Há vinho com alma no país dos Pirinéus / Andorra

Para muitos ainda é apenas sinónimo de férias na neve e de compras. No entanto, no coração dos Pirinéus, a mais de 1000 metros de altitude, procuram-se novos caminhos, com destaque para a produção de vinhos. Bem-vindos à mais jovem nação vínica da Europa.

O Principado de Andorra, um dos mais pequenos países da Europa, está localizado na cordilheira pirenaica entre o nordeste de Espanha e o sudoeste de França. É um co-principado cuja independência foi conquistada em 1278 e que tem o parlamento mais antigo do mundo, criado em 1419, designado de Consell de la Terra, atualmente o Consell General d’Andorra, a sede do poder legislativo de Andorra. É uma democracia parlamentar desde 1993, onde o chefe de governo é eleito pelo poder legislativo, exercido pelo Conselho Geral dos Vales, com 28 deputados eleitos para um mandato de quatro anos. Os chefes de Estado, denominados de co-príncipes, são o presidente da República Francesa e o bispo da comarca catalã de La Seu d’Urgell.

Organizado em sete divisões administrativas locais, conhecidas como “paróquias” – Canillo, Encamp, Andorra-a-Velha, Ordino, La Massana, Sant Julià de Lòria e Escaldes-Engordany –, apenas quatro por cento do território do principado está edificado, ou seja, cerca de 95% é ocupado por montanha, com mais de seis dezenas de picos a ultrapassarem os 2000 metros de altitude, assim como bosques, rios, lagos e prados, sendo possível percorrê-lo todo a pé e sem pisar asfalto.

Para terminar ficam apenas mais duas curiosidades sobre Andorra: É o único país do mundo onde o catalão como língua oficial e tem uma das maiores “esperança média de vida” do mundo.

A produção de vinho de altitude

Apesar da economia de Andorra estar fortemente dependente do turismo, que representa aproximadamente 80% do PIB, e de nas últimas décadas se ter assistido a um abandono da agricultura, mantendo-se pouco mais do que a monocultura de tabaco, atualmente existe um movimento público-privado que procura recuperar as zonas cultiváveis – apenas dois por cento das terras são aráveis – para a produção agropecuária sustentável, com o objetivo de valorizar a gastronomia com produtos locais com alto valor acrescentado para um turismo de excelência. A agricultura local está em transformação e desenvolvimento, sendo estimulada pelo governo a produção pecuária, de laticínios, batatas, fruta, plantas medicinais, ervas frescas e vinha.

Colóquio inaugural no IV Encontro de Microprodutores de Vinho em Andorra: “Arte y vino un matrimonio de éxito” com: Olívia Bayés Diretora comercial e co-proprietária da adega Marco Abella em Priorato; Fanette Fessy propietária da adega Domaine Galus de Nimes, Raphaël Baissas de Chastenet proprietário da adega Nada Calce nos Pirineo Oriental; João Pedro Rato diretor da Mutante em Lisboa, Portugal; Sergi Cortés, diretor da revista Cupatges. Moderadora: Ruth Troyano jornalista e sumelier.

E foi para conhecer o que andam os andorranos a fazer na vinha de altitude que viemos ao país dos Pirinéus, no âmbito do IV Encontro de Microprodutores de Vinho em Andorra que decorreu, em Sant Julià de Lòria, nos dias, 19 e 20 de Novembro de 2016. Este encontro, vai na quarta edição e é, como o nome indica, uma oportunidade para descobrir vinhos de pequenos produtores da Europa, além de debates, mostras de arte e gastronomia.

Com uma altitude média a rondar os 2000 metros, Andorra é, essencialmente, um país de montanhas rasgadas por dois vales que se unem em forma de Y e por onde corre o rio Valira. O clima de montanha com influências mediterrânicas é temperado, variando consoante a altura em relação ao nível médio do mar. Os meses mais chuvosos são maio, agosto e setembro, ao contrário do período de janeiro a março e que carateriza os invernos frios e secos. Quanto aos muitos dias de sol, estes somam cerca de 300 por ano.

Andorra tem encostas com uma excelente exposição solar, fator muito importante na viticultura de alta montanha, nomeadamente, na parte da manhã, tem ventos que sopram com muita regularidade nos picos mais altos e nos vales, bom para ventilar as vinhas.

Durante muitos séculos houve produção de vinhos na região até que chegou a filoxera, as vinhas foram abandonadas e a viticultura foi extinta. Só há poucos anos, os viticultores locais voltaram a apostar na plantação de vinhas junto das casas de família, com o objetivo de produzir vinhos de qualidade, com uma personalidade original que os posicionasse no mercado vinícola com um valor acrescentado.

Hoje, são quatro os produtores que estão a produzir e comercializar vinhos, todos localizados na paróquia de Sant Julià de Lòria, a mais baixa em termos de altitude e a que faz fronteira com Espanha: Borda Sabaté 1944, Celler Mas Berenguer, Casa Auvinyà e Casa Beal.

Fomos conhecer as duas primeiras. Na paróquia de Ordino também estão a ser feitas várias experiências com o cultivo de vinha a mais de 1300 metros de altitude, recorrendo a reputados profissionais, porém, ainda sem resultados.

Borda Sabaté 1944

Começamos cedo e com uma subida bastante abrupta e radical, em viatura todo-o-terreno pelos trilhos, encosta acima. Uma verdadeira aventura!

Chegados lá cima, a paisagem revela-se arrebatadora. Rodeadas de bosques, as vinhas, situadas entre os 1100 e os 1200 metros, são cultivadas nas encostas bastante íngremes, em regime de agricultura ecológica e biodinâmica, e certificada desde há quatro anos. “Fazer vinhos aqui há 12 ou 13 anos era uma loucura”, começa por dizer Joan Albert Farré, a alma da exploração, proprietário e responsável pela gestão, coordenação e supervisão de todas as tarefas do Borda Sabaté 1944. “Só com uma grande paixão e entusiasmo foi possível fazer nascer este projeto”, prossegue, enquanto enumera alguns dos problemas da vinha de altitude como a geada, o granizo, os javalis e os corsos. Questões que contribuem para a diminuição da produtividade, já de si reduzida, e para o preço que varia, sensivelmente, entre os €25 e os €50 a garrafa.

As vinhas totalizam pouco mais de dois hectares distribuídos por 12 terraços, repartidos pela casta Riesling, variedade branca de origem alemã, usada para fazer o Escol, o vinho mais produzido em Andorra, com cerca de 4000 garrafas; e a Cornalin, a casta tinta de origem suíça que é a base do Torb (nome do vento com neve que sopra dos topos das montanhas altas), complementada com partes iguais de Merlot e Syrah. A primeira vindima aconteceu em 2009 e costuma realizar-se na última quinzena de outubro.

O responsável pela criação dos vinhos é Alain Graillot, reconhecido enólogo da região francesa Crozes-Hermitage, bem como pela sua paixão pelo Syrah.

A família Borda Sabaté, proprietária da quinta de montanha, desde 1944, onde também se dedica à criação de vacas e cultura de tabaco, gosta de receber e mostrar como e onde são produzidos os seus vinhos.

Pioneira no enoturismo no Principado, proporciona uma visita guiada pelas vinhas e adega – construída em 2010 e que funciona por gravidade –, com prova de vinhos e a possibilidade de compra, assim como uma degustação de vinhos acompanhados por uma deliciosa refeição no restaurante “Le Domaine”, situado no meio das vinhas, com arrozes de montanha e especialidades da cozinha local. A marcação pode ser feita através do + 376 814 900 ou de email: info@bordasabate.com. 

A aquisição dos vinhos é possível em várias garrafeiras do país no site, estando a ser ultimado o processo que levará à exportação, mas como se trata de um novo produto no país ainda há questões burocráticas a resolver com as autoridades e restantes produtores.

Borda Sabaté 1944

Celler Mas Berenguer

Descemos até à cota dos 850 / 900 metros de altitude, para chegar à localidade de Puì de Olivesa (Sant Julià de Lòria), onde se situa a mais jovem adega de Andorra, criada em 2011. Apesar de recente, a adega está localizada numa masía – tipo de construção rural isolada, ligada a uma exploração agrícola, muito frequente na Catalunha e com origem nas antigas vilas romanas, propriedade dos Berenguer, uma família que mantém a centenária tradição agrícola desde o ano 902 d.C.

Carles Verdaguer e a sua filha, Davinia, cultivam aqui cerca de 1,3 hectares de vinha com as castas Chardonnay, Sauvignon Blanc e Pinot Noir. Fizeram o primeiro vinho em 2011, vendido com a marca Tancat Rocafort, um blend de 70% Chardonnay com 30% de Sauvignon Blanc e, mais recentemente, apresentaram uma edição de 350 garrafas numeradas do monovarietal Cortó Carlomagno 2013, feito a partir de Chardonnay.

Porém, a casa Mas Berenguer não se fica pelos vinhos tranquilos. O trabalho e a dedicação abrange a produção de espumosos, através do método tradicional ou champanhês, ou seja, espumosos em que a segunda fermentação ocorre na garrafa. Destes produziram cerca de 1500 garrafas do 902 DC Brut Chardonnay, hoje o vinho mais emblemático do produtor.

Entretanto, na adega, repousam cerca de 700 garrafas do espumante Brut Nature Rosé feito a partir da casta Pinot Noir.

Celler Mas Berenguer

Casa Beal

Apesar de não termos visitado localmente, gostaríamos de deixar uma referência às outras duas adegas.

Casa Beal, situada na localidade de Nagol, é o nome da adega da família Visa-Tor, a primeira a plantar vinha em Andorra – em 1988 –, ou seja, mais de um século depois de esta atividade ter desaparecido do país. Começaram por exemplares de Sauvignon Blanc, Cabernet Sauvignon, Moscatel e Merlot e, após muitos testes, em 2004, plantaram um hectare de Gewürztraminer apresentando, em 2006, o Cim de Cel, o primeiro vinho de Andorra do século XXI.

Aos curiosos fica a informação de que é possível visitar a adega durante todo o ano mediante reserva. Para o resto, o melhor é aceder ao site, onde a compra de vinhos é direta sendo, para o efeito, preciso enviar um email para info@casabeal.com ou entrar em contacto pelo +376 841 799.

Casa Beal

Casa Auvinyà

A adega da Casa Auvinyà está situada, por sua vez, a 1200 metros de altitude, na localidade de Auvinyà, perto do Bosque de la Rabassa. O início da plantação aconteceu em 2008 e conta com cerca de dois hectares de vinha com as castas tintas Pinot Noir e Syrah e as brancas Viognier, Pinot Noir e Albariño, numa colina com inclinações superiores a 60%.

Em 2009 apresentaramo primeiro vinho tinto do Principado, o Evolució 2009, feito a partir de Pinot Noir e Syrah. A partir de 2011 separaram as castas e lançaram os primeiros monovarietais tintos de Andorra, o Evolució Pinot Noir 2012 e o Evolució Syrah 2011.

O vinho branco “das neves” Imagine é elaborado com Albariño, Viognier e Pinot Gris, em contraposição com a primeira versão, da colheita de 2010, a qual não incluia a casta Pinot Gris.

Aos interessados, recomendamos que formem uma grupo de, no mínimo, dez pessoas para proceder à visita, que deve ser reservada por email  ou pelo +376 863 066.

Casa Auvinyà

A aposta no turismo de qualidade

Em Andorra procuram-se novos caminhos, não apenas na produção de produtos endógenos, como vimos com o vinho, mas também na elevação da qualidade da oferta turística.

Assim, nesta visita tivemos a oportunidade de experimentar um dos mais modernos hotéis, o Andorra Park Hotel.

Situado numa das melhores zonas residenciais de Andorra-a-Velha, a dois passos do centro histórico do principado, o hotel está rodeado de 15000 metros quadrados de jardim, integrado em perfeita sintonia com as montanhas envolventes, de onde parece ter emergido. Dotado de todas as comodidades de um cinco estrelas, apresenta quartos amplos e confortáveis, piscinas interior e exterior.

E integra dois restaurantes – o Racó del Park, onde é servida a primeira refeição do dia, e o gastronómico És Andorra, no qual provamos, pela primeira vez, os vinhos produzidos em Andorra e que acompanharam muito bem a cozinha criativa do chef catalão Marc Mora. Por sua vez, Pablo Pérez é o chef de sala e sommelier responsável pela garrafeira que conta com mais de 400 referências de todo o mundo.

Andorra Park Hotel

L’Enoteca

A referência gastronómica andorrana passa ainda pela L’Enoteca, um restaurante com uma arquitetura contemporânea, onde Pedro Pascoal Miranda Perez e o sócio e sommelier, José Antonio Guillermo Velaz, que já passou pelo Celler de Can Roca e Zalacaín, procuram fazer uma cozinha de mercado tradicional e tapas, harmonizada com uma seleção de vinhos internacionais.

L’Enoteca

Da próxima vez que for a Andorra não se esqueça que, por lá, além da neve também há produção de vinho feito com grande paixão e entusiasmo, uma excelente razão para aproveitar e conhecer quem está por trás destes projetos, aliando a pausa em família ou duas às magníficas paisagens onde crescem as uvas que dão origem a vinhos únicos.

Boa viagem! •

+ Andorra
© Fotografia: Ricardo Junqueira

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