Comida, vinho e Cante. O Vinho na Vila fez-se em Vila Alva! 

Para lá do Dia de São Martinho, pôs-se o vinho de vários cantos do país nas adegas desta aldeia do Alentejo, onde dois chefs fizeram justiça ao património gastronómico da região.
Mesa posta na Adega XXVI Talhas para os “Chefs na Vila”

Pelo segundo ano consecutivo, a organização do Vinho na Vila, em Vila Alva, no concelho de Cuba, distrito de Beja, esteve nas mãos de Luís Gradissímo, rosto do Enóphilo e gastrónomo, para quem o vinho e a comida são indissociáveis. “O melhor palco que podemos dar ao vinho é a mesa”, daí que a comida “surja naturalmente” neste festival. A mesma opinião é partilhada por Daniel Parreira, um dos mentores deste evento (juntamente com a irmã, Alda Parreira, e os amigos Ricardo Santos e Samuel Pernicha), para quem, com boas harmonizações, o vinho também eleva o sabor dos pratos.”

Anfitrião da primeira noite do Vinho na Vila, a par com Alda Parreira, e a mãe, Genoveva Santos, Daniel Parreira abriu as portas da Adega XXVI Talhas, para receber os “Chefs na Vila”. Uma estreia do Vinho na Vila, “porque quisemos reforçar a questão da gastronomia”, diz-nos Luís Gradíssimo. “O grande objectivo foi proporcionar mais uma experiência a quem visita Vila Alva e a região no fim-de-semana do evento. Achamos que trazendo chefs de renome do panorama nacional conseguimos aliar a cozinha de topo ao ambiente típico de uma adega de talhas, casando tudo com harmonização de vinhos em todos os momentos da refeição e ao som do inevitável Cante alentejano. Reunimos assim todos os ingredientes para um jantar singular e com um ambiente em grande”, acrescenta Daniel Parreira.

Este momento gastronómico decorreu na noite de 10 de Maio, entre talhas e tarecos (nome atribuído às talhas mais pequenas), em ambiente rústico, como manda a cartilha da Vila Alva, e esteve a cargo de dois cozinheiros: João Narigueta, chef dos restaurantes Poda e Híbrido, localizados, respectivamente, em Montemor-o-Novo, de onde é natural, e Évora (o primeiro de matriz tradicional e o segundo de cariz experimental), e Filipe Ramalho, chef do restaurante Páteo Real, situado em Alter do Chão, vila do distrito de Portalegre. “Este jantar já estava prometido há algum tempo”, avança João Narigueta, que, face ao desafio de Luís Gradíssimo, para fazer este jantar no âmbito do Vinho na Vila, propôs o nome de Filipe Ramalho. Ambos são confrades na Confraria Gastronómica do Alentejo, daí terem “trazido a gastronomia alentejana, tal como fazemos nos restaurantes Poda e Pátio Real”, explica o chef montemorense. “É comida tradicional, mas a preparação de cada prato é feita com técnicas que aprendi. Não servem para corrigir, mas para equilibrar sabores”, salienta Filipe Ramalho.

O Alentejo que se quer no prato
Os chefs João Narigueta (restaurantes Poda, em Montemor-o-Novo, e Híbrido, em Évora) e Filipe Ramalho (restaurante Páteo Real, Alter do Chão)

De uma assentada, foram servidas duas entradas neste desfile de carácter regional dos “Chefs na Vila”. Das mãos do chef João Narigueta saiu a cabeça de xara, receita inspirada nos procedimentos culinários de Domingos Rodrigues, autor do livro “Arte de Cozinha”, compêndio dividido em quatro partes, escritos entre finais do século XVII e início do século XVIII. À época conservada em sal e vinagre, a preparação da cabeça de xara preserva a essência através do uso de técnicas de confeção desenvolvidas ao longo do tempo. Por cima de cada fatia de cabeça de xara, cortada finamente e elaborada a preceito – seja em sabor, seja em textura –, o chef nascido em Montemor-o-Novo colocou cebolinho e flor de cebolete, “para cortar a gordura”, justifica. À mesa, comeu-se cada fatia em pão alentejano. 

Filipe Ramalho levou a tarte de farinheira de castanha com pêra bêbeda da qual é autor. “A receita da massa é a mesma da receita dos SS”, biscoito alentejano, elucida o chef de Portalegre. Já a farinheira de castanha é um produto desenvolvido em parceria com a Salsicharia Canense, casa de saber-fazer de D. Octávia, como é carinhosamente chamada pelos cozinheiros do Alentejo e de outras regiões do país. A tarte é terminada com marmelada de uma produção de marmelos de Beja”, continua o jovem chef, que quer implementar a tarte de farinheira de castanha com pêra bêbeda “como produto da região de Alter [do Chão], avança.

Pão de massa mãe e conduto, dueto bem conhecido do restaurante Poda, também fez parte do menu do “Chefs na Vila”, assim como o superlativo feijão com catacuzes, “planta muito comum na Península Ibérica”, expõe João Narigueta, e poejo, combinação infalível a respeito da qual pouco sobrou. Inspirada na típica sopa de cação, Filipe Ramalho decidiu fazer uma sopa de enguia fumada, com pão alentejano, um portento de sabores, que conquistou quem estava na nossa mesa. O registo de sabedoria culinária foi partilhado através das migas gatas ligeiramente húmidas, com bacalhau assado na brasa, de João Narigueta… mais houvesse! 

Brilhou ainda o arroz amarelo de miúdos, com caril, avelãs, coentros, poejo e açafrão de Alter, acompanhado por cachaço de borrego, do chef de Alter do Chão. Sobre esta parte do borrego, Ricardo Santos, enólogo do projecto XXVI Talhas, explica que ainda hoje muitos alentejanos cortam pedaços do cachaço deste animal com uma navalha de bolso, para acompanhar o copo de vinho ao balcão das tabernas da região que resistem aos sinais dos tempos.

De novo juntos, João Narigueta e Filipe Ramalho servem as sobremesas. O primeiro apresentou a enxovalhada, bolo típico de Montemor-o-Novo feito a partir do “aproveitamento da massa azeda do pão, com banha e nozes”, aqui decorada com casca de laranja e regada de azeite; o segundo deu a provar a encharcada de forno, feita pela mãe.

“Sem o copo não bebo,
Sem o copo não bebo,
Sem a pinga não sou nada”
Os vinhos servidos no jantar preparado pela dupla de chefs alentejanos

O Cante Alentejano, reconhecido, há dez anos, pela UNESCO, como Património Imaterial da Humanidade, não faltou ao longo do jantar, através de várias modas entoadas à capela, entre brindes com os vinhos que harmonizaram os pratos da autoria dos “Chefs na Vila”. Da casa, estiveram o Mestre Daniel branco 2022, elaborado com as castas Antão Vaz, Perrum e Roupeiro, e o Palhete Tareco 2023, um single vineyard, nas palavras de Ricardo Santos. De fora, marcaram presença o projecto Mainova, do Vimieiro, no concelho de Arraiolos, distrito de Évora, com Mainova Encruzado 2020 e o Mainada Baga 2021. A esta dupla vínica, Bárbara Monteiro, rosto deste projecto vinhateiro, e o marido, João Santos, juntaram o azeite extra virgem Early Harvest. Feito a partir das variedades Cobrançosa, Cordovil e Galega, é apresentado em garrafa em cerâmica produzida em Portugal, cujo rótulo ostenta a imagem da mais ancestral oliveira da propriedade, a Herdade da Fonte Santa. 

Do Alentejo para Lisboa e Península de Setúbal, as duas últimas foram representadas, respectivamente, pelas referências Quinta dos Plátanos Álvaro Pequenino branco 2022 e Moscatel de Setúbal 2021. As duas referências são do produtor Joaquim Arnaud, com sede na propriedade da família, em Pavia, concelho de Mora. A harmonização coube a Luís Gradíssimo, Daniel Parreira, ao chef João Narigueta e ao escanção e proprietário do Poda, Miguel Dominguinhos.

A arte de pesgar
José Miguel Figueiredo, aqui com Paulo Lopes, aprendeu a arte de pesgar com o pai

Já no dia 11 de Maio, o ponto de partida do Vinho na Vila aconteceu na Adega XXVI Talhas, onde 26 talhas em barro e uns quantos tarecos estão dispostos junto às paredes deste espaço. A mais antiga é de 1845. O interior de cada um destes recipientes foi revestido a pez (resina de pinheiro, mel e azeite), cuja fórmula José Miguel Figueiredo, proprietário da Casa das Talhas, em Asseiceira, no concelho de Tomar, de 53 anos, tão bem conhece. Desde os 12 aprendeu, quando aprendeu a pesgar com o pai. “Este pez é certificado”, garante o mestre das talhas, apontando para a penela, negra por fora, disposta em duas filas de tijolos, onde, por baixo, está a lenha, que serve para aquecer o referido trio de ingredientes.  

“A pez é despejada da panela para a talha. Depois, rolamos a talha e tiramos o excesso com uma colher própria, a ‘boneca’”, afirma José Miguel Figueiredo, que tem Paulo Lopes como o seu braço direito nesta operação. Terminado o processo, “o pez dura 25 anos, desde que as talhas sejam cuidadas e lavadas como deve ser”, sublinha.

Paralelamente à acção de pesgar, José Miguel Figueiredo aprendeu a arte de fazer talhas em barro, ofício intrínseco à família desde há 250 anos, com base em “registos que estão na paróquia de Asseiceira do meu bisavô, Guilherme Figueiredo”. “Estas coisas têm de ser feitas por gosto”, reforça, explicando que o barro é de Asseiceira, bem como a água utilizada na produção manual de cada talha. A preparação da principal matéria-prima é feita na fieira extrusora e a elaboração do objecto decorre na roda do oleiro. Cada peça de barro demora tempo até estar concluída de acordo com o tamanho. “Fazer um tareco de 120 litros dura 15 dias”, contando com a ida ao forno, a cerca de 930 °C. “No Inverno dura mais um pouco, porque a talha tem de ir à estufa, por causa do frio e da humidade”, acrescenta José Miguel Figueiredo.

Às quatro da tarde, na adega
Francisco Quaresma abriu as portas da Adega do Guel, para o evento Vinho na Vila

Vila Alva é o exemplo vivo da recuperação do processo de vinificação da uva em talha de barro reflecte tamanha vontade de fomentar a longevidade das origens deste legado ancestral que remonta à era dos Romanos, de acordo com os entendidos na matéria. Além da acção anual de pôr em prática o velho ditado “em Dia de São Martinho vai à adega e prova o vinho”

Todos os anos, a 11 de Novembro, Vila Alva é cenário do evento Provando o Tareco – é retirado o batoque (rolha de cortiça) do buraco da talha, para deixar jorrar o vinho para a pia de barro estrategicamente colocada abaixo do orifício, ao mesmo tempo que as massas são empurradas com o maço, para o líquido sair. Depois é só levar o jarro em barro à pia, para servir o vinho copo a copo. 

A partir desta data, é comum as adegas de Vila Alva abrirem as portas durante a tarde, para receberem os locais. “Por volta das quatro da tarde, as pessoas saem do campo e trazem o seu petisco”, começa por contar Francisco Quaresma, genro de António Miguel, o proprietário da Adega do Guel, situada numa das ruelas de Vila Alva. Acendem-se as brasas da pequena lareira da adega e os presentes colocam os pedaços de carne e outros víveres, com os quais acompanham os copos de vinho servidos do jarro de litro. “A adega abre todos os dias até ao vinho acabar”, continua o nosso anfitrião. Neste momento, já não há vinho nas nove talhas que encheu na última vindima. “Foram sete de branco e duas de tinto”, ou não estivéssemos nós numa sub-região vitivinícola do Alentejo onde as castas brancas – sobretudo Antão Vaz – somam um número superior às variedades de uva tinta. 

As rotas dos vinhos e dos petiscos
Luís Gradíssimo e Daniel Parreira (em grande plano) são, respectivamente, o organizador e o co-mentor do Vinho na Vila

Mas os mentores do Vila Alva queriam fazer mais por Vila Alva. Apesar de constar no mapa vitivinícola como a anfitriã do vinho de talha, a finalidade do Vinho na Vila “é promover o vinho no geral. A maior parte dos produtores não são produtores de vinho de talha. Há vinhos da região dos Vinhos Verdes, do Dão, da Bairrada, de Lisboa, do Alentejo”, esclarece Luís Gradíssimo.

“Ao longo dos anos de existência do projeto XXVI Talhas fomos criando laços de amizade com vários produtores, que, meditante convite aceitaram logo o desafio de dar a conhecer os seus vinhos em Vila Alva. Então decidimos que este evento teria vinhos de Norte a Sul do país, mas sempre de pequenos produtores, com grande identidade e com uma produção de vinho diferenciada, um pouco à semelhança do que nós fazemos”, explica Daniel Parreira. 

A decisão de marcar o Vinho na Vila em Maio, época do ano em que o vinho já escasseia nas talhas tem fundamentação. Segundo Daniel Parreira é “para que as adegas não ‘criem’ teias de aranha e abram as suas portas pelo menos duas vezes por ano, dando mais uma oportunidade a quem nos visita de ver e viver este grande património que ali temos de adegas e talhas, o cenário ideal para receber produtores de vinho e visitantes, e também várias praças, ruelas e recantos que naturalmente dão um ambiente fantástico a um evento ao ar livre como este”

“O evento complementa o vinho com a comida e como as pessoas andam às voltas na aldeia, surgiu a ideia da Rota dos Petiscos”, implementada desde a primeira edição do evento. “São petiscos tradicionais da região do Alentejo”, que acabam por acalentar o estômago durante o evento, que preencheu a tarde de sábado, ao longo da qual “disponibilizamos, em vários pontos da aldeia, para além de outros petiscos, os enchidos e pão feitos em Vila Alva e os queijos produzidos em Cuba, de modo que os visitantes fossem ‘picando’ qualquer coisa no desenrolar da prova de vinhos”, conta Daniel Parreira, isto é, enquanto se visitaram as 13 adegas típicas de Vila Alva de mapa na mão, por onde estiveram distritbuidos 35 pequenos produtores de Portugal continental. 

Assim se fez a festa em Vila Alva, terra de um património vitivinícola a conhecer e onde os organizadores do Vinho na Vila já cumprem a missão “de devolver à nossa terra e às suas gentes tudo o que nos deram e continuam a dar tentando, com mais este evento, contrariar a desertificação que cada vez mais se sente no interior do alentejo”, nas palavras de Daniel Parreira.

Prepare a agenda para 2025, já que a 10 de Maio há mais uma edição do Vinho na Vila. “Vai haver ‘Chefs na Vila’, com a ambição de querer crescer de forma ponderada”, sem fugir “à traça original do evento”, remata Luís Gradíssimo.

Vinho na Vila

© Fotografia: Enric Vives-Rubio

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