De génio e de Lo(u)co, o Alexandre tem um pouco

… ou q.b. com picos de uma irreverência que Lisboa há muito estava à espera, pois o enfoque num manifesto que subverte a gastronomia portuguesa numa união de sabores genuínos e apimentados por uma mise en scène criativa convertendo, in loco, o repasto numa experiência conduzida por uma cozinha alternativa concebida em equipa.

Trabalhar os produtos da estação, em particular os portugueses, respeitando o ritmo da natureza e o sabor, o epicentro da cozinha do Loco, estão inscritos do Manifesto escrito por Alexandre Silva, o chef do já badalado restaurante que se encontra de portas abertas desde dezembro de 2015, no n.º 53-B da rua dos Navegantes, em Lisboa, com uma deslumbrante vista noturna para cúpula da vetusta Basílica da Estrela.

Porém, o Manifesto não fica por aqui, pois a lógica da sustentabilidade e do potenciar o produto são outros dos pontos a ter em conta neste registo, assim como o processo criativo da equipa que, no âmbito dos Sundays Projects, cada elemento dá corda à imaginação, a fim de apresentar uma boa nova resultante “da tradição, da paixão pela partilha e das viagens que todos fazemos”, declarou Ricardo Leite, o sub-chefe. Portanto o Loco é um roteiro de sabores no espaço e no tempo, razões de sobra para que o repasto seja convertido numa experiência para ser vivida ao minuto.

Entremos. Uma oliveira suspensa num enorme vaso de metal preso com amarras agarradas ao teto é a premissa da implementação de um processo orgânico e evolutivo que Alexandre Silva ambiciona para o seu fine dining de cozinha de autor – ou de um jardim de inverno de uma casa –, junto à qual está a parede ornamentada por uma malha de ferro de cor alva trabalhado com a garrafeira por detrás.

A preto & branco, e a madeira

A sala, dominada pelo branco – e pela parede revestida de losangos em cerâmica, numa recriação alusiva à emblemática Casa dos Bicos de Lisboa, do projecto “The Wall Project by MAVC” da arquitecta e artista plástica Maria Ana Vasco Costa e produzidos pelo Estúdio, Caldas da Rainha, em parceria com a Olaria João Coelho, e premiada, em fevereiro passado, na categoria de “Retail Interior Surface” pelos Surface Design Awards 2016 –, é contígua à cozinha, a negro, compõem o open space separado apenas pelo balcão onde são preparados os pratos com a minúcia de um artesão. A participação é amiúde e todos servem à mesa, num desfile sincronizado sem barreiras nem preconceitos, e quão intimista e descontraído é o ambiente num espaço de janelas rasgadas para o exterior.

As mesas de tampo de madeira maciça e pés de madeira de oliveira, sutentados por discretas barras de ferro forjado, são feitas pelo pai de Alexandre Silva e estão despojadas de toalhas; e o talher, escolhido a dedo, são a ressalva de que a cutelaria portuguesa vale a pena e fica sempre bem, assim como a constante brincadeira séria e estruturada da escolha dos “pratos” e acessórios de servir – também da autoria do progenitor do chef –, deixando transparecer o talento de uma equipa singular.

A portugalidade dos produtos e as bebidas home made

Em cena está o escanção Sérgio Antunes, o anfitrião da noite que dá as boas vindas com um Quinta dos Abibes Espumante Extra Bruto Arinto e Baga Reserva 2012, um DOP da região vitivinícola da Bairrada, enquanto faz a apresentação do Loco, que “trabalha muito com produtos de mercado” – “há uma preocupação cada vez maior em relação à cozinha portuguesa e aos produtos nacionais”, acrescentou Ricardo Leite mais à frente, permitindo mudanças nos menus – “há um ou dois pratos que, por semana, entram no menu” – e facilitando, ao mesmo tempo, que outros sejam substituídos “quando há clientes que repetem a reserva, para que não comam o mesmo”, além de que “há sempre um plano B para as intolerâncias”.

Quanto ao ofício que desempenha no Loco, Sérgio Antunes fala sobre a carta de bebidas, composta por vinhos de produção nacional, pelas cervejas artesanais home made e pelos sumos naturais fermentados feitos in loco, com a finalidade de fugir aos sumos e refrigerantes convencionais, e aos quais se juntam os licores de ervas. Afinal, um escanção tem de perceber de tudo neste vasto contexto que vai do vinho e do café à cerveja e ao chá, por isso “acho que não deve ser servido apenas o vinho e o Alexandre partilha desta ideia”, argumentou Sérgio Antunes.

Sentemo-nos. O desafio é degustar o menu Loco composto por 18 momentos – há, ainda, o  Descobrir, com 14 momentos –, mas não sem antes “pescar” o carasau, o pão laminado de origem italiana, feito pelo pasteleiro Carlos Fernandes, o qual está preso no anzol sob a mesa. É tirar e comer.

Momento I / Snacks

A versão do pastel de bacalhau – suave, diremos nós, mas muito apetecível.

Pão cozinhado a vapor com recheio de chouriço, uma versão genial que, a servir mais vezes, tornar-se-ía num vício, graças ao sabor desta iguaria que convenceu à primeira.

Quem nunca mexeu numa pinça de chef que se acuse, pois aqui é o caso de se tornar cúmplice deste desafio ou não fosse o dito utensílio estritamente necessário para pegar na surpreendente barriga de atum fumada com pickle de tangerina, um momento de suspense q.b. precedido ao ato que requer muita destreza na ponta dos dedos.

Caldeirada – à moda do Loco, dizemos nós –, pois o sabor deste prato típico português está no caldo que se encontra no interior da “colher” de vidro – pega-se na extremidade mais estreita e longitudinal do utensílio, para sorver o líquido e comer a cavala.

O mexilhão com molho de maçã verde e raiz de aipo integra o alinhamento do que o mar nos dá num menu que ainda está no início.

Agora abra a boca e feche os olhos. De colher em riste, e com a acalmia que é de esperar à mesa, é surpreendido com o snack composto por atum, quinoa estufada, puré de limão confitado, molho teriaki caseiro, cebolinho e petazetas.

O lingueirão – que “é aberto no dia”, assegurou Ricardo Leite – ornamento com maçã e vinagrete de ponzo, uma mescla divertida de sabores que fecha o primeiro momento do menu Loco.

Momento II / O pão

Serviu-se o pão, que Alexandre Silva e toda a equipa do Loco dá muito valor. “É feito por nós diariamente” e apresentado numa caixa de madeira e envolto num pano branco – há broa rústica e pão com passas e tangerina  – e é mudado de quando em vez. Na manteiga a variedade comanda a felicidade nos aficcionados nesta substância, pois há a de Azeitão – a melhor das quatro –, a de algas, a de tinta de choco fumado – cinco estrelas – e a de alho, salsa e pó de cebola – de comer e chorar por mais. Para compor o figurino, eis a frigideira com o saboroso molho de bife que indicia o tão típico costume português há muito esquecido por causa dos inquietos cuidados com os hábitos alimentares – molhar o pão e saborear o momento – sem esquecer o azeite duriense eleito para fazer parte deste festim.

Para acompanhar, Sérgio Antunes escolheu o kvass, bebida inspirada numa receita tradicional russa, que significa “fermento”, e uma das coqueluches da casa que alinhou, na perfeição, com o pão do Loco.

Momento III / Pratos principais

Lula, calda de pé de porco e lingueirão

Eis que Baco é chamado à mesa. Sérgio Antunes apresentou Somnium branco, vinho duriense feito a partir de castas de vinhas velhas com mais de 70 anos e desenhado pelos enólogos Joana Pinhão e Rui Freire.

Da cozinha veio a lula com calda de pé de porco e lingueirão picante, um prato com picante q.b. que conquistou o palato desde logo.

Seguiu-se a ostra da ria de Aveiro – “são diárias e abertas 30 minutos antes do serviço”, garantiu o sub-chefe – regada, já na mesa, com um molho agridoce e ligeiramente picante, feito com citronella, lima e kafir. Há que deixar a cozinhar a vapor por um minuto et voilá! Está pronta a comer, tendo a harmonização com o referido vinho sido de truz!

Desta vez a viagem vinícola foi até à Península de Setúbal com Costa SW Reserva branco 2013, da Quinta do Brejinho, Grândola, um vinho feito a partir das castas Arinto, Alvarinho e Encruzado, e pelo enólogo Luís Camacho Simões, para harmonizar – e muito bem – com o inusitado carapau com molho de cebola e de pato, óleo de hortelã, pó de cebola e malagueta, prato que converteu o palato a este alinhamento lo(u)co deste restaurante lisboeta.

Do mar foi também servido a captura de charuteiro crocante com caril verde e em algas, e envolto em folha de bananeira, um prato memorável para acompanhar com uma bebida de coco ligeiramente picante.

O grão e os tendões de mão de vaca conquistou a alma – e conquistará a sua, se for grande apreciador de tão típico prato ribatejano trazido para o Loco pelo sub-chefe, sendo esta “uma das recordações que mantenho da minha avó na cozinha” – e foi servido com molho picante q.b. após sugestão – bastam duas ou três gotas, para apimentar a boca. Por sua vez, Sérgio Antunes recomendou um Quinta de Sant’Ana Pinot Noir 2013, um tinto de Lisboa que casou bem com o prato.

A mesma apreciação faz-se a respeito do prato que se segue: Um suculento ravioli com rabo de boi e legumes salteados sob uma deleitosa espuma de alho tostado.

Momento IV / A sobremesa

Passemos aos doces momentos do menu Loco, primeiro na versão snack composto por uma lâmina de gengibre confitada, puré de cidrão (citrino de aroma perfumado) e perfume de canela, para limpar o palato.

E porque o mote é sair da caixa, a pré-sobremesa trouxe pêra, camomila e mizo na composição, a prova de que o Loco ganha pela irreverência, graças a uma constante missão em busca do que é diferente.

Assim aconteceu também com a última sobremesa, que torna esse arrojo em superlativa soberba com o aipo granizado e em gelado, o caril verde e o brioche caramelizado numa divertida harmonia de sabores com açúcar q.b.. E apesar de aqui deixarmos a vetusta frase do ilustre escritor português Fernando Pessoa – “primeiro estanha-se, depois entranha-se” –, o certo é que revelou-se uma sedutora composição na boca.

Com um pé fora da cozinha, Sérgio Antunes sugeriu o duriense Late Harvest Petit Manseng 2013, do produtor Gonçalo Sousa Lopes e cujo aroma a melaço e o sabor suave a marmelada rimaram, na perfeição, com este trio de iguarias, com o intuito de acrescentar-lhes o doce q.b.

Os petit-fours são servidos com o café ou o chá numa envolvência retro

O café de balão, momento retro que desperta a memória para tempos idos, é deixado para o fim. “Queríamos um café que fosse aromático mas, ao mesmo tempo, aromático e intenso”, daí a a escolha de um blend “construído” pela equipa, que decidiu pelas variedades do Ruanda, da Etiópia e da Índia, sendo a terra feita em cada 15 dias. Assim, com as recordações em pano de fundo, Carlos Fernandes, o chef pasteleiro trouxe à mesa uma respeitável caixa de costura vintage que, entre pequenas gavetas e mini cestos, guarda a doçura das queijadinhas de leite da avó Sofia – tributo prestado por Alexandre Silva à avó Sofia –, dos choux de canela com creme de limão, das bolachinhas de chocolate negro 70 % com flor de sal, das bolachas com uma mistura de especiarias marroquinas e amendoim, da trufa de chocolate negro 55% e baunilha de São Tomé e Príncipe (oferta de Ljubomir Stanisic, chef dos 100 Maneiras), e do falso, e mui delicioso, coscorão servidos num pano de linho finamente ornamentado com um bastidor pronto a bordar e, em simultâneo, a reavivar as memórias das tranquilas tardes em que muitas das nossas avós se dedicavam a tão sereno ofício. Entretanto – como que a adivinhar a presença de gourmands à mesa – foram servidas bolinhas de Berlim com gelado de doce de ovo, a cereja no topo do bolo.

Finda a descrição, diríamos que o Loco podia ser… em Barcelona, podia, mas são muitos os quilómetros que separam ambas as cidades, motivo pelo qual não há desculpas para rumar à tranquila rua dos Navegantes, em Lisboa, para vivenciar uma experiência bem diferente de terça a domingo, das 19 às 23 horas. Mas primeiro reserva mesa (é obrigatório) através do 213 951 861 ou de reservas@loco.pt.

Boa viagem e bom apetite! •

+ Loco Restaurante
© Fotografia: João Pedro Rato

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