Anna Lins é a chef que está à frente do novo inquilino de um dos bairros mais cools da cidade das sete colinas. Eis o Miss Jappa onde a interpretação dos sabores nipónicos oscila entre o cunho pessoal da primeira sushiwoman em Portugal e a tradição à mesa da chamada terra do sol nascente.
Miss Jappa, que chegou recentemente do Japão, encontra-se na instalação do artista plástico Filipe Pinto Soares
À entrada ninguém fica indiferente ao néon vermelho, em contraste com as paredes pintadas de verde água, no qual se lê o nome do espaço; nem mesmo com a boneca oriunda de Tóquio e que, vestida por Graça Martins, da Bainha de Copas, paira num baloiço – a instalação da autoria do artista plástico Filipe Pinto Soares – sob uma das mesas de madeira polida do restaurante. Miss Jappa é o seu nome e o nome do restaurante de Anna Lins, a primeira mulher portuguesa certificada pela All Japan Sushi Association.
Miss Jappa é, segundo a chef, “uma cozinha no feminino”, ao contrário do que acontece na “terra do sol nascente” e, por conseguinte, o resultado da constante mutação do presente cosmopolita, que tão depressa passa a “ontem” traduzindo, um pouco, a imagem da cultura atual do Japão, onde a tradição se rompe e, ao mesmo tempo, se funde com a modernidade. E tudo acontece num ambiente descontraído.
A acicatar o palato: Ceviche de mexilhão com molho de abacaxi e lima
Porquê no Príncipe Real?
Procuramos espaço desde o Cais do Sodré ao Príncipe Real e Campo de Ourique. Eram, portanto, estas as áreas que tínhamos pensado para o restaurante e que faziam sentido, até que conseguimos este espaço aqui, pois um dos principais requisitos para um restaurante destes é, como dizem os ingleses, ‘location, location, location’. Além de que temos de ter uma boa cozinha e um bom conceito, e este é um produto que localizado longe dos olhos não funcionaria da mesma maneira, por isso a localização era fundamental e encontrar este espaço foi como ter ‘ouro sobre azul’.
E porque estamos numa das zonas mais multiculturais de Lisboa.
Cada vez mais, neste momento. É uma zona de Lisboa que é o mais parecido possível como Soho, em Londres, que tem um bocadinho de tudo – lojas de arte, designers de moda… Aliás, aqui, as pessoas têm uma maneira de estar e de ver as coisas de uma maneira diferente, portanto este espaço foi mesmo um achado. Quando soubemos que isto estava para trespasse dizíamos: ‘Chiu! Não digam a ninguém!’ Estar aqui com um terraço no jardim do Príncipe Real é quase um luxo.
“Na cozinha dizíamos os nomes dos ingredientes em japonês! Foi uma viagem muito interessante pela comida asiática.”
Agora sobre a Ana. Quando começou a interessar-se pela cozinha japonesa?
Comecei por portas e travessas. Estava com a cozinha internacional e no segundo ano do curso de cozinha, na Escola Superior de Hotelaria e Turismo do Estoril, queria trabalhar. O hotel que havia mais perto da escola era o Penha Longa e eu só queria ir trabalhar nos banquetes, porque era mais sazonal, mas como a brigada de banquetes estava fechada e havia uma vaga disponível no Midori cai de para-quedas. Não sabia nada, não conhecia nada… Foi uma surpresa! Naquela altura, o hotel pertencia a japoneses, o nosso diretor de F&B era japonês, e o nós tínhamos muitos japoneses que vinham por causa do golfe e para passar férias ali. A cozinha era japonesa a sério, os ingredientes tinham de ser autênticos e era tudo visto por eles. Na cozinha dizíamos os nomes dos ingredientes em japonês! Foi uma viagem muito interessante pela comida asiática.
Quais são as etapas de aprendizagem?
Primeiro cozinha, o teppan e depois sushi bar e antes de entrar no sushi bar estive uma semana antes a fazer só ikebanas, os arranjos florais, no restautante. Para eles é muito importante que, quem vai para o sushi bar, tem estética, tem capacidade de fazer os arranjos de forma harmoniosa e com alguma beleza.
Ou seja, não é apenas o corte no peixe que é tido em conta, é também o lado estético, visual da apresentação…
A estética dos japoneses tem a ver com a filosofia deles, como maneiras de estar, com metologias – tem a ver com altura, números, sorte, azar, os momentos do ano… Portanto, as coisas não são ‘atiradas’ para um prato, tem de haver uma lógica na apresentação.
Por falar em viagem, como referiu há pouco, já esteve no Japão?
Nunca estive… No Midori, do Penha Longa, tinham uma política muito boa, que era, de dois em dois anos, dois elementos da equipa ia a um dos hotéis deles, no Japão, para aprenderem com os chefs de lá. Quando chegou o ano em que eu era para ir – era para ir com o Daniel Matos, que está no SushiCafé, o diretor do F&B disse-me que eu não ia ao Japão, porque lá não ensinam uma mulher na cozinha, pelo que não iria desperdiçar uma viagem comigo. Fiquei tão sentida… E até hoje não fui, porque não tenho tido tempo para ir. A restauração absorve muito do meu tempo, mas irei na altura certa.
Ser-se sushiwoman em Portugal já não é uma raridade.
Já há bastantes. Sou uma grande defensora disso. É uma opção de vida, por isso tanto mulheres como homens correm para esta função.
O que se deve ao boom da cozinha nipónica por cá.
Sim. Há três anos fazia formação no Evertything about Sushi – agora estou um bocado parada – e, nessa altura, havia muitas pessoas que estavam a mudar de carreira, desde arquitetos, pessoas que trabalhavam nas obras, no fundo, pessoas que não estavam a fazer nada e viram ali uma oportunidade de eventual entrada no mercado de trabalho.
“Eu sei fazer cozinha clássica japonesa – sei reconhecê-la –, mas com o tempo – já lá vão 18 anos –, vamos pondo algo de nós.”
Cachaço de porco com molho de soja, mirin (uma espécie de vinho de arroz semelhante ao sake) e gengibre acompanhado pelo bao (pão ao vapor) e cogumelos salteados
No entanto, surgiu a cozinha de fusão em paralelo à cozinha clássica nipónica.
Toda a gente tem a sua marca. Eu sei fazer cozinha clássica japonesa – sei reconhecê-la –, mas com o tempo – já lá vão 18 anos –, vamos pondo algo de nós. Ou seja, ponho elementos meus, que são o meu cunho e são considerados de fusão, mas tento estar dentro da lógica, da origem e do verdadeiro conceito da cozinha japonesa. Imaginemos que temos um lírio dos Açores, gordíssimo, sou incapaz de pôr um molho em cima do peixe. Tenho de o servir perfeito, mas posso brincar com outros produtos no prato e que tenham ali algo, como o iuzu, que eu sei que vai mexer com o tradicional, mas estou a complementá-lo dentro da lógica japonesa. Sou incapaz de colocar uma maionese.
Ou um Philadelphia?
Todos brincam comigo, porque esse queijo e os morangos não entram na minha cozinha. Mas podem ser o cunho de alguém, razão pela qual se deve chamar ‘cozinha japonesa de…’ e o nome da tal pessoa, porque se pode interpretar.
“Fomos nós que levamos a tempura para o Japão. Os nossos peixinhos da horta.”
Cones de tenpura – um de choco com amêndoa e o outro com pataniscas de legumes –, aos quais Anna Lins deu o nome de Japanese Junk Food
Do clássico japonês à mesa falemos da tenpura, que é nossa.
Fomos nós que levamos a tempura para o Japão. Os nossos peixinhos da horta. Quando tivemos um porto nosso no Japão, pela altura dos Descobrimentos, o porto era regido por padres jesuítas, que levaram para lá hábitos portugueses, entre eles a tempura, o pão de ló, ao qual chamam de castella, por ter as claras batidas em castelo e que ainda fazem como antigamente – com mel –, e o escabeche, o namban zuke, o pickle dos bárbaros. E o pão, que era levedado, fomos nós que o levámos o hábito de levedar os pães.
Tataki negro: Salmão com alga nori, molho de agrião, wasabi e pimenta rosa
Falemos do peixe. Quais os melhores e os mais adequados nesta cozinha?
Temos peixes fantásticos! A nossa costa tem uma variedade de peixe óptima e eu, pessoalmente, adoro trabalhar os peixes azuis – carapau, sardinha e cavala. Têm sabores e texturas que eu adoro. Tenho de trabalhar com salmão – é da Noruega, não é nosso –, por causa da cor e porque tem um teor de gordura, e porque o cliente quer. Não digo que não, mas tendo mar aqui não iria buscar a mares mais longínquos. Quando estivermos no final do verão, estas montras irão ficar uma maravilha!
“Ainda há muito o hábito do sushi, do produto com o arroz.”
Sobre a carta do Miss Jappa, o que podemos dizer sobre o que vai para a mesa?
Ainda há muito o hábito do sushi, do produto com o arroz. Nós temos o combinado de sushi com sashimi e um sashimi sozinho – por mim, só faria refeições só com nigiris. Tem saído muito também os atarashis, as tais interpretações, onde meto o dedo nos arranjos e nos sabores, e é um bocadinho invulgar, mas tem tido uma grande adesão por parte dos clientes.
Tarte de chocolate, toffee e gelado de gengibre, para terminar o repasto
Nas sobremesas, onde é que o Japão mete a colher?
O Japão mete a colher, porque há sempre elementos asiáticos, embora não tenham hábito per si de terem sobremesa no final da refeição. Têm a fruta, por isso, bati o pé e meti a fruta com gelatina de chá oolong e espuma de manga – tradicionalmente eles acabam com feijão azuki e calda por cima, mas como é muito doce e muito pesado, optei por fazer uma espuma de manga, para ficar mais leve. Há também a tarte de chocolate , com o toffee – mais europeu não poderia ser – e o gelado de gengibre – e aqui está a minha mãozinha – e a outra são os mini crepes com banana e o chocolate, o gelado de limão e umas tirinhas muito fininhas – um corte que eles fazem na cozinha tradicional – na cenoura e fritamos.
“Antes de fazer a ementa, devemos adaptar os pratos à cozinha.”
E o castella?
Era muito difícil fazer o castella nesta cozinha. Para isso precisava de uma máquina para bater os ovos. Antes de fazer a ementa, devemos adaptar os pratos à cozinha. Lembro-me que, quando fiz o meu curso, tínhamos uma disciplina que era equipamento e manutenção, em que o professor dizia: “A cozinha começa-se a montar pela ementa. E antes de comprarem a máquina de lavar pratos, precisam de saber, antes, de quantos precisam e de quantas refeições vão dar, também para saber quantos têm de comprar.” Quando cheguei aqui já tinha uma cozinha – que é fantástica – montada, pelo que tive de adaptar o que queria ao espaço que tenha aqui.
Roleta russa de seis gunkan: Quem calhar com a malagueta tem de beber um shot de saké e uma lima, para aliviar…
Já há uma lista de preferências no Miss Jappa?
Há dois ou três pratos que saem sistematicamente. O tártaro in a box, nas entradas, que é um tártaro de atum e salmão com ostias de camarão à volta; a roleta russa de seis gunkan, o que está a ser giríssimo, porque quem está a trabalhar no balcão sente o silêncio e, logo a seguir, há gargalhadas. Há clientes que não sentem, porque estão habituados ao picante, mas há outros que ficam tão aflitos… Nestes casos temos um antídoto mágico para salvar os paladares quando o cliente fica vermelho até à raiz dos cabelos.
Tártaro de salmão e atum in a box com chips de camarão e sweet chilli
Traduzamos a carta cuja assinatura é, nada mais, nada menos que Translating Flavours, ou seja, é uma interpretação dos sabores japoneses com detalhes nas receitas originais, mas com o devido respeito pela autenticidade e as técnicas da cozinha nipónica. Resultado: Há junk food, há o clássico japonês e os pratos fora da caixa à mesa, além da aposta no sake, a bebida de eleição dos japoneses, pois é a base de alguns dos cocktails do Miss Jappa, os quais estão inscritos numa lista da responsabilidade de Dave Palethorpe, o proprietário do Cinco Lounge, também em Lisboa.
Passemos às apresentações: Anna Lins começou a trabalhar na cozinha japonesa no Midori, no Penha Longa, em Sintra, no segundo ano do curso de cozinha e produção alimentar, na Escola Superior de Hotelaria e Turismo do Estoril, em 1998, o qual concluiu em 2000. No verão do mesmo ano integrou a equipa da cozinha japonesa do Tsuru, na Quinta do Lago, em Almancil, nas terras algarvias e, em outubro, novembro, foi para o sushi bar da Bica do Sapato, em Lisboa, o emblemático restaurante que tinha à frente o chef Fausto Aroldi, onde permaneceu até ir para um projeto próprio em Oeiras, o QB Essence, ao qual se seguiu o Izakaya Umai, perto de São Bento, em Lisboa e, mais tarde o segundo Umai, o asian twist, este no Chiado, até ao momento em que o hotel em que se encontrava o restaurante foi comprado por um grupo francês. Em setembro de 2015, Anna Lins passou a ser a chef executiva da Go Natural, grupo a que faz parte Miss Jappa.
Mas afinal quem é Miss Jappa? É ir ao n.º 5 da praça do Príncipe Real, em Lisboa, de terça a quinta, entre as 12.30 e as 15 horas, e as 19 e as 00 horas – à sexta é até à uma da manhã –, aos sábados, das 12.30 à 1 hora da manhã, e ao domingo das 12.30 às 00 horas, para a conhecer. Para reservar há que ligar através do 21 137 9763 ou do 96 783 06 93.
Bom apetite! •
+ Miss Jappa
© Fotografia: João Pedro Rato
Legenda da foto de entrada: A chef Anna Lins
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