bacalhau d’assinatura • chef Vítor Adão: “É importante respeitar as pessoas e perceber o que elas gostam de fazer”

“Raízes” e “Origens” são os nomes dos menus de degustação do Plano, o restaurante do chef Vítor Adão aberto, desde 2019, no Bairro da Graça, em Lisboa, onde o ambiente descontraído e intimista se cruza com uma espaço de bem comer. Eis o ponto de partida para o excerto de uma aula de geografia, mais concretamente acerca da orografia, de Trás-os-Montes, através dos sabores associados a nove serras desta região do norte de Portugal. Uma viagem de sabores e de conhecimento protagonizada por produtos transmontanos, como a couve tronchuda, os coscorões, o porco Bísaro, o javali ou a vaca Mirandesa, a qual se antecede e prossegue à boleia de criações que merecem tempo, a par com a apreciação das harmonizações e sugestões vínicas dos escanções Pedro Caldas e João Paiva.

“Há pouquíssima gente que tem identidade gastronómica. Se pensar em leitão, vêm logo à cabeça dois ou três nomes. Inevitavelmente, aparecem as pessoas a seguir. Se pensar em regiões, pensa em restaurantes, não pensa em chefs ”

Vítor Adão nasceu em Carvela, aldeia do concelho de Chaves, na região de Trás-os-Montes. No currículo, soma os restaurantes DOC e o DOP, do chef Rui Paula, o Ocean, do resort Vila Vita Parc, e o Vila Joya, no cinco estrelas homónimo, ambos localizados no Algarve, bem como o 45 Park Lane, na capital do Reino Unido, o 100 Maneiras e a Quinta do Arneiro, projeto localizado no concelho de Mafra. Sem esquecer o Izakaya Tokkuri, em Lisboa, projeto partilhado com o também chef Lucas Azevedo. 

De volta ao Plano, em alternativa, o chef apresenta o alinhamento de pratos desenhado para o verão, celebrado no jardim secreto do restaurante, em contrário do que acontece com os menus de degustação atrás mencionados, os quais desafiam Vítor Adão a dar azo à imaginação. Leia a entrevista.

O que levou o chef Vítor Adão a abrir o Plano?
Foi uma consequência de muitos anos de trabalho – eu trabalho desde os 14 anos. Fui chef executivo no 100 Maneiras e consultor na Quinta do Arneiro, e abri o Izakaya [Tokkuri], com o Lucas Azevedo, mas queria fazer algo diferente, algo que me identificasse. Andei durante meses a tentar perceber com o que é que me identificava, o que eu queria fazer. 

Planear exige tempo. O que procurava naquela época?
Identidade gastronómica. Há pouquíssima gente que tem identidade gastronómica. Se pensar em leitão, vêm logo à cabeça dois ou três nomes. Inevitavelmente, aparecem as pessoas a seguir. Se pensar em regiões, pensa em restaurantes, não pensa em chefs. Depois, os cozinheiros querem tudo tão rápido e é tudo tão efémero! Quando eu tinha 14 anos, queria abrir um restaurante de cozinha italiana. Queria fazer massas, pizzas… Era o que eu gostava. Não queria fazer arrozes! Hoje, com 35 anos, prefiro fazer arroz a fazer massa. À medida que o tempo passa, vamo-nos moldando, vamos crescendo. Acho que ninguém nasce cozinheiro. Tornamo-nos cozinheiros. Quem diz que nasce assim, eu não acredito. Portanto, foi um caminho longo até começar a fazer o que queria. Quando faço o que quero fazer, começo a questionar tudo: “Será que estou a fazer bem?” “É isto que sei fazer?” Claro que sou teimoso por natureza. Por isso, dizia: “este é o meu caminho, a minha linha, quero utilizar fogo”. A pouco e pouco, fui criando a minha identidade gastronómica. Fui crescendo. Agora, critico aquilo que fazia no início, mas que foi importante para o meu percurso.

Foi um exercício importante também para perceber o que não queria fazer?
Claro! Estive há pouco tempo na Dinamarca. Vim com mais dúvidas do que com certezas. Depois de vir da Índia, vim com mais dúvidas do que com certezas. Vou para Trás-os-Montes e trago mais certezas do que dúvidas. É importante vermos, experienciarmos, partilharmos, mas também é importante nós encontrarmos e perceber o caminho que queremos fazer. Há pessoas com 50 anos que ainda não sabem o que querem fazer. Cada vez que vou lá [a Trás-os-Montes] percebo que é aquilo que quero fazer enquanto cozinheiro.

A região de Trás-os-Montes está na génese do chef.
Vou contar-lhe uma coisa gira, entre muitas outras que poderia contar aqui. Num dos dias que fui para lá, numa altura em que andava muito cansado, em que houve uma entronização da Confraria Barrosã, as pessoas vinham ter comigo, porque queriam falar sobre trutas, sobre sal e queriam que eu conhecesse outras coisas. De repente, estou rodeado por 20 pessoas a conversar, a negociar e estou sozinho a cozinhar para umas 30 pessoas. Todos partilham e todos me apoiam! Aquele é o caminho que eu quero fazer. Mas também há caminhos que quero trilhar, os do desconhecido, o que também é bom. Por exemplo, quando alguém me pede para ser consultor, é preciso que a outra pessoa saiba o que é ser consultor, mas um consultor não é um chef executivo, o chef executivo não é o chef e o chef não é o sub-chef. O chef tem de criar menus e o sub-chef tem de chatear a cabeça das pessoas. É simples! Mas é difícil meter isto na cabeça das pessoas e, de repente, tens o chef a chatear o cozinheiro, o sub-chef a não fazer o trabalho dele. Depois há outra questão: talento. Mas não basta ter só talento. Do que um cozinheiro faz, 70% é trabalho e 30% é talento. E aqui ainda há que contar com a variante sorte! 

É uma questão de foco e de identidade?
Manter a identidade dá muito trabalho, mas é muito mais simples meter carabineiro, salmonete… Tudo tem de fazer sentido e tem de funcionar, porque o cliente tem de sair satisfeito. O Miguel Laffan disse-me que está sem rédeas, faz o que acha que tem de fazer, porque quando estamos com amarras, não conseguimos dar o melhor de nós. Isto é verdade! No entanto, há pessoas que vêm aqui e dizem “este é o melhor prato que comi até hoje, mas eu não revejo isto em ti”. E esta? Porque este projeto está tão vinculado com Trás-os-Montes, com a minha raiz, com o tradicional, que há aqui um choque entre ideologia e trabalho. Ou seja, se eu saio da minha linha, os clientes não me reveem.

O Plano é uma espécie de palco dos produtos transmontanos.
Sim, mas é importante perceber que trago brássicas e tubérculos de lá. Trago produtos meus de lá, mas se houver produto fresco aqui, compro aqui. Não acredito muito no quilómetro zero. Acho que é uma falácia, porque neste país não há interior. Demoro uma hora e quarenta e cinco minutos para entrar em Espanha. Como é que há interior? Perguntem a um espanhol ou a um norte-americano o que é o interior do país deles. A uma hora daqui, tem a melhor carne e o melhor peixe do país. O que é o quilómetro zero? É uma idiotice. Tem de utilizar o melhor produto que está à sua volta e procurar o que precisa e não tem à sua volta. Eu trabalho com a Terramay, que está a duas horas daqui, ou com a Quinta do Arneiro, que está a uma cerca de uma hora daqui. O que eu acredito é na valorização do produto português e nas pessoas que o fazem bem, e em perceber em que altura há o produto que queres. Defendo Portugal, a minha região e Lisboa. Se há coisas boas em Lisboa, por que não utilizar o que há cá?

De que forma um cozinheiro como o Vítor Adão consegue elevar a rusticidade de um prato, de um produto, sem o desvirtuar e, ao mesmo tempo, acicatar a curiosidade de quem está à mesa?
Primeiro tem de se falar sobre três fatores ligados à gastronomia, à rusticidade: as migrações, as condições edafoclimáticas e a globalização. As pessoas viajaram, trouxeram produto, levaram produtos, cultivaram, cultivaram-se; a pluviosidade, que já não é a mesma, tem impacto nos solos… Tudo isto faz com que a gastronomia vá sofrendo mutações e, com isto, torna-se uma inovação consolidada, que se torna uma tradição. É importante perceber o que está ou não está documentado. O que estou a dizer hoje, pode deixar de ser verdade daqui a uns anos. Alguém acredita que o que se come hoje é o mesmo que o que as nossas bisavós comiam? Ou os nossos avós? O que há é uma evolução na gastronomia! Por exemplo, vocês imaginam arroz de tamboril em Chaves? Há um restaurante, em Chaves, que se chamava Quatro Caminhos, onde foi implementado este prato. Agora, toda a gente tem este prato! Se vai ser tradição. Acho que daqui a 20 ou 40 anos pode vir a ser tradição. O que passa em 60 ou 70 anos não será tradicional? Não será geracional? Gosto de questionar tudo! O que é uma bifana? Pode ser uma fevera em Mafra, no Porto é o desfiado da pá, aqui pode ser um lombo de porco. Uma é melhor do que a outra? Porquê? Voltando à pergunta, é preciso ver o caminho que fiz, os anos de formação, de trabalho. Tenho várias técnicas, como as japonesas. É pegar nas vivências e conseguir meter sabor no produto, que já é genial. Esta é a minha visão. É como consigo conciliar as minhas raízes com os produtos.

No entanto, o bacalhau, apesar de não ser um produto português, protagoniza um prato transmontano e recebe honras no Plano.
É giro falar sobre isso. Há um restaurante maravilhoso, outro que se encaixa nesta questão de cariz tradicional, que se chama Maria Rita, em Jerusalém do Romeu [concelho de Mirandela], que está, desde sempre, na família Menéres. Fica na Quinta do Romeu, do azeite, do vinho… Na altura, um senhor ia para a zona de Mirandela e ficou a dormir numa estalagem, mas o que o marcou foi a comida. Dois ou três anos depois, foi lá novamente e o espaço estava fechado. Decidiu comprar a quinta e mantém o restaurante, com as receitas originais. Claro que, com o tempo, introduziu outros pratos. O Maria Rita tem um bacalhau muito bem feito! É um bacalhau alourado, com batatas cozidas e depois salteadas, e uma sopa de carne, feita com camadas de pão, grão, carnes e espargos, e vai ao forno a assar. Aquilo é maravilhoso! Até disse ao João Menéres que ia fazer aqui. O que fiz aqui foi bacalhau, que deixo a marinar e, depois, coro de um lado e do outro; faço um beurre blanc, com vinho branco e espumante, e um pil pil; dentro da açorda, coloco funcho; adiciono ovas de bacalhau, halófitas e molho béarnaise, porque achei que faltava um pouco de acidez no prato.

Acha que um cozinheiro tem mais valor quando valoriza as suas próprias raízes?
Não. Seria bonito se o dissesse, mas não acredito nisso. Acredito que um cozinheiro tem valor quando cria algo diferente. Há um bom exemplo em Lisboa, o André Lança Cordeiro. Não tem nada a a ver com aquela cozinha, mas faz talvez melhor que algum deles. Ele tem muito valor! É importante respeitar as pessoas e perceber o que elas gostam de fazer. Não sinto que tenha mais valor só porque respeita as tradições. Esse é o meu caminho e tenho de defender o meu caminho. Acho lindo ter comida japonesa em Coimbra, acho lindíssimo ter um Híbrido no meio de Évora, acho maravilhoso ter um Míscaro no meio de Boticas. Acho incrível o trabalho que os miúdos estão a fazer em O Forno de Jales, em Vila Pouca [de Aguiar], uma cozinha completamente fora e está cheio! É importante que se perceba que não vamos conseguir parar a globalização. Se são bons a fazer aquilo, por que hão-de trocar?

É ir, até porque há quem não resista ao pão de ló húmido encimado por raspas de queijo Terrincho, feito a partir de leite de ovelha da raça Churra, da Terra Quente. Bom apetite!

O bacalhau para além das 1001 receitas

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© Fotografia: João Pedro Rato

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