A alta gastronomia esteve, no dia 19 de setembro, no LX Factory, em Lisboa, reunindo seis chefs que traduziram a vanguarda e a criatividade, ora com mais ênfase nos pratos, ora nos ingredientes, e até houve quem desafiasse os demais a responderem a questões pertinentes associadas à cozinha portuguesa nos dias de hoje.
João Rodrigues levou quatro pratos e duas mãos cheias de reflexões sobre a cozinha portuguesa
“Como descrevem a cozinha portuguesa atual?” “Como se transmite a cozinha portuguesa a quem não a conhece?” “Até que ponto faz sentido as cartas serem fixas quando não existe consistência do produto?” Eis três das perguntas que João Rodrigues (leia aqui a entrevista), chef do Feitoria (1 estrela Michelin), do Altis Belém Hotel & Spa, e, Belém, fez no palco da Fábrica XL da LX Factory por ocasião do Congresso Gastronómico da Estrella Damm de Lisboa, onde estiveram também presentes os chefs Kiko Martins, de O Talhe e A Cevicheria, e Henrique Sá Pessoa (leia aqui a entrevista), do Alma, em Lisboa, assim como os espanhóis Nandu Jubany, do Can Jubany (1 estrela Michelin), Andoni Luis Aduriz, do Mugaritz (2 estrelas Michelin), e Albert Adriá, do elBarri (o Tickets, o Pakta e no Hoja Santa tê, cada um, 1 estrela Michelin), os três em Barcelona, e que foi apresentado por Miguel Pires, do blogue Mesa Marcada.
O objetivo de João Rodrigues foi questionar os presentes sobre de que forma os chefs podem mostrar a cozinha portuguesa a quem vem de fora, apesar de que “ainda é muito desconhecida até na sua forma convencional” mas, por outro lado, “há quem ache que a cozinha não deve acompanhar essa evolução”. Como fazê-lo, afinal? “Fazemos de uma forma individual ou tentamos, de uma vez por todas, de uma forma orquestrada?”
“(…) há que ter vontade de fazer, vontade de arriscar. Se tiverem de corrigir, corrija-se!”
No “desenrolar” das perguntas, o chef do Feitoria levantou também a questão do respeito pelos produtos, da confiança com os fornecedores e na regularidade e da abertura ou não “abertura, por parte dos clientes para que haja menus elaborados de acordo com a sazonalidade dos produtos”. No alinhamento da sua intervenção, João Rodrigues referiu que os chefs que têm o seu próprio espaço já conseguem “construir algo de raiz” e de poderem desenvolver “um conceito que começa precisamente nesses pormenores”. “A diferenciação começa na experimentação”, no “ensaio-erro-tentativa” que Andoni Luis Aduriz tinha falado antes – já lá iremos –, pois “há que ter vontade de fazer, vontade de arriscar. Se tiverem de corrigir, corrija-se!”
Passando à prática, o chef do Feitoria dar a conhecer “a cozinha portuguesa vista pelos meus olhos” e a forma subtil de como pode mostrar o bacalhau à Braz a quem vem de fora, uma vez que a maioria dos clientes do restaurante é estrangeira. Depois de desconstruído e colocado ao lado da versão tradicional do mesmo prato – “caótico”, envolveu os produtos, para que o cliente “perceba como é o prato tradicional”, sendo convidado, ele mesmo, a misturar tudo.
Já o segundo prato surgiu na valorização dada em demasia aos vegetais em detrimento aos animais, em particular, à carne. Por essa razão, criou um prato que simbolizasse o dia da matança do porco com elementos vegetais. No terceiro, preparou um arroz malandrino em homenagem à cultura do arroz em Alcácer do Sal cozinhado com bivalves menos convencionais à mesa; e, para o quarto reservou um prato inspirado cozido à portuguesa, em que a terrina feita a partir da cabeça de porco está cortada com a forma do nosso país mostrando, assim, “Portugal num prato”.
Kiko Martins apresentou uma das suas paixões num prato, o ceviche
No fundo, “a cozinha que fazemos traduz-nos a nós próprios”, uma fusão – no bom sentido – entre “a família, as viagens, os momentos com os amigos, as partilhas… Tudo isto faz parte de um puzzle”, ao qual João Rodrigues adciona a importância da liberdade na cozinha, elementos que Kiko Martins, o primeiro interveniente deste congresso, reflete no seu trabalho, graças às viagens que já fez pelo mundo. “Não me considero um inventor”, contudo é, isso sim, um apaixonado pela cozinha peruana, paixão essa que se traduziu no ponto de partida para a criação da Cevicheria, no Príncipe Real, sem esquecer a Ásia, à qual dedicou um ceviche. Já O Talho é o reflexo do que aprendeu sobre o corte da carne no Brasil, outro dos países que cabem no imenso roteiro do chef nativo do “país irmão”.
Nandu Jubani formula a neotradição na cozinha
“O mundo é, garantidamente, uma inspiração”, nas palavras de Kiko Martins, a quem se seguiu Nandu Jubani, da Catalunha, que falou sobre a neotradição, que reúne o gosto pelos produtos da horta, que tem ao lado do seu restaurante, o Can Jubany (1 estrela Michelin) – aberto há 21 anos e localizado em Calldetenes, a uma hora de Barcelona, realidade que encara como positiva já que na cidade “há muita oferta” ao contrário do que acontece onde está –, o qual lhe reserva ir ao encontro da essência dos produtos que trabalha na sua cozinha, espaço onde enquadra a memória, os valores, a tradição, as vivências, as experiências, a partilha, o profissionalismo, entre outros aspetos que iam surgindo no grande ecrã enquanto falava sobre o que fazia.
Andoni Luis Aduriz focou a importância de nos rodearmos de pessoas interessantes, para que o nosso conhecimento incremente
Depois de Nandu Jubani, entrou em cena Andoni Luis Aduriz, que enalteceu o sistemático processo de tentativa-erro, a importância de se chegar “lá” primeiro e a criatividade, no sentido de que “pequenas coisas podem gerar grandes saltos”. Foram estas as atitudes que levaram o chef do mui célebre Mugaritz para os picos da vanguarda na chamada alta cozinha espanhola. Em paralelo, Andoni Luis Aduriz, que não se considera “uma pessoa especialmente talentosa” – como o disse já no final do evento –, focou quão relevantes são as experiências, pois a vivência de cada um de nós se reflete na cozinha, assim como a partilha, razão pela qual faz questão de se rodear “de pessoas interessantes e diferentes” – sociólogos, filósofos, publicitários… –, “com as quais aprende muito, porque se te rodeares de pessoas que nada sabem, o teu conhecimento é ínfimo, mas se optares por estar com pessoas que têm conhecimento, tu só tens a ganhar com isso”, reforçou numa pequena conversa concedida à Mutante. Esta é uma das razões pelas quais para o chef de San Sebastian, nada é impossível na cozinha, uma realidade avaliada pelas imagens dos seus pratos que ia mostrando ao longo da apresentação, os quais denotavam criatividade e trabalho de pesquisa, e inspirados em memórias de infância. Um trabalho que captou a atenção dos presentes e o mote para uma das frases que proferiu: “O importante não é o que fazes. O importante é que inspiras os outros!”
Henrique Sá Pessoa, a preparar um prato que é uma homenagem aos Açores
Já da parte da tarde, e a seguir a João Rodrigues, foi a vez de Henrique Sá Pessoa que foi falar de “boa cozinha” cuja base “é o bom produto”, daí a importância de destacar o papel dos produtores e dos fornecedores. Com o mar como tema, em particular o mar dos Açores – um teaser sobre o “Costa a costa”, o mais recente menu que criou para o seu restaurante – o chef do Alma deu tempo de antena a Pedro Bastos, sócio-gerente de uma marca associada ao comércio e indústria de pescados. “A ideia desta apresentação é falar dos [peixes] menos nobres”, afirmou Henrique Sá Pessoa, por isso Pedro Bastos falou sobre algumas das espécies que são pescadas à linha nos Açores – a pesca de arrastão, em mar profundo, é proibida desde 2005 no referido arquipélago português. Uma pequena lição que valia bem a pena ser aprofundada em uma ocasião mais propícia, em que produtores e fornecedores tivessem oportunidade de falar sobre a origem dos produtos e de como chegam aos restaurantes, bem como a relação que mantém com os chefs.
Albert Adrià focou a essência da criatividade na sua apresentação
Albert Adrià, que já anda pela cozinha há 31 anos e deixou, em 2009, o célebre elBulli – que levou o irmão, Ferran Adriá, ao expoente da gastronomia mundial –, abordou a evolução do ser humano e a abominação face à intolerância na sociedade, mas também sobre a essência da criatividade, para qual é preciso também ter dinheiro “para comprar uma equipa, para comprar um espaço e para comprar tempo”. Na prática, em 2011, o chef catalão abriu as portas do Tickets (1 estrela Michelin), “numa rua muito famosa de Barcelona”, na Avenida del Paralelos, “com o teatro, o cinema”…, daí o nome do restaurante que, à mesa, representa “o diálogo entre a tradição e a modernidade” e, em simultâneo, a evolução do ser humano que, no início, comia com as mãos, ato que, hoje, é tolerável nos espaços em que a comida é feita para partilhar. “Tudo na cozinha que tenha bom ar, seja bonito e cheire bem, é bom… ao contrário dos queijos!” E não se despediu sem antes informar que, em novembro, abrirá as portas do Enigma, o mais enigmático e aguardado restaurante do el Barri – onde 700 metros quadrados estão reservados a 24 lugares –, do qual fazem parte o Hoja Santa (1 estrela Michelin), o Pakta (1 estrela Michelin), o Bodega 1900 e o Niño Viejo.
Quais são, afinal, as chaves da cozinha do futuro em Portugal? •
+ Congresso Gastronómico da Estrella Damm de Lisboa