É pelo meio de serranias e caminhos sinuosos, e veredas, e vales verdejantes que viajamos ao encontro do vinho com região demarcada no centro do país. Com o coração em Nelas, a cidade anfitriã da Feira de Vinho do Dão.
Patrícia Santos, enóloga, Rui Fonte, coordenador da biblioteca da Fundação Lapa do Lobo e José Borges da Silva, presidente da Câmara Municipal de Nelas, num dos momentos de poesia “Do bago à boca”
Porque um bom néctar de Baco é feito por gente com saber, importa (re)descobrir os sabores e os aromas dos vinhos do Dão. Assim, e enquanto a noite toma conta do céu, percorremos as sete sub-regiões que delimitam a região vinícola numa viagem alegórica pelas Casas do Lupo, na aldeia da Lapa do Lobo, do concelho de Nelas, cujas portas se abrem para dar início à 23.ª edição da Feira de Vinho do Dão, com um serão repleto de prosa e poesia, música e vinho.
A arte do vinho ao encontro da poesia
“Do bago à mesa”. Eis o mote para embarcar neste périplo coordenado pelas doutas palavras da enóloga Patrícia Santos e pela criteriosa seleção literária de Rui Fonte, coordenador da biblioteca da Fundação Lapa do Lobo, entidade de tão airosa aldeia, na qual foi fundada em 2007, por Carlos Torres. Desta vez falamos do empresário e mentor das Casas do Lupo, que nos acompanha neste percurso simbólico por terras de vinhedos tão díspares no centro de Portugal, ao lado do presidente da Câmara Municipal de Nelas, José Borges da Silva, da vereadora Sofia Relvas e demais presentes e ilustres apreciadores de tão consensual bebida.
O itinerário, ao longo do qual é apresentado um vinho de um dos produtores de cada sub-região, começa com um poema do livro D. Jaime, de Tomás Ribeiro. E “é pela poesia”, nas palavras de Patrícia Santos, que degustamos um Maria João branco Private Collection 2012, da sub-região de Besteiros (Mortágua, Santa Comba Dão e 22 freguesias de Tondela). Segue-se a Serra da Estrela (19 freguesias de Gouveia e outras tantas de Seia), sub-região de altitude que nos traz um Quinta da Espinhosa branco Reserva 2013. A norte deste centro do país está demarcada a sub-região de Castendo (Penalva de Castelo e duas freguesias de Sátão) representada por um Casa da Ínsua branco Encruzado 2013.
A viagem continua com paragem marcada na sub-região de em Senhorim (Carregal do Sal e Nelas), para provar dois néctares de Baco desta sub-região: um Titular branco Encruzado 2013 e um Quinta do Mondego tinto 2008, ambos feitos a partir de castas desenvolvidas sob a influência do maior rio português, mas não sem antes ouvir a história do senhor Andrade – uma de muitas do livro coletivo “O lobo da Lapa” sobre as memórias da aldeia da Lapa do Lobo (projeto apoiado pela fundação homónima) –, que queria ser escritor e porque, afinal, o “vinho é arte”, como nos diz Rui Fonte. Passemos a Selgueiros (cinco freguesias de Viseu), para degustar um Quinta de Reis tinto Touriga Nacional 2010. Da sub-região de Alva (Oliveira do Hospital e Tábua) é-nos apresentado um Quinta do Margarido Touriga Nacional Grande Escolha 2011, um tinto proveniente de uma bacia xistosa, informação dada após a leitura de uma poesia de Camilo Pessanha, escritor natural de Coimbra. Para o fim ficam as Terras de Azurara (Mangualde), a leitura de um poema persa do século XII, traduzido por Pedro Paixão, e a prova de um Quinta dos Mosteirinhos tinto 2011.
Terminada a viagem, chega a vez do repasto, à beira da piscina das Casas do Lupo, numa noite de luar que reuniu muitas conversas animadas em boa companhia.
Casas com história(s) dentro
O roteiro pelo Dão é feito de vinho, mas também de casas com história dentro, valor patrimonial muitas vezes esquecido, pelo que vale sempre a pena (re)visitar.
Começamos pela Casa da Ínsua, em Penalva do Castelo. Os cantos e recantos e estórias são-nos apresentados por António Machado Matos, o cícerone da vetusta casa de Luís de Albuquerque, erigida em 1970, durante o período de tempo em que tinha nas mãos o cargo de governador de Cuiabá e Mato Grosso, no Brasil, nomeação feita pelo Marquês de Pombal, e convertida em hotel de charme em julho de 2009.
Imponente, o edifício solarengo guarda, no interior, a escadaria que, no teto, apresenta o brasão das famílias Albuquerque e Pereira e, ao cimo da qual, uma porta nos leva à receção de tão ostensiva casa senhorial de estilo barroco da Beira Alta. Pelas salas reinam a história e as estórias contadas ora pela forte presença da cultura nipónica, sobretudo nas paredes forradas de papel de arroz pintados à mãos; ora pelos quadros seculares de uma das divisões que conserva as cadeiras originais, de estofos de veludo, intocáveis pelas mãos humanas, e culmina com um teto, onde é representada a formação do mundo; ora pela lareira de uma sala que nos traz à memória a imagem do genérico do filme “Viúva rica solteira não fica” (2006), de José Fonseca e Costa, e pelos frescos do teto, desse mesmo compartimento da casa, os quais abordam três das quatro estações do ano, pois o inverno foi formalmente excluído. Há a salinha do telefone, peça que nos reporta ao passado ou não tivesse sido a Casa da Ínsua um dos primeiros lugares do país a ter energia eléctrica (em 1906, com um gerador a vapor; e em 1913, graças à central hidroelétrica); e há a sala de refeições da família, com a cerâmica de Cantão a preencher as prateleiras do louceiro.
A viagem neste hotel-museu continua em redor de peças antigas, como o radiador de fabrico francês – que ainda hoje funciona –, a máquina de afiar facas e polir o talher ou as peças de estanho expostas na soalheira cozinha, lugar eleito para provas de vinhos Casa da Ínsua. Os néctares de Baco provenientes dos 30 hectares de vinha cujos bagos são transportados para a adega, datada de 1890, pois a primeira, de 1852, pertence ao núcleo museológico do hotel, embora ainda se faça a tradicional pisa da uva, em lagares de granito.
Desta vez, a apresentação cabe a José Matias, responsável pela parte agrícola e vinícola da Casa da Ínsua que, além do vinho e da maçã bravo esmolfe, é conhecida pela sua produção de compotas e do Queijo Serra da Estrela DOP. Produto de grande valor gastronómico feito com leite de ovelha bordaleira da Serra da Estrela (certificadas para a produção do mesmo). No entanto, importa sublinhar a importância da espécie de cardo utilizada na feitura de mui apreciada iguaria portuguesa, pois é este o ingrediente que interfere na consistência do queijo – que deve apresentar uma pasta semi-mole. O rótulo, circundado de amarelo torrado, deve conter o selo com o número do lote e de quem o fez. Detalhes que primam pela diferença num produto provado e aprovado aquando a degustação de vinhos da Casa da Ínsua, no terraço ar livre, contíguo ao deslumbrante e sempre romântico jardim inglês, e com vista para o elegante jardim francês que preguiça, charmoso, à entrada.
Antes de nos despedirmos da Casa da Ínsua, recomendamos a participação nas vindimas (setembro e outubro), a observação da produção do vinho e as provas do mesmo, sob a orientação dos enólogos da quinta, bem como a “pôr a mão na massa” na manufatura dos queijos e das compotas.
Na Casa de Santar, em Santar, do concelho de Nelas, as paredes de granito abrigam quase quatro século de história testemunhada pelo espólio exposto nas antigas cavalariças, hoje sala dos coches, deste edifício datado de 1618, onde charretes e coches convidam a embarcar numa viagem pelo passado. A mesma é acompanhada, por instantes, pela Condessa de Santar, e pelo filho, Pedro Vasconcelos, anfitrião e cicerone do roteiro geneológico da família, da pequena capela dedicada a São Francisco de Assis e da cozinha velha. Aqui, a água da fonte de Santo António é, todos os anos, a 13 de junho, cenário de uma romaria de quem anseia casar.
No exterior, a natureza impera pela geometria, característica do jardim francês que percorre a propriedade, levando-nos a um painel de azulejos do século XVII, dispostos aleatoriamente pelo espanhol Gabriel del Barco, mestre da arte de azulejar cuja obra, esta, surpreende todos os presentes, mesmo os mais eruditos. Mas logo a enigmática (re)descoberta cai no esquecimento enquanto passeamos pelo jardim na companhia do nosso cicerone, que nos explica a representatividade das quatro espécies de rosas que ornamentam este paraíso. Segundo as suas palavras, cada cor representa uma casta – touriga nacional, tinta roriz, encruzado e cercial –, as mesmas que dão fruto aos vinhos da Casa de Santar. Ao todo, são 103 hectares de vinha, 60 hectares das quais estão plantadas “na encosta do rio Dão”. Segue-se a visita à adega, com resposta à altura para as exigentes solicitações na feitura de um vinho de excelência, e ao chamado cemitério, nome proferido por Osvaldo Amado, que nos apresenta os vinhos da casa datados desde 1965.
Os passos da gastronomia beirã
É nos Paços dos Cunhas de Santar, edifício secular preservado pelo tempo e pelo Homem, que nos entregamos nas mãos dos chefs Henrique Sampaio e Luís Almeida. Em cima da mesa desfilam pratos regionais com um toque de contemporaneidade e sabiamente harmonizados com vinhos da Casa de Santar. Nas boas-vindas, brindamos com um Cabriz Espumante Blanc Noir Bruto 2010 que, em breve, estará disponível no mercado. Para entrada, composta por alheira, creme de espinafres e molho de mostarda, os enólogos escolheram um Casa de Santar Reserva branco 2013. Do mar, o bacalhau confitado com puré de grão-de-bico, couve e azeite de alho fez-se acompanhar de um Paço dos Cunhas de Santar Nature tinto 2010; e da terra, a bochecha de porco estufada em moscatel Conde de Sabugal é casada com um Conde de Santar tinto 2009. No doce final, o pudim de maçã sobreposto por uma camada de puré do mesmo fruto e ultimado por uma fatia estaladiça de maçã faz rima com um muito apreciado Outono de Santar Colheira Tardia 2011.
Para a noite, está reservado um jantar na Federação de Viticultores do Dão, espaço decorado com primor para uma noite de festa. O repasto é ssinado por Diogo Rocha, chef da Mesa de Lemos, o restaurante da Quinta de Lemos, em Viseu, representada – e muito bem – por três tintos monocasta: Alfrocheiro 2009, Jean 2008 e Touriga Nacional 2007. Do repasto, e já que estamos nas beiras, nada melhor que realçar a presença do arroz de cabidela de coelho, do Queijo Serra da Estrela “com uma nova roupagem”, segundo palavras do chef Diogo Rocha, e a sobremesa de abrunho, a juntar à raia com favas, à entrada composta por salada de polvo e ao consumé de lagosta.
Lá fora, o espetáculo multimédia “As músicas que os vinhos Dão”, da autoria de António Leal, preenchem as paredes da Câmara Municipal de Nelas de cor e o largo das escadarias é palco de música num cenário de taberna ou não estivéssemos num evento dedicado ao vinho do Dão.
Uma vez mais se abrem as portas do enoturismo da região. Desta vez estamos no coração da Beira Alta, a uns sete quilómetros da cidade de Viseu, numa antiga exploração agrícola e pecuária convertida num hotel rural. Falamos da Quinta do Medronheiro composta por casas de pedra recuperadas com saber. No exterior, a vinha estende-se por cerca de dois a três hectares de terra, da qual são colhidos os bagos para o vinho da “casa”, como o espumante Vinha de Arame 2012 ou o Oloroso tinto 2010.
Queijo Serra da Estrela da Quinta da Lagoa / Bacalhau confitado com puré de grão-de-bico, couve e azeite de alho, do repasto no Paço dos Cunhas de Santar
Cabrito com arroz de feijão, batatas e migas, no restaurante da Quinta de Cabriz / Sobremesa de abrunho do chef Diogo Rocha
A próxima paragem é a Quinta da Lagoa, em Vale de Madeiros, Canas de Senhorim, onde é feito, com alma, o Queijo Serra Estrela. Um produto artesanal ditado pela mestria de quem o faz, desde as ovelhas e a ordenha à produção, processo de transformação que requer sabedoria. José Figueiredo, proprietário, reforça a importância da saúde dos animais e da higiene do leite, sendo este obtido das 500 ovelhas da quinta, das características e da certificação do produtor, assim como do corte, à fatia, para que consigamos saborear “os vários aromas distribuídos pela fatia do queijo”.
Depois do “aperitivo”, nada melhor que um repasto em Carregal do Sal, no restaurante da Quinta de Cabriz, demarcado pela tão apreciada gastronomia regional acompanhada por vinhos da “casa”. Iniciamos com o Cabriz Espumante Blanc Noir Bruto 2010, seguido de um Casa de Santar Colheita branco 2013, para casar com as pataniscas de bacalhau. Ao tradicional e bem elaborado polvo à lagareiro com batata a murro junta-se um Cabriz Encruzado branco 2013, seguido de um Casa de Santar tinto 2010 apresentado ao suculento cabrito com arroz de feijão, batatas e migas. Para terminar, o folhado de Queijo Serra da Estrela com mel e nozes surge numa combinação perfeita com Cabriz Licoroso.
Eis a súmula do muito que se pode ver por terras do Dão que, graças à 23.ª edição da Feira de Vinhos do Dão (de 5 a 7 de setembro passado), deu a provar os néctares de Baco mais de quatro dezenas de produtores da região demarcada e mostrou um património gastronómico de grande valor. Boas razões para visitar todos os dias do ano. Afinal, uma pausa no trabalho é sempre uma excelente desculpa para conhecer um pouco mais do nosso país… •