Embora o sonho traçasse a rota dos mares, manifesta paixão dos tempos em que se entregava ao surf, a realidade conduzi-o para terra. Porque gosta de comer. Porque gosta de cozinhar. Porque gosta da natureza. Assim começa a trajetória imparável pelo universo da gastronomia traduzida nos sabores autênticos desmistificados pela técnica e pelo saber fazer – e muito bem, diga-se – de um tão aclamado chef, num ofício em constante mutação. Falamos de João Rodrigues, chef executivo do Feitoria, do mui lisboeta Altis Belém Hotel & Spa, e cuja a estrela Michelin foi, uma vez mais, renovada, onde atracou há cinco anos e vai, com certeza, dar que falar. Sobre o sonho, agora outro, esse não caiu no esquecimento…
Brioche recheado com maionese de chouriço e copita / Batata recheada com maionese de alho, pele de bacalhau crocante, bacalhau fresco e sumo de salsa / Tubo de massa brick com queijo amanteigado, concassé de tomate e gel de azeitona
Queria ser biólogo marinho, mas os ventos intervieram na rota e alteraram a direção da bússola para terra.
Sempre estive muito ligado ao mar, não por ter nascido numa zona privilegiada de mar – sou lisboeta –, mas já em miúdo fazia surf e gostava muito do mar um pouco por influência do meu pai e, por isso, queria estudar biologia marinha. Comecei a cozinha, porque gosto muito de comer. Hoje começa a notar-se, antes não se notava tanto! Gosto muito de tudo o que esteja relacionado com a mesa, o vinho, a comida, os amigos, a família… Costumava cozinhar, muitas vezes, de uma forma descontraída – a minha irmã cozinha muito bem, o meu pai também. Como o meu pai pesca e caça, sempre tive uma proximidade muito grande com os produtos da terra e do mar, até que chegou uma altura em que conciliei as duas coisas: o gosto pela natureza e o de fazer o que me dava prazer. Mesmo assim, só tive consciência de que a cozinha poderia vir a ser uma profissão no meu terceiro ou quarto dia de curso.
“Optei pela Bica do Sapato, onde (…) estive com o chef Fausto Aroldi, o meu segundo mentor.”
Ao viajar pelo percurso profissional do chef João Rodrigues, somos conduzidos a uma trajetória imparável.
Tirei o curso tarde – tinha 21 anos. Inscrevi-me no último dia. Como já estava habituado a trabalhar, tive sempre a tendência para, durante o curso, continuar a fazê-lo – no primeiro ano estive numa quinta em Sintra, através de uma pessoa que conheci no primeiro estágio do curso, o qual fiz no Sheraton; no segundo ano do curso arranjei um part time para depois das aulas, no Lisboa Plaza, e fiz o estágio no Ritz; no terceiro a mesma coisa até me candidatar à Escola Superior de Hotelaria e Turismo do Estoril, onde entrei. Entretanto, quando terminei o curso, fui trabalhar para a Bica do Sapato e, ao mesmo tempo, tentei fazer o curso no Estoril – uma licenciatura em Produção Alimentar. Ao fim do primeiro ano tive de escolher entre ou continuar a estudar, ou seguir cozinha. Optei pela Bica do Sapato, onde permaneci por três anos e onde estive com o chef Fausto Aroldi, o meu segundo mentor – o primeiro acaba sempre por ser o nosso professor na escola, que foi o chef António Lourenço, uma pessoa com muita visão e me dizia para viajar, emprestava-me revistas e livros para eu ler. Ao fim desses três anos fui para o restaurante Varanda, do Ritz. Foi então que acabei por conhecer o mundo da hotelaria, completamente diferente da Bica do Sapato – muito trendy, com um ambiente descontraído, muito ligado à moda e à discoteca Lux. A cozinha do Hotel Ritz era outro mundo – com chefs franceses, uma brigada enorme, mais austera, tínhamos de estar muito concentrados no nosso trabalho… No entanto, foi onde aprendi grande parte da técnica, especialmente com o chef Sebastien Grospellier. Gostei muito de trabalhar no Ritz.
Sai do Ritz rumo ao Casino Lisboa, recebe a distinção de Chef Cozinheiro do Ano de 2007 e acaba no Feitoria.
Saio para o Casino Lisboa para fazer a abertura dos três espaços com o chef Fausto, acabando por ficar mais no Pragma; segue-se a abertura do Feitoria. Aconteceu depois do concurso Chef Cozinheiro do Ano de 2007, no qual participei e ganhei, e onde um dos júris da regional, que também esteve na final, era o chef Cordeiro. Assim que acabei o concurso, perguntou-me se estava interessado em abrir um projeto que, em 2008, veio a revelar-se que se tratava do Altis Belém. Foi nesse ano que integrei na equipa do Feitoria como sub-chef.
Massa de won ton recheado com requeijão e compota de abóbora
“O que queremos é preservar esses sabores e o produto, acima de tudo, e tentar criar uma nova cozinha portuguesa.”
A essência do Feitoria é a gastronomia tradicional portuguesa reinventada, conceito transposto pela genuinidade do sabor e do produto.
Quando vim para o hotel, que ia celebrar os Descobrimentos Portugueses, ficou estipulado o conceito “os portugueses no mundo”. O Feitoria iria ser o ponto alto dessa celebração – um restaurante de raiz portuguesa com influências dos sítios por onde os portugueses tenham passado nessa época. Desde então emprestámos – eu, no Feitoria, e o outro sub-chef, no Mensagem – o cunho do chef Cordeiro, o chef executivo da cadeia [Altis], que estava muito ligado às origens e ao sabor tradicional. Há cerca de um ano decidimos mudar o funcionamento do restaurante, assim como a estrutura da cozinha, cujo espaço foi aumentado; tentámos aprimorar as confeções e o próprio serviço. No fundo, libertámo-nos de algumas amarras e demos uma nova roupagem, o que tem corrido muito bem. O mesmo fizemos com o conceito – queremos preservar a quota de 90 por cento de produto português, embora tenhamos de ter oferta internacional, com o foie gras, o caviar, as trufas… Não quer dizer que estejamos a recriar pratos tradicionais embora, às vezes, também o façamos; o que queremos é preservar o sabor e o produto, acima de tudo, e tentar criar uma nova cozinha portuguesa.
Já lá vão cinco anos, ao longo dos quais, a aprendizagem reflete a permanente vontade de inovar.
Começou tudo do zero. A cozinha foi pensada num certo pressuposto que, ao fim de um ano ou dois, teve de ser mudado. Tudo está em constante mudança – as tendências, o que os clientes querem, a dinâmica do hotel, as linhas que guiam a gastronomia… Em relação ao hotel foi, sem dúvida, uma aprendizagem enorme, porque não tinha experiência em estar à frente de um restaurante e ter uma brigada de 30 pessoas, além da copa e da pastelaria, apesar de partilhar esta responsabilidade com outro sub-chef e de estar sob supervisão do chef Cordeiro; temos de escolher fornecedores, procurar outros que garantam produtos com mais qualidade; temos de estar cientes de que só vamos ter aqueles produtos naquela estação… Ao fim destes cinco anos, dá-nos um gozo enorme quando olhamos para a carta e vemos que há uma grande diferença em relação à primeira, resultado da evolução de todos – da minha, da equipa, do chef de sala, do cliente, de todos os que estão envolvidos no Feitoria.
Lombo de veado com endívias gratinadas, beterraba e framboesa
“Há, aqui, também um trabalho de equipa.”
Criar um prato incita à imaginação e, acima de tudo, a uma composição consensual de cores e sabores sazonais. Como se processa este exercício?
Temos de ler, temos de viajar. Não digo que tenhamos de ir a restaurantes com estrelas Michelin, mas sim de comer na rua, ver os mercados, analisar as cores, os produtos. Comer comida “de rua” é, por vezes, extremamente surpreendente. Quanto à criatividade, ando sempre com um caderno e vou apontando as ideias mais loucas que tenho, mesmo que não façam sentido; desenho e depois tento achar possibilidades para os pratos que façam sentido. Há, aqui, também um trabalho de equipa. São debatidas as ideias de pessoas que trabalham comigo e tentamos encaixá-las a pensar num resultado que faça sentido e não apenas porque fica bem ou porque outro usou; é preciso pensar na louça, fazer com que o cliente seja muito bem servido e acompanhado na sala… Antes de trocarmos a carta, todas os empregados de mesa e os da cozinha provam os pratos e dão a opinião, que é válida; fazemos correções antes de formalizarmos a carta… Há muitos detalhes em jogo.
A combinação entre os néctares de Baco e um bom prato é uma tendência. Os pratos são feitos para o vinho ou este é eleito em função do prato?
Quando faço a carta falo com o nosso escanção, o André Figuinha, que parte logo para a descoberta, no sentido de casar os sabores com o vinho. Por exemplo, temos uma prato que se traduz numa homenagem à Arrábida e queríamos fazer com os melhores produtos daquela zona, portanto, temos o salmonete, as ostras do Sado, as camarinhas, a salicórnia… Depois casámo-lo com um vinho daquela região e que se encaixasse naquele prato. Mas pode acontecer o contrário, ou seja, o André Figuinha sugerir um vinho, do qual tira notas, que me são transmitidas e eu faço o prato.
No Feitoria, a cozinha é de mar e de terra. Tem preferência por qual?
Peixe e marisco. Gosto mais de fazer e de comer pratos de peixe. São mais sensíveis, mais subtis e é preciso ter muito cuidado quando se faz a conjugação com o peixe, para depois a guarnição não se sobrepor ao sabor do peixe, para que este brilhe. Todos têm sabores distintos e não os podemos cozinhar demais nem os manipular demais, temos de ter cuidado com o molho que fazemos para o acompanhar.
“Prefiro estar ligado às nossas raízes, para não perder a ideia do que é nosso”
Lisboa é, desde sempre, a cidade eleita para o roteiro gastronómico do chef, que lidera a equipa de um restaurante com uma estrela Michelin, sem nunca ter deixado a sua matriz de malas e bagagens.
Seria impossível fazer o que faço hoje sem uma aprendizagem em contínuo dos vários sítios que trabalhei. Os últimos cinco anos têm sido muito vantajosos, porque acabamos por ter experiências com outros chefs. Vamos ao Vila Joya onde partilhamos ideias; vamos à Fortaleza do Guincho… Temos de aproveitar esses momentos para ver como podemos melhorar e eu sou o primeiro a querer aprender com quem sabe muito e que há muito está neste patamar. Faço os meus estágios, vou lá fora… Sinto mais vontade de viajar, ver e provar, do que ficar seis meses ou um ano fora. Prefiro estar ligado às nossas raízes, para não perder a ideia do que é nosso, embora transporte a técnica e o melhor que os de fora têm.
Em tempos revelou o sonho de ter um restaurante onde usaria os produtos da própria quinta. O sonho mantém-se?
Mantém-se, mas é difícil. Em Portugal há poucas oportunidades, há poucas pessoas a fazer investimento em sítios deste género; e é preciso investir na nova geração. A cozinha seria invariavelmente deste género, com produtos frescos, logo pela manhã, e que as pessoas se sujeitassem ao menu que eu fizesse, o que nem sempre é aceite.
Com vista para o mar.
Com vista para o mar, preferencialmente. Já são muitas coisas difíceis de conseguir. Não um restaurante de praia, mas com vista de mar seguramente. •