lutamos para, um dia, sermos reconhecidos pelo tão afamado guia. É o prémio mais enaltecedor. No entanto, não vivo obcecado com isso, até porque tenho 29 anos e muitos anos pela frente. Portanto, vou continuar a fazer o meu trabalho, com a maior sinceridade sem enganar as pessoas.
Do teatro para o hotel
O antigo Teatro Baquet, datado de 1859, na zona histórica da cidade do Porto, dá lugar ao primeiro – e único, até ao momento – Design Hotel da Invicta, o Hotel Teatro, a concretização de um sonho de um casal inaugurado em maio de 2010. Um hotel intimista, acolhedor e dotado de requinte, com respeito pelo seu passado na história dos palcos, materializada nos ambientes inspirados no teatro, em tons bronze e dourado, com a assinatura da designer de interiores Nini Andrade Silva. Por sua vez, o projeto de arquitectura é da autoria de Miguel Brito Nogueira.
À entrada, um poema de Almeida Garrett, intitulado de “Seus olhos”, dá as boas-vindas aos hóspedes do Hotel Teatro e aos apreciadores de experiências gastronómicas do Palco. A receção reveste o traço de uma bilheteira, onde é adquirido o bilhete para o quarto, com roupeiros tapados por cortinas, bem como a casa de banho, e decorados ora com chaise lounges, que convidam a preguiçar, ora com um sofá num pequeno recanto, entre outras peças decorativas providas de bom gosto.
De novo no piso da entrada, uma alcatifa reproduz fotografias e uma parede revive a plateia do antigo teatro. Candeeiros cénicos e figurinos levados de velhos musicais de Filipe La Féria complementam o cenário que nos conduz o bar – Plateia é o nome – decorado a preceito, com arquibancadas em primeira linha, cadeiras dos anos 1960’, mesinhas de apoio e candeeiros cénicos. As cortinas sobem! Entramos em cena, no Palco, espaço que respira tranquilidade e onde ficamos nas mãos do chef Arnaldo Azevedo. •
+ Hotel Teatro
© Fotografia: João Pedro Rato
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