bacalhau d’assinatura • chef David Proença: “Para fazer uma grande técnica, a base é a tradição, porque quando se inova, inova-se na apresentação”

A ementa do Volta do Mar, restaurante do Sines Sea View Hotel, imprime o respeito pela viagem marítima, que permanece à mesa alentejana. Aliás, é a inspiração na culinária desta região que prevalece neste espaço, onde as texturas contam e os sabores querem brilhar.

Feitoria, no Altis Belém Hotel & Spa, e Ritz, ambos em Lisboa, Maria Pia, em Cascais, Narcissus Fernandesii, no Alentejo Marmòris Hotel & Spa, em Vila Viçosa, e Herdade da Matinha Country House & Restaurant, no Cercal, são alguns dos restaurantes nos quais David Proença marcou presença. No verão de 2022, aceitou o desafio de chefiar a cozinha do Volta do Mar, restaurante do Sines Sea View Hotel, o quatro estrelas de 120 quartos, da cidade portuária com os olhos postos no oceano. Viu o projeto a nascer praticamente de raiz e, apesar da cozinha estar praticamente desenhada, acabou por contribuir para a reestruturação deste espaço e esteve envolvido em todo o processo de Food & Beverage (Comida & Bebida). 

Quase três anos após a abertura, que aconteceu em novembro do referido ano, o chef David Proença continua na proa deste “navio”, sempre com a atenção redobrada em relação a cada pormenor, que vai do alinhamento das mesas aos copos bem polidos, passando pela cumplicidade entre cozinha e sala. Leia a entrevista.

O Volta do Mar abriu em 2022. Como decorreu o processo de admissão de recursos humanos? O Pedro [Santos], diretor do hotel, tem uma maneira de captar pessoas como nunca vi! Desde logo, ficámos com equipas feitas. Éramos 12 na cozinha e 16 na sala, mas há sempre pessoas a sair, como é óbvio. O Volta do Mar está dentro do hotel, mas não é um restaurante típico de hotel, porque temos o à la carte. Temos de nos lembrar que, aqui, não havia estas casas. Havia apenas a Casa dos Comandantes da APS [Administração dos Portos de Sines e do Algarve]. Portanto, houve aqui um bocado um choque paisagístico. É um edifício imponente, com um restaurante elegante. Mesmo para um hotel de quatro estrelas, as instalações do hotel são melhores que alguns cinco estrelas, também por ser mais recente. Mas não queríamos chocar a comunidade de Sines, com pratos muito extravagantes. Por isso, fomos fazendo a carta com base na cozinha portuguesa, com muita técnica, mas sem demasiada ambição. Tivemos uma aceitação muito boa desde o início e o que mais me agrada é trabalhar à carta.

Quando trabalha “à carta”, sente-se como “um peixe na água”?
É um exercício que lhe permite desafiar a criatividade? Na carta, estão os pratos decididos, feitos por nós. Têm muito trabalho envolvido, ao contrário do que acontece quando fazemos um menu de grupo, porque, neste caso, vou fazer o que o cliente quer e não os pratos que desenhei para o Volta do Mar. Ou seja, quando a escolha é feita à carta, é tudo mais espontâneo. É outra adrenalina na hora do serviço. Não fazemos fine dining, embora as mesas, os candeeiros e os copos estejam alinhados, como deve ser, e na cozinha tudo é feito com capitações, tudo certo. 

Como tem sido a reação de quem é de Sines?
Houve algum ceticismo por parte de quem está cá em Sines, mas nota-se que temos tido muito boa aceitação e conseguimos captar cerca de 50 por cento dos hóspedes. Não somos concorrentes. Temos um espaço diferente com conceitos diferentes aqui, em Sines. É bom que os outros espaços se mantenham abertos e mais houvesse, para a comunidade se sentir orgulhosa e obriga-nos a continuar a trabalhar e a inovar. Durante o dia, no Volta do Mar, temos o menu executivo, enquanto à noite, o serviço é feito à carta, o que resulta num ambiente completamente diferente. Temos tido muito boa adesão por parte das pessoas de Sines e muito bom feedback, até porque a cozinha alentejana não tem de ser servida apenas em tacho, que servimos aqui, mas com uma apresentação mais divertida. 

Em que se baseia aquando da confeção de cada prato?
Falamos muito acerca da parte dos ácidos, dos pickles, na carta. Trata-se de um jogo de paladar. Com a bochecha de porco, por exemplo, temos um pickle de xuxu, que vai cortar a gordura e deixar as pupilas a salivar. Tentamos fugir do óbvio. Sabe como são os menus de hotel. Tem de ter risotto, peito de frango, salmão… Não quis nada disso na carta. O nosso pão é da Padaria DoZero, no Cercal. É feito por duas raparigas brasileiras que conheci, a Raquel e a Rosa. Fazem um pão de massa-mãe fantástico, com farinhas do Paulino Horta. Temos uma manteiga de algas no couvert, um picadinho algarvio, também com algas, temos filhoses de forma com sapateira misturada com sumo de lima, algas, maioneses, alho e coentros, colocamos umas quenelles desta mistura por cima das filhoses de forma, acompanhada por uma saladinha. Temos croquetes de javali e um torricado de pimentos com ovo estrelado, com nuvens de pão frito e outras de pão normal, ovo estrelado, pimentos salteados com talos de coentros e alho, molho de barbecue de pimentos, gel de vinagre de vinho tinto, óleo de salsa e pó de azeitona. Também temos o alhinho de camarão, com muito alho, em que as cabeças de camarão de Sines servem para fazer o molho, e é acompanhado com fatias de pão torrado. Ou seja, as técnicas de cozinha são contemporâneas, mas o sabor é tradicional. O franguinho é servido com molho de pimentos, tradicional do Alentejo, e, claro, pickles. O lombo de vaca é, para mim, a melhor das carnes. É servida com um puré ácido e doce, e batata gratin frita. Também temos corvina rainha, uma espécie invasora do mar. Trabalho só com a lota de Sines e o meu talho, o do senhor Acácio, com o qual já trabalhava na Herdade da Matinha. É do Cercal. Já é o filho que está à frente, com outra visão. 

E o bacalhau?
O bacalhau é cozinhado por quatro minutos e, depois, dispomos o maçarico na pele, para ficar com aqueles sabor grelhado, e leva um gel de pickle de cebola roxa por cima; tem picadinho de cebola roxa, talos de coentros e alho, para dar a sensação da salada de bacalhau tradicional, grão-de-bico em puré e frito, para dar crocância ao prato, gel de vinagre de vinho tinto e uma demi glace, que é colocada por cima do bacalhau.

Mar e terra caracterizam a cozinha alentejana. O que mais fascina o chef David Proença em relação a esta dualidade de sabores?
Para mim é ótimo, enquanto chef! Dá para criar dez cartas diferentes. Em termos de produto, permite fazer várias conjugações. Já tive aqui uma queijadinha de almece, com copita de porco preto, pó de azeitona e pickels de espargos, entre outros pratos, que me permitem ter aqui os sabores do campo e do mar. Aliás, o couvert começa com o pão de algas, no qual também já houve um brioche de algas com copita de porco preto. Mas não construo uma carta necessariamente uma carta baseada nessa dualidade, porque estando no litoral, vou jogar de uma forma natural com o produto do mar e com o produto da terra. É uma mais-valia. Temos muitas algas, como a alface-do-mar, além de uma panóplia de carne e enchidos do Cercal.

As algas têm uma forte presença na ementa do Volta do Mar. São da costa portuguesa?
Sim, são da costa portuguesa. Usamos as algas da AlgaPlus. A minha favorita é a fava-do-mar, porque se a fritamos, fica com uma textura muito interessante, muito semelhante a uma batata frita.

Quanto pesa a identidade na cozinha de um chef?
Depende, mas tenho tido a sorte de trabalhar com pessoas que me deixam fazer uma carta 100 por cento minha. Um negócio envolve muitas pessoas, vai para além da criatividade de um chef, mas aqui tenho carta branca. O feedback é muito positivo, as cartas têm tido muito boa aceitação por parte dos clientes. Quando somos novos, cozinheiros de terceira, de segunda, gostamos de andar sempre a saltar, porque queria aprender mais, ver coisas novas, mas quando cheguei a sub-chef, tive de começar a pensar de outra forma, porque o compromisso já era maior. A cozinha é feita de experiências. Se tiver um cozinheiro que me diz ‘estou farto desta carta’, não o posso censurar, caso contrário estaria a cortar uma parte de criatividade dele. Mas sem esquecer a minha identidade. Só faço pratos que gosto de comer, não faço pratos que fazem parte de uma conjuntura, como aconteceu com a cozinha molecular.

“Quando construo as cartas, penso no produto, mas também na maneira de trabalhar, porque o prato pode ficar muito bonito, mas pode causar-me um “lodo” tremendo na cozinha, daí que seja preciso ter muito trabalho até chegar ao ponto certo

Há criatividade, mas também há que refletir sobre as texturas e o sabor.
O que procuramos é, acima de tudo, sabor. Quero o prato feito de forma a que cada garfada apanhe todos os elementos do prato. Assim, torna-se mais harmoniosa. Por outro lado, quando temos aqui, por exemplo, 60 clientes sem reserva, não temos tempo para explicar cada prato com todos os pormenores. Portanto, precisei de construir cada prato, de forma a que o cliente perceba o que lá está e coma todos os elementos em cada garfada. Ou seja, quando construo as cartas, penso no produto, mas também na maneira de trabalhar, porque o prato pode ficar muito bonito, mas pode causar-me um “lodo” tremendo na cozinha, daí que seja preciso ter muito trabalho até chegar ao ponto certo. Tudo dá muito trabalho, mas é assim que nós aprendemos. Desde o momento em que aqui entrei, sinto que sou dez vezes melhor cozinheiro, porque estou sempre na cozinha, mesmo com o computador. Como foi um projeto que nasceu do zero, aprendi muito com tudo isto. É muito gratificante ver um “barco” deste tamanho a estabilizar ao final de três anos. Mas há mais pela frente.

Em relação ao restaurante Volta do Mar, onde a cozinha alentejana serve de inspiração, são os sabores que predominam?
É um pouco da receita e um pouco do produto. Por exemplo, a bochecha cozinho no tacho. O molho é triturado e coado. Não cozinho nada em sous vide. Só utilizo a máquina de vácuo para armazenamento, porque assim o produto aguenta muito mais. Consigo fazer pickles muito mais rápido. Quisemos ter produtos autóctones e dar-lhes protagonismo, como o xuxu, que habitualmente é usado na sopa, mas nós quisemos fazer pickle de xuxu. Acho que todos os chefs de cozinha têm esta vantagem de pegar num produto pouco amado, para o deixar brilhar no prato. É aquele desafio que nos permite mostrar às pessoas que aquele produto assim cozinhado também é ótimo!

“O sabor é tradição! É copiar e não estragar. Há pratos que são tão simples, que não é preciso mexer

Podemos dizer que a alta cozinha é uma espécie de representação inovadora da cozinha tradicional?
Acho que sim. Para fazer alta cozinha, tem de saber fazer [pratos da] cozinha tradicional. Caso contrário, está a fazer alta cozinha com base em quê. Nos restaurantes com estrela Michelin, tudo o que está no prato, como no Belcanto, é receituário português. Não há nada nos meus pratos que não venha da cozinha tradicional, como os refugados ou os pickles, ou o escabeche. O que acontece é haver variantes da cozinha. Tenho aqui um prato com gnochis de pão alentejano, que têm, como base, as migas de tomate seco, coentros e alho. Faço as bolinhas, congelo e frito, para ficarem crocantes. Não tenho problema em misturar cozinhas, mas tenho sempre respeito pela cozinha tradicional. Ou seja, para fazer uma grande técnica, a base é a tradição, porque quando se inova, inova-se na apresentação. O sabor é tradição! É copiar e não estragar. Há pratos que são tão simples, que não é preciso mexer. 

Sines Sea View Hotel

É ir e ficar!

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© Fotografia: João Pedro Rato

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