Pejada de estórias e da História, Freixo de Espada à Cinta é banhada pelas águas do Douro, onde o leito que carrega oliveiras e acolhe a fauna é contemplado pelos olhares mais curiosos assim que a Primavera sobe ao Hemisfério Norte, e onde Baco deixou um legado a explorar.
Do Penedo do Durão contempla-se as estonteantes montanhas erguidas pela Natureza do lado de lá da fronteira
São muitos os quilómetros que se percorrem até chegar a Freixo de Espada à Cinta, a vila transfronteiriça do Distrito de Bragança que permanece de de olhos postos na vizinha Espanha. E assim acontece quando se está no vetusto miradouro Penedo Durão, em Poiares, no Parque Natural do Douro Internacional, sustentado por admiráveis paredes rochosas que preguiçam rio Douro adentro e pelo qual navega uma pequena embarcação de recreio.
A Praia Fluvial da Congida é o ponto de encontro para uma viagem pelo rio Douro
A saída é feita na Praia Fluvial da Congida, formada pela barragem de Saucelle, na província de Salamanca, ornamentada por uma paisagem cravejada pelo à-vontade da Natureza e cujo acesso é delineado pelas sinuosas curvas e contracurvas que vão desde o centro da vila de Freixo de Espada à Cinta à beira do rio, localizada no lado oposto das Arribas del Duero.
A terra trabalhada pelas mãos do Homem denota a geometria cuidada da vila raiana portuguesa
Do lado de cá comanda a horta vincada pela mão humana e complementada por pomares e olivais, pois a exposição solar é de feição; do lado de lá, com a encosta virada a Norte, a Natureza persiste no seu estado mais puro.
A bruma matinal cria um véu subtil sobre as terras da vizinha Espanha
Contrastes que demarcam a fauna, como a cegonha preta, por exemplo, que prefere o lado bravio do leito do rio para nidificar, ou a águia real, os grifos, os abutres do Egipto, os falcões peregrinos ou, por outro lado, as lontras cuja população conta um número considerável, registo que se traduz num bom indicador no que toca à boa qualidade da água. Por essa razão, as embarcações munidas com motor de dois tempos estão interditas, ao contrário da canoagem, modalidade praticada por quem frequenta o Centro de Alto Rendimento de Remo do Pocinho, em Vila Nova de Foz Côa, e por quem aprecia fazê-lo livremente, assim como a pesca que, mediante licença – e engenho – poderá contribuir para o repasto.
Água fora e rio acima, a viagem faz-se acompanhada de uma paisagem mística, durante a qual os forasteiros são incitados a contemplar a aldeia de Mazouco, as primeiras gravuras rupestres do Paleolítico que se encontram ao ar livre em toda a Europa e foram descobertas no início dos anos 1980’.
Paleolítico à parte, falemos da História de tempos remotos, na qual consta a lenda do freixo secular em cujos ramos D. Dinis, exausto das longas jornadas à procura do filho rebelde, D. Afonso, pendurou a espada, deitando-se para descansar, descanso esse interrompido por um sonho que o fez libertar-se da sôfrega vontade de pelejar com o seu descendente. Eis o porquê do nome: Freixo de Espada à Cinta.
Os teares do Museu da Seda e do Território mostram como se desfiam, à mão, os finíssimo fios de seda
Aqui, o Museu da Seda e do Território, no centro histórico, são o testemunho de uma era em que a seda fora uma importante actividade económica local e continua a ser trabalhada de forma tradicional, e acolhe o acervo arqueológico e geológico local a par com a explanação de cada época numa vila que, segundo se diz, é caracterizada pelo estilo Manuelino – há quem diga que foi daqui que saiu Duarte d’Armas, arquitecto do Rei D. Manuel I, para Lisboa, assim como os mesmos mestres pedreiros, com a finalidade de erguer o Mosteiro dos Jerónimos. Afinal, a Igreja Matriz é a interpretação viva da arquitectura manuelina, bem como a fénix e a videira, símbolos que ornamentam as janelas manuelinas e, por outro lado, representam o renascimento dos judeus que saíram de Espanha e, opulentos, investiam em arte, cultura… e na arte da construção. A prova estava na altura das casas onde residiam, detalhe que deixava transparecer quão ricos eram os que erigiam edifícios maiores.
Maritávora: Património com 150 anos
Manuel Gomes Mota (à esquerda) é o produtor da Quinta de Maritávora
Da videira do manuelino serve-se o mote para abordar o vinho que é produzido nesta vila raiana transmontana. Comecemos pelo Maritávora, nome de uma empresa vínica secular que perdura desde o tempo de José Junqueiro Júnior que, há 150 anos, adquiriu uma mão cheia de quintas, da qual se destaca uma vinha velha mandada plantar pelo proprietário em 1890, cujas uvas dão origem ao Maritávora Grande Reserva Vinhas Velhas branco.
Da história consta o nome do poeta Guerra Junqueiro, trisavô de Manuel Gomes Mota, que representa a quinta geração do Maritávora. “Somos cinco irmãos” e “somos muito ligados à terra”, explica o nosso anfitrião. A casa de cor alva dita o desvelo e as quintas mantêm-se na posse da família, “um património que queremos preservar”.
Os lagares seculares da quinta espelham o peso do tempo
É também o caso dos lagares reservado para a pisa pé das castas tintas. “Dizemos que esta é a primeira adega do Douro, porque a região demarcada começa aqui”, assegura Manuel Gomes Mota.
Quanto ao vinho, a mestria da fórmula cabe a Jorge Serôdio Borges e a soma da produção totaliza as 40 mil garrafas por ano.
O legado que vem da terra
A versatilidade da Bio-Freixo reflecte quão multifacetado é Gilberto Pintado
Chama-se Bio-Freixo e tem à frente Gilberto Pintado que, do terroir da vila raiana faz vinho, azeite, cerveja… e vinagre. “Já somos autónomos na produção de lúpulo” e, para este ano, prevêem a venda desta planta herbácea plantada numa propriedade de 20 hectares, em Quintanilha, e utilizada no fabrico de cerveja artesanal que, neste caso, foi baptizada de Freixo Beer. “Só leva água, cevada e lúpulo”, diz acrescentando a informação sobre a medalha de ouro conquistada no 1.º Concurso Nacional de Cidras e Cervejas de 2016.
As barricas de vinho repousam na cave que se encontra sob os nossos pés
Sobre o vinho, de produção biológica, revela ter começado a produção em 2004, “logo em modo biológico”. Hoje, a soma é de 15 mil litros de vinho tinto por ano e cerca de 1500 litros de rosé; e dois mil litros de cerveja. Porém, Gilberto pintado não pára por aqui, contando a história do incidente que tiveram com uma cuba de rosé: “Ficou para vinagre e para a madre, a mãe dos vinagres”, ofício que, em 2014, lhe valeu a medalha de ouro. Quanto ao azeite, o nosso anfitrião enaltece o seu virgem extra com um travo picante, enquanto a prova de vinho e azeite decorre na adega, em boa companhia.
O tão merecido descanso
“O Pastor”, o poema da autoria de Guerra Junqueiro está a vista de quem passa nas estreitas ruas de Freixo de Espada à Cinta
Pertencente, outrora, a um juiz conselheiro, a Casa do Conselheiro, no centro histórico de Freixo de Espada à Cinta, assim ficou conhecida, tendo acolhido também, outros dois proprietários até parar às mãos de Patrícia Lopes.
Engenheira Química, Patrícia Lopes trocou terras a sul para rumar a Freixo de Espada à Cinta e com o marido, engenheiro electrotécnico, decidiram avançar com o projecto de turismo rústico em Julho de 2015. Depois das intervenções efectuadas, os quatro quartos mobilados e decorados de acordo com tempos idos, sem fugir ao conforto dos dias de hoje para, de manhã acordar e preparar o corpo para o repasto matinal e, em simultâneo desfrutar, desde cedo, da tranquilidade desta vila raiana, com um passeio pedestre pela histórica calçada de Alpajares, vestígio que dita a presença dos romanos por aqui, e onde a cozinha conserva a memória das sopas (de espargos, de tomate ou de batata) e das merendas que as pessoas levavam para o campo, com um evento marcado para Outubro, assim como o cabrito de pasto, o pão, os enchidos e os queijos. E a vila que mantém a homenagem ao reconhecido deputado, jornalista, escritor e poeta da terra, Abílio Manuel Guerra Junqueiro num busto erguido no centro histórico e num poema escrito em tributo a uma das profissões quase caídas em desuso.
É ir. Boa viagem! •