“Hoje em dia, os alunos vão iludidos com o mundo do estrelato” / Chef Manel Lino

O prato de rabo de boi, o ex-líbris do Tabik Restaurant denuncia as origens de Manuel Lino, ribatejano de gema, há 29 anos que, desde cedo evidenciou o jeito por trabalhos manuais e a procura incessante de respostas para questões pertinentes fazendo-o seguir em frente na escolha do curso de cozinha e pastelaria, na Escola Profissional de Salvaterra de Magos, em 2003. Vamos conhecer o chef do Tabik Restaurant, na avenida da liberdade, em Lisboa, desde fevereiro de 2015, onde“a cozinha de autor é, no fundo, fruto da inspiração do receituário regional português.

O que o levou a eleger a Escola Profissional de Salvaterra de Magos para o curso que, no fundo, foi o ponto de partida para aprofundar o gosto pela cozinha?
Sempre gostei muito de trabalhos manuais e, a dada altura, e porque gostava de comer e de cozinhar – e nunca fui grande aluno e nunca gostei do formato de ter de permanecer numa sala de aula e, hoje em dia sou formados, o que pode ser contraditório, mas nunca me senti confortável, mas sim preso e limitado quando tinha de estar nas aulxas e nunca fui grande aluno ao contrário dos meus irmãos, da minha família. Sempre me senti atraído por trabalhos manuais, por coisas diferentes, sempre questionei: “Porque tem de isto ser assim? Podemos fazer antes desta maneira.” A uma dada altura tive de escolher o que queria fazer. Até então nunca tinha equacionado fazer da cozinha o meu trabalho. No secundário, escolhi, sem pensar, ir para a área de arte e, como segunda opção, nesta escola. Nessa altura a cozinha não estava tão em voga como está hoje, mas a minha mãe convenceu-me por acreditar no meu jeito – a minha família acreditava no meu trabalho, em relação ao qual já se antevia um futuro em termos gerais neste universo da cozinha. Mesmo assim não assumi que este viesse a ser o meu trabalho. Pensava no jeito que tinha para a área mas, assim que terminasse o 12.º ano, logo se via. No entanto, rápido percebi, ou seja, no estágio que fiz no final do segundo ano, no Vila Vita Park, no Algarve, onde tive contacto com uma cozinha profissional – porque na escola é tudo uma “brincadeira”, sobretudo quando falamos de uma escola pequena e com poucos recursos há 15 anos –, com cozinheiros estrangeiros, formados, e cozinhas diferentes coordenadas por diferentes pessoas ao mesmo tempo, tudo mudou na minha cabeça. Quando fui para o segundo ano do curso voltei a pensar que era aquilo que eu queria fazer para sempre. Não sabia ainda que estilo gostava mais ou menos, mas abriu-me as portas à vontade de querer investigar, de querer saber mais. Quando tinha a oportunidade de pedir um presente a alguém, pedia um livro de cozinha, comprava muitas revistas, pesquisava muito sobre restaurantes na Internet – já tinha Internet em casa naquela altura. Fiz o segundo estágio do curso no Pragma [no Casino Lisboa, no Parque das Nações], onde fiquei – tinha uma cozinha que gostei bastante, muito à frente na altura e com muitas novidades em relação ao que se via nas outras cozinhas, o que me fascinou. A seguir fui para outro restaurante que também já não existe, a Quinta da Catralvos [em Azeitão], do chef Luís Baena, onde estive quase um ano. Mas antes de começar decidi sair de Portugal.

Por que razão decidiu aventurar-se fora de portas, pela vizinha Espanha?
Porque tudo o que via gostava mas, ao mesmo tempo, queria mais. Era tudo tão acessível, pensava que tinha de haver mais. Eu queria mais. Então, pesquisei sobre restaurantes, os melhores chefs… Três ou quatro anos antes, em 2002, nasceu o 50 Best of the World, vi que restaurantes fazia parte desta lista e enviei currículos para os primeiros 20. Alguns responderam e de um deles – do Mugaritz [no País Basco] – deu-me uma resposta a informar-me que podia ir para lá dai a um ano. Foi o único que me enviou uma resposta concreta. Custou-me um bocado por me afastar tanto da minha família. Fui para um grande restaurante, que me fascinou muito. Ao início, senti que tinha ali uma grande barreira, que era a língua, mas ultrapassei rapidamente. Fiquei no restaurante durante os seis meses e, depois, fui para Barcelona, onde fiquei por cinco anos, para consolidar a minha experiência. Passei por restaurantes bons – fiz a abertura do Hotel Madarin Oriental e do Moments, o restaurante de Carme Ruscalleda, trabalhei no emblemático Via Veneto, depois afastei-me daquela área e trabalhei no Celler de Can Roca [na Catalunha] e com um chef de Córdoba, o Paco Morales, que tinha trabalhado no Mugaritz, que abriu um hotel perto de Valência. Ao fim de quase cinco anos – quatro anos e nove meses – decidi sair de Barcelona.

Foram grandes lições de vida.
É filosofia, é método de trabalho, é a maneira como encaramos as coisas, é educação e formação profissional para a vida, e houve sítios que me influenciaram mais do que outros.

Qual foi o que o influenciou mais?
O Mugaritz, sem dúvida! E vivi um momento mais bonito nos Roca que foi quando eles subiram para a posição n.º 2 no mundo. Foi emocionante! Mas o Mugaritz foi… quem estagiou ou trabalho no Mugaritz sabe o que sentiu enquanto lá esteve mas, depois, é difícil transmitir isso cá para fora. É um lugar desprovido de luxo, é simples, mas quem lá está e se entrega encontra uma satisfação enorme.

Tentou ir para Londres…
Sim. Tentei ir para Londres, onde fiz uma série de entrevistas, mas é uma cidade dura, agressiva e, por isso, decidi não ficar lá. Fui para Edimburgo, para um restaurante chamado Martin Wishard, onde tive uma curta passagem, ao que se seguiu o meu regresso a Portugal, em 2012. Não vinha com a intenção de ficar, mas sim de parar, pensar e, depois, voltar a sair – ou não. Foi quando surgiu a oportunidade de ir para o Marmóris [em Vila Voçosa].

Foi quando ficou com a função de sub-chef do chef Alexandre Silva.
Não conhecia o Alexandre nem o Bocca in loco, mas o Alexandre apresentou-me o projeto, que gostei bastante e onde teria liberdade máxima. Por várias razões, – o Alexandre achou que o caminho dele não era aquele – decidi sair com o Alexandre e cada um seguiu o seu caminho. Foi quando me lancei por conta própria no Mercado de Campo de Ourique, o Chef no Mercado.

E que tal?
O que me apresentaram quando fui para ali foi que consistia num mercado gastronómico cujo conceito era haver proximidade com o produtor, no entanto, e ao contrário do Mercado da Ribeira, não é mais do que um food court de um centro comercial com uma decoração de mercado, porque o que resulta ali são os hambúrgueres, as empadas e a carne. E a minha ideia era fazer uma cozinha de mercado. Era o único que comprava o peixe, a carne e os legumes no mercado, por questões de ideologia, porque queria fazer uma coisa autêntica, mas em questões de lucro, obviamente, que não “vivia”, porque queria fazer pratos com o que havia de fresco no mercado.

Como reagia o público?
As pessoas gostavam, mas um prato meu – só o prato – era seis ou sete euros, o que lhes custava. Ou seja, a concorrência não era de igual para igual. Então decidi, ao fim de dois, três meses, dar um passo atrás e, enquanto estive parado, em março, abril, propus um espaço pop-up de verão a cliente habitual nosso, na Comporta, onde cozinhámos para quem lá ia, no verão, e iam pessoas de Lisboa e de Setúbal também.

“Foi um autêntico master de gastronomia sustentável.”

Falamos do Com.Horta, em 2014, um projecto pop-up que reunia a alta gastronomia à natureza, na Comporta, um estilo de cozinha com a qual se identifica. É isso?
Apesar de não ser muito naturalista, gosto muito da proximidade com a natureza. Só para dar um exemplo, o peixe que lá cozinhávamos era cem por cento pescado por nós e eram quase sempre os mesmo quatro tipos de peixe. Tínhamos uma horta com vegetais, que fomos plantar em março, abril. O pop-up começou em maio e apostámos no facebook. Jogávamos com os meios que tínhamos, comprávamos o que era necessário com o dinheiro ganho nos jantares, portanto, os nossos recursos eram limitados. Esse era, porém, o desafio. O espaço era composto por uma cozinha e uma galeria de arte, no meio da qual colocávamos mesas e eram servidos os jantares; no outro extremo havia as casas de banho.

Como eram os jantares?
Muito pequenos, muito intimistas. Às vezes era um grupo de 18 pessoas em mesas corridas e eram servidos quatro, cinco pratos. A única coisa que comprávamos – para além do açúcar, da farinha…  – era a carne num talho, em Grândola, de um senhor que nos arranjava coisas diferentes, com as quais brincávamos na cozinha, porque tínhamos tempo e disponibilidade mental. Foi um autêntico master de gastronomia sustentável. Entretanto, em maio, surgiu a proposta para vir para o Tabik, portanto já estava a definir como seria a cozinha daqui enquanto estava lá – ainda estava numa fase muito crua –, acabando por abrir em fevereiro de 2015. Decidimos que iria ser um restaurante mais informal, mais descontraído e trendy, no entanto, e só para exemplificar, não quis fazer um arroz doce normal, por isso dei-lhe um toque diferente e com um lado divertido, para que as pessoas gostem e se sintam bem.

Além de criativa, o Manuel define a cozinha do Tabik como sendo “descomplicada”. O que quer dizer com cozinha “descomplicada”?
É uma cozinha  criativa, porque o processo criativo está presente no sentido em que lhe damos a volta, tentamos melhorá-la e torná-la diferente, porque nos inspiramos nas nossas experiências e no nosso conhecimento, e descomplicada porque, ao contrário de um restaurante de fine dining ou de alta cozinha, em que o foco do cliente está direcionado para o que está a comer em que está patente todo aquele processo sensorial à volta da refeição, aqui não. Aqui queremos que as pessoas desfrutem e venham com um grupo de amigos e com a família, e comam o que lhes saiba bem e que gostem do ambiente.

E é, também, uma cozinha de origens, uma vez que o Manuel se inspira no receituário regional do país.
Há o leitão, o rabo de boi… e tentamos dar uma volta. Vamos buscar produtos que são nossos, mas que não são tão usados, como a cherovia ou o rabo de boi, que as pessoas estão mais habituadas a ver na sopa, ou o leitão, que estão habituadas a vê-lo assado – assamos também mas, depois, damos-lhe outra apresentação e aproveitamos para lhe mudar texturas. Outro exemplo: O bacalhau, que é cozinhado a baixa temperatura, com o ovo, também cozinhado a baixa temperatura e, por baixo, colocamos umas sopas de pão por baixo que não são mais do que um creme fino com sabor a pão torrado, os coentros a lembrar o Alentejo. Há a cavala que, entretanto saiu, e voltará em maio e um pouco mais leve.

Há pouco falava que, há 15 anos, a cozinha não estava tão em voga como atualmente. Como vê os alunos que frequentam as escolas de hoje?
Antigamente queríamos estudar ou porque queríamos fazer o 12.º ano ou porque queríamos ser cozinheiros. Hoje em dia, os alunos vão iludidos com o mundo do estrelato . Não estou a referir-me às estrelas Michelin mas, isso sim, ao sonho de quererem aparecer numa revista, com o objetivo de quererem alcançar um patamar que nós, há 15 anos, nem sabíamos que existia ou sabíamos se íamos lá chegar. Portanto, não é aconselhável que saltem etapas, pois há um processo contínuo que deve ser seguido sem atalhos. •

Leia aqui sobre o restaurante Tabik.

+ Tabik Restaurant
Fotografia: João Pedro Rato

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