A ilha das várias vidas elevou-se, afundou-se e ao palco do Atlântico Norte voltou a subir. Um testemunho de resiliência para os marienses, que vão estudar ou trabalhar para fora e à terra que os viu nascer regressam, para darem continuidade às suas vidas.

Santa Maria é a mais velha das nove irmãs e a mais oriental e meridional do arquipélago dos Açores. Com apenas 97,4 km2 e uma população de pouco mais de cinco mil habitantes distribuídos por cinco freguesias que constituem Vila do Porto, o único concelho da ilha. Povoada há mais de 500 anos, os primeiros habitantes provinham do Alentejo e do Algarve.
A agricultura foi uma das primeiras atividades económicas desenvolvidas na ilha. Ainda hoje, a agropecuária é a base da economia, sendo praticado o cultivo em pequenas explorações de forrageiras, batata, vinha, cereais e leguminosas, prados e pastagens.
Na pecuária, destaca-se a criação de suínos, de aves e bovinos para abate e não para a produção de lacticínios, prática comum noutras ilhas do arquipélago. A aeronáutica e o turismo são atividades económicas cada vez mais importantes em Santa Maria.
Marienses é nome dado aos de Santa Maria
“A melhor maneira de conhecer um lugar é estar nos sítios com as pessoas que nele habitam. É esta genuinidade que caracteriza o povo açoriano e que faz com que cada visita seja irrepetível”, afirma Bárbara Chaves, presidente da Câmara Municipal de Vila do Porto. Visitar um local pressupõe conhecer a história e a cultura das pessoas que habitam um território geográfico constituído por património natural e construído.
Chegados ao aeroporto fomos recebidos de braços abertos pela Marina Almeida das Casas Açorianas, pela Helena e pelo César Moura, ambos do município de Vila do Porto, e pelo Miguel Marques, da empresa de atividades turísticas Smatur, que nos guiou pela história geológica, geográfica e sociológica de Santa Maria.

A nossa primeira paragem é na Agromariensecoop, cooperativa criada em 2006, que integra produtores de produtos da ilha, como a meloa, a carne, o vinho e o mel. Duarte Moreira, o presidente, conta-nos que um dos primeiros passos da cooperativa foi a certificação da Meloa IGP de Santa Maria. Recentemente criaram o Santa Maria Wine Lab, projeto que une 30 produtores, coma finalidade de recuperar a vinha tradicional desta ilha açoriana.
“Santa Maria tem vinhas em praticamente todas as encostas. Tínhamos como objetivo ter um vinho certificado, conseguimos três – um branco, um branco de castas tintas e um rosé – que serão apresentados no dia 18 de maio de 2024”, refere Duarte Moreira.
Na produção de mel, que esgota muito rapidamente, têm cerca de 20 produtores. A Meloa IGP de Santa Maria é vendida em todas as ilhas açorianas, exceto na Graciosa, que também tem a sua meloa, bem como numa cadeia de lojas em Portugal Continental.
A terra é ocre escuro. Para Duarte Moreira “não é o clima, mas o solo que diferencia os produtos de Santa Maria”.

Enquanto percorremos as estradas da ilha, o Miguel Marques, chama-nos a atenção para as casas caiadas de branco e as cores que adornam as portas e as janelas. Cada freguesia tem a sua cor: azul-anil em Santa Bárbara, amarelo em São Pedro, vermelho-almagre em Almagreira, verde no Santo Espírito e o cinza em Vila do Porto.

As casas típicas são de quatro águas com chaminés largas e retangulares de influência alentejana ou com chaminés circulares trazidas pelos algarvios, e que vão predominando por serem mais adequadas aos ventos que sopram de várias direções na ilha.
Natureza, o prato principal da ilha de Santa Maria
Croac, croac, croac é a banda sonora interpretada majestosamente por uma orquestra de sapos e rãs, que acompanha a paisagem. A presença destes animais significa que o ambiente por ali está equilibrado e de boa saúde. Em cada charco ou ribeiro lá estão os anfíbios, também eles com dois ciclos de vida – a aquática e a terrestre –, camuflados pela vegetação, saltando em grupo ao menor distúrbio humano.
Passado o breve tumulto rapidamente regressam aos seus lugares dando continuação ao croac, croac, croac… Quando chega a hora de nos entregarmos ao sono, é o som que nos embala para um repouso tranquilo perturbado apenas pela a altivez dos galos madrugadores, acompanhada pela luz do sol, que anuncia o nascer de um novo dia. É um movimento circular que se alterna entre os dias e as noites.

Circular foi também a ideia que, em 2012, levou cinco jovens marienses – Hélvio Braga, Nelson Moura, Aléxio Puim, João Brandão e Henrique Loura – a criar uma grande rota que circundasse toda a ilha. Partindo dos caminhos ancestrais, que outrora ligavam os vários lugares ou serviam de acesso aos terrenos de exploração agrícola, traçaram um percurso à volta da ilha, com cerca de 80 quilómetros.
Em 2013, fizeram o teste e, em 2014, a GR 01 SMA, a primeira grande rota circular dos Açores, foi homologada pela Secretaria Regional do Turismo, colocando a ilha de Santa Maria no mapa dos amantes da caminhada na natureza e do trail. Nós também quisemos experimentar e fizemos, para já, o trilho que liga o Miradouro da Praia – Macela, com vista para a praia Formosa, e Vila do Porto.

Mas há muito mais para descobrir, de preferência a pé ou de bicicleta nesta ilha do sol. Do Barreiro da Faneca, um deserto vermelho que, ao contrário de outros, está a ficar mais “verde” às vistas arrebatadoras do Pico Alto, o ponto mais elevado da ilha, com 590 metros de altitude. Caminhe com vagar pelas veredas e contemple as cascatas do Aveiro ou da Ribeira de Maloás.

Observe aves como a Estrelinha-de-Santa-Maria, a única subespécie endémica da ilha e a ave mais pequena da Europa, ou o Cagarro, provavelmente a ave mais conhecida dos açorianos. Olhe com atenção para as vistas do miradouro da Vigia da Baleia ou da Ponta do Castelo, com vista para o Farol de Gonçalo Velho envolto num anfiteatro de quartéis de pedra onde em breve se poderá voltar a ver vinha.

Recupere energias, deixando-se preguiçar nas praias de areia dourada de São Lourenço ou da Formosa, ou nas pequenas enseadas de pedrinhas que irá encontrar, possivelmente ainda mais sossegadas. Mergulhar nas águas azul-turquesa, para observar mantas e jamantas, tubarões e muitos outros peixes.
Ao contrário do que estava à espera, a paisagem da ilha em geral estava verdejante, talvez por estarmos no final do inverno, ou, segundo ouvimos, por causa dos verões mais húmidos. A temperatura estava bastante agradável sem grandes oscilações do dia para a noite.
Potencial enogastronómico a explorar
No que toca à arte de comer, estávamos à espera de encontrar na restauração mais produtos locais. A existência de espaços de restauração, com oferta destes pratos ou outros confecionados com produtos da ilha, é uma forma de enriquecer a viagem dos visitantes e acrescentar valor à economia local. Ao invés de se vender tudo para fora, acreditamos que seria interessante reservar uma parte para vender localmente, através de parcerias entre produtores e comerciantes. É uma forma de diferenciação, neste mundo cada vez mais homogéneo, e são cada vez mais os que se deixam conquistar pelos paladares, levando-os a descobrir novas paragens.

Lemos num mapa turístico que os pratos típicos de Santa Maria são o picado de borrego, o torresmo de caçoila, a sopa de Espírito Santo, a alheira de Santa Maria e o caldo de nabos. Da lista, conseguimos comer o caldo de nabos, um prato semelhante ao cozido à portuguesa, mas confecionado com o nabo de Santa Maria, uma espécie mais pequena e de cor escura.
A refeição decorreu no Bar do Blues, localizado nos Anjos, e foi apadrinhada por Bárbara Chaves, presidente da Câmara Municipal de Vila do Porto, que nos falou de diversas questões do dia a dia dos marienses, salientando que, “mais do que cada imagem deslumbrante, são as histórias das pessoas que reforçam as suas particularidades e a sua identidade”.
Convém salientar que o Caldo de Nabos não está na ementa do Bar do Blues, portanto, será melhor procurá-lo noutro local ou perguntar a António Monteiro, organizador do importante festival Santa Maria Blues.
É ao lado do Bar dos Blues, situado próximo da ermida onde Cristóvão Colombo celebrou uma missa, em 1493, aquando da paragem na ilha durante a viagem de regresso à Europa, depois da descoberta da América, que se realiza o mais antigo festival dedicado ao estilo musical surgido no final do século XIX, com origem no folclore dos negros do sul dos Estados Unidos da América. O Santa Maria Blues comemora em 2024 a vigésima edição e acontece de 18 a 20 de julho.

Da música para a doçaria, por estas terras encontrámos cavacas, melindres e biscoitos de orelha, biscoito típico mariense, acabado de sair do forno na Cooperativa de Artesanato de Santa Maria . Constituída em 1989, esta entidade tem como objetivo dinamizar a economia da freguesia de Santo Espírito e não deixar perder as tradições artesanais da ilha de Santa Maria, nas áreas da tecelagem, do fabrico de pão e da doçaria.

E por falar em recuperação de tradições, vale a pena, um parênteses para conhecer o Só´´ atelier , criado pelas artesãs Tânia Bairos, Márcia Santos, Leonor Pimentel e Sofia Moreira, no antigo espaço do Armazém Lisboa, na artéria principal da Vila do Porto. Só´´, escreve-se assim mesmo e, na “linguagem mariense”, quer dizer “nem pensar nisso”, como se fosse algo impossível de concretizar.
No entanto, estas quatro forasteiras – a única que nasceu na ilha foi a Tânia Bairos, mas também já viveu fora –, acreditam no potencial de Santa Maria. Aqui procuram recuperar produtos da terra e promover a criação artística através de cursos rápidos ou de curta duração, bem como exposições próprias e de outros artesãos da ilha. Tânia Bairos, por exemplo, trabalha o barro, uma matéria-prima abundante na aldeia de Almagreira e que, em tempos, foi muito importante para a economia local, sobretudo, quando vendida para a ilha de São Miguel.
Outro forasteiro que se apaixonou por Santa Maria – ou por uma mariense com quem acabou por casar – e se tornou artesão cervejeiro, foi Marc Olivier. Natural de Munique, terra alemã da cerveja por excelência, onde era taxista e enjoava com o cheiro das cinco fábricas cervejeiras da cidade, em Santa Maria criou a Travessa, um restaurante de comida simples e descontraída. Anos mais tarde, sentiu saudades do aroma da cerveja e começou a “divertir-se” com maltes, lúpulos e leveduras num espaço da Incubadora, no Centro de Desenvolvimento e Inovação Empresarial de Santa Maria.
Experimentou novos sabores e, desafiado por um responsável da Agromariensecoop, fez uma cerveja artesanal, com base na meloa de Santa Maria. Em 2020, esta experiência resulta na Nossa , oficialmente a primeira fábrica de cerveja da ilha de Santa Maria. Atualmente tem muitas variedades, como a Azorean IPA – American Style Fruit Beer, a Melon Ale – American Style Fruit Beer, a Raspberry Ale – American Style Fruit Beer, a American IPA, garrafa e pressão, a Old Bavarian Lager – European Lager, garrafa e pressão, a Camponesa – Farmhouse Ale, aDark Vienna Lager, a Bavarian Wheat – Traditional Wheat Beer, a Dark Bavarian Wheat – Dark Wheat, a Belgian Brown Ale ou a Delirium Azoreanum – Strong Blond Ale.
Estas cervejas estão disponíveis nos restaurantes do Marc – a Travessa, de comida simples e descontraída, situado no centro da Vila do Porto, e o Beach-Parque na Praia Formosa –, bem como na loja online da marca.
Sem nos afastarmos do centro da vila, visitámos o Central Pub. Trata-se de um espaço histórico de restauração, bar e música, que abriu as portas em 1947. Naquela época era frequentado apenas pelos americanos que trabalhavam no aeroporto. Os interiores em madeira, a decoração e a iluminação são ao estilo dos pubs ingleses, enquanto a comida é marcadamente americana. Mesmo as pizzas que lhe deram fama ao longo dos anos são do tipo americano.
Não muito longe dali, fica o restaurante Mesa d’Oito, com propostas de apresentação mais contemporânea dos pratos, mas a precisar de um ajuste na iluminação, para tornar o ambiente mais confortável. Um pouco mais a baixo fica o o restaurante do Clube Naval, ideal para almoçar, petiscar ou jantar peixes, mariscos entre outros clássicos, com vista para o porto e para a marina da Vila do Porto.

Agradecemos às Casas Açorianas pela oportunidade de conhecermos mais uma ilha açoriana, depois da ilha do Pico, em 2021, e pela organização destes encontros, que nos incitam a refletir sobre a importância de viajar, tanto para os que se fazem à estrada, como para os que os recebem. O equilíbrio é desejável e muito importante para que a palavra sustentabilidade em todas as suas vertentes não se torne apenas um chavão.

Viajámos na companhia da Sata/Azores Airlines, entidade que tem um papel crucial no desenvolvimento dos Açores, e fomos recebidos de forma calorosa pelas equipas do município de Vila do Porto e da empresa de atividades turísticas Smatur, que nos acompanharam ao longo desta visita.
Boas descobertas!