O coração do Chiado tem Alma

O n.º 15 da rua Anchieta, em Lisboa que, outrora, albergava um antigo armazém do século XVIII da livraria Bertrand, reabriu as portas, desta vez, e acima de tudo, à literacia gastronómica, da cozinha à mesa, com viagens secretas entre pratos e receituários d’aquém e d’além mar, pelas mãos de Henrique Sá Pessoa.

Entremos pela porta de madeira pintada de verde que nos é aberta por quem, com um sorriso, nos recebe como em casa. E entreguemos os agasalhos pois, lá dentro, o ambiente de inspiração monacal concebido pela combinação de luzes com o traço da arquitetura, demarcado pelo chão e pelas arcadas de pedra, e os interiores ditados pelo design escandinavo rematados por duas peças de tapeçaria assinadas pelo arquiteto Tiago Silva Dias e concebidas pela alemã JAB (Joh A. Benckiser) e pela estrutura em ferro que dá lugar à garrafeira. À vista de todos os presentes na sala, para que o legado de Baco, sobretudo de terroir português, seja contemplado por quem muito manifesta curiosidade pela cozinha do Alma, o restaurante de portas abertas desde novembro de 2015, no coração do Chiado lisboeta, e que marca o regresso de Henrique Sá Pessoa – numa parceria com Rui Sanches, fundador e diretor-geral da Multifood –, convidando os comensais a sentarem-se numa mesa despida de preconceitos, pois é este o ponto de partida para uma viagem pelo receituário português e pelas cozinhas por onde andou, com uma reinterpretação requintada, graças ao rigor na escolha do produto e ao respeito pelo sabor genuíno e pela essência de cada ingrediente, fazendo jus ao nome.

Sem secretismos, Henrique Sá Pessoa, o chef, e demais elementos da sala – nove, ao todo – apresentam cada prato sem balbuciar em sintonia com a gentileza e a simpatia requerida num restaurante fine dining – parafraseando os gastrónomos.

A trilogia que é o ponto de partida de um repasto a repetir

Sentemo-nos. À mesa – e desenhada, tal como as cadeiras, por Tiago Silva Dias –, a luz ténue, saída das peças de luminária, também da autoria do arquiteto, incide no prato quão protagonista em palco, começando com a tapioca crocante com chouriço de porco preto e paprica fumada que se desfaz na boca, o marcarron de foie gras e balsâmico – uma combinação notável de sabores – e a brandade de bacalhau, a iguaria oriunda de Nîmes, no sul de França, tendo sido espalhada por outras regiões francesas, bem como pelas regiões basca e catalã, que conquista o palato dos comensais. Em suma, o trio imperdível para abrir o apetite para o que vem a seguir.

Os pimentos assados numa versão finger food

Pimentos assados em pomme de carvão e coulis de pimentos assados. Eis o amuse bouche do chef, uma agradável surpresa na boca, graças à combinação de sabores e à textura suave, tendo mesmo seduzido o palato do pequeno comensal presente na sala, no alinhamento do finger food, o princípio do à-vontade que casa bem com o estilo casual dining deste Alma lisboeta, distinguido com o prémio ” Restaurante Novo do Ano” dos Prémios Mesa Marcada de 2015.

Carapau marinado e ovas de salmão em água de tomate com erva príncipe

Continuemos. Com a colher a degustação é feita ao amuse bouche composto por carapau marinado e ovas de salmão em água de tomate com erva príncipe que, com os pickles de maçã e de pepino, criam a harmonia perfeita no paladar – e na taça, o mote para fazer referência à loiça do Alma, de cores subtis numa harmonia absoluta com os interiores.

Chega a vez do pão – de Mafra – e da broa – de milho – em boa companhia com a viciante manteiga e flor de sal, de Castro Marim, ambos fumados na cozinha do restaurante, e do azeite extra-virgem Alma, do Alentejo.

As origens e os caminhos percorridos por Henrique Sá Pessoa

Choco laminado com puré de ervilhas e caldo de galinha asiático

E eis que o repasto segue em direções opostas com os menus de degustação Origens e Caminhos.

Na origem do primeiro prato do menu Origens está intrínseca a paixão de Henrique Sá Pessoa por duas cozinhas: A asiática e a portuguesa. Assim é apresentado o choco laminado com puré de ervilhas e caldo de galinha asiático, dando início a uma viagem pela Ásia através da simplicidade que caracteriza a gastronomia do grande continente localizado a este. De Baco, Francisco Guilhereme, o escanção, propõe um desafio: Fazer o paring com o espumante Luís Pato Blanc de Blanc, da região da Bairrada, ou o Cono Sur Bicicleta Gewürtraminer 2013, oriundo do Chile, a casta branca que reuniu consenso na partilha com o amuse bouche do Origens.

Leitão confitado, puré de batata doce, pak choi e jus de laranja

Regressemos ao nosso receituário com a reinterpretação do leitão à Bairrada, aqui confitado e bem acompanhado por puré de batata doce, pak choi, jus de laranja, prato que Henrique Sá Pessoa traz desde os tempos em que foi chef no Panorama, o restaurante do Sheraton Lisboa Hotel & Spa, e que passou pelo (primeiro) Alma, em Santos, onde a cozinha portuguesa foi enaltecida de forma ímpar, pela interpretação e pela apresentação saídas das mãos do chef. Por sua vez, o par eleito foi o espumante assinado pelo reconhecido produtor bairradino Luís Pato.

Porém, o menu Origens têm, aqui, outra opção: Calçada de bacalhau, puré de cebolada e gema de ovo.

A refrescante sobremesa sublimada pela maçã Granny Smith

Passemos à pré-sobremesa – a mesma do menu Caminhos –, com o refrescante sorbet de maçã Granny Smith, merengue de caipirinha e pedaços de maçã Granny Smith.

A tarte Tatin de pêra rocha pelo chef pasteleiro Telmo Moutinho

E terminemos com a imperdível tarte Tatin (inventada pelas irmãs Tatin, em França, no início do século XX) de pêra rocha com gelado de baunilha e cardamomo, preparada por Telmo Moutinho, o chef pasteleiro, que trabalho com Alain Ducasse, Jöel Robuchon e Heinz Beck, bem como na casa francesa Ladurée e na célebre Confeitaria Nacional, em Lisboa.

Vieiras com molho romesco, batatinha fumada, vinagrete de tinta de choco, crumble de pão seco e pata negra

Por sua vez, o menu Caminhos leva-nos a deleitar-nos noutro rumo, por Portugal, com um vieiras com molho romesco, batatinha fumada, vinagrete de tinta de choco, crumble de pão seco e pata negra, que casa bem com um Vinho Regional dos Açores, o Curral Atlântis Colheita Selecionada Verdelho e Arinto 2014, proposto por Francisco Guilherme.

Os tons quentes de um entrecôte de novilho que rima com o frio do inverno

No segundo prato, o opção recaiu no suculento prato de entrecôte de novilho, mousseline de aipo, pickle de beterraba, molho barbecue e mostarda à antiga, uma sonata ao inverno que faz lembrar o verão – podendo a escolha ser feita entre este e o filete de pescada com alho francês, avelãs, puré de batata e molho hollandaise com dijon. E do vinho veio outra surpresa: Quinta de Pancas Cabernet Suavignon 1999 Special Edition, um monocasta numa garrafa numerada (n.º 6295).

Bomba de chocolate e caramelo salgado com sorbet de avelã

Segue-se a pré-sobremesa, com a maçã Granny Smith como ingrediente principal, e o rematar do repasto, desta feita com uma troca da laranja e amêndoa, gelado, biscoito, curd e emulsão de amêndoa amarga pela bomba de chocolate e caramelo salgado, para realçar o sabor, com sorbet de avelã, um trio de ingredientes que converge numa espiral de sabores quentes que rimam com todas as estações do ano.

De lado ficou o menu à la carte e o Alma, sendo este a interpretação de uma viagem maior por múltiplos sabores e cozinhas, com início e término na gastronomia portuguesa que Henrique Sá Pessoa tão bem conhece.

E tudo é servido com a serenidade e o tempo devidos, no n.º 15 da rua Anchieta, em Lisboa, de terça a domingo, entre as 19 e as 23 horas, com reserva a marcar através do  213 470 650.

A ir. Bom apetite! •

Leia aqui a entrevista ao Chef Henrique Sá Pessoa.

+ Alma
© Fotografia: João Pedro Rato

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