“Digo sempre à minha equipa que há três formas de crescermos na cozinha e uma delas é o aprender fazendo” / Chef David Jesus

Viajar, explorar, partilhar são os três ingredientes-chave do jovem chef lisboeta que, desde Janeiro de 2016, convida a um roteiro de sabores rumo ao Oriente, tendo a cozinha portuguesa como ponto de partida, no Bastardo, no Internacional Design Hotel, em Lisboa.

Foi há 11 anos que David Jesus, de 27 anos, deu os primeiros passos como cozinheiro. Desde então, calcorreou meio mundo entre tachos e panelas, e conheceu os produtos na sua origem, desde o Brasil e a Argentina, da Dinamarca à Suécia e à Alemanha, entre outros países do Norte da Europa, até à Polinésia, desta feita com 23 anos, passando por Londres, onde apreendeu saber com o chef Nuno Mendes. Por sua vez, o Eleven, em Lisboa, o Penha Longa Resort, em Sintra, a Herdade da Malhadinha Nova, em Albernoa, Beja, e o Celeiro, do Sublime Comporta, em Grândola, são os nomes dos restaurantes que constam no seu percurso pela cozinha dentro de portas. Vamos conhecê-lo.

David Jesus tem 27 anos, é chef no Bastardo e já calcorreou meio mundo

O que procura um chef português além fronteiras?
Acho que em cada país aprendi a cozinhar com os melhores produtos – se calhar, no Brasil, com a melhor fruta, se calhar, na Argentina, com a melhor carne. Depois com os produtos lácteos na Alemanha, na Dinamarca e na Suécia, onde os iogurtes e o leite são muito bons.

Qual foi o lugar que mais o surpreendeu?
A Polinésia. Estive lá durante três meses, pegava no coco para fazer água de coco, iogurte de coco, apanhava um abacate da árvore e o abacate parecia manteiga, o maracujá é fantástico, assim como o atum…

“Tudo isto é enriquecedor porque, quando voltamos, podemos trabalhar com uma base portuguesa e, ao mesmo tempo, com elementos fora da base da nossa cozinha, mas que podem acrescentar valor aos pratos.”

Foram experiências enriquecedoras.
Tudo isto é enriquecedor porque, quando voltamos, podemos trabalhar com uma base portuguesa e, ao mesmo tempo, com elementos fora da base da nossa cozinha, mas que podem acrescentar valor aos pratos. Acho que só não retive nada na Antártica, porque não há produtos, mas chego à conclusão que estas experiências têm um resultado muito bom no que toca à parte monetária, mas quanto ao produto, Portugal continua a ganhar – não há vinho como o nosso e há muito produto que não chega a ter a mesma qualidade do que temos.

Apesar de sair muito do país, volta sempre.
Acabo sempre por voltar, porque prefiro não olhar tanto para a parte monetária e continuar a ter um muito bom produto e, felizmente, há muitos chefs que pensam da mesma maneira. Apesar disso, é muito bom trabalhar fora, como eu, que trabalhei com chefs alemães que, em questão de organização de empresas é óptimo e, hoje em dia, ponho isso em prática, mas sem a parte autoritária.

Que produtos podem substituir outros em pratos de cozinhas fora de portas?
Por exemplo, usamos o polvo no ceviche, para mantermos a ligação com Portugal; a minha mãe é de Coimbra, por isso sempre me fez lembrar a questão do milho que, apesar de ser da América do Sul, é muito usado em Coimbra; e aqui, os pratos, embora tenham uma vertente internacional, a base é portuguesa.

No entanto, a vertente asiática é bastante expressiva nesta nova carta.
Sobre a cozinha asiática, vamos buscar a parte yummi, dá-nos sabores de infância – lembro-me de ter ido a um restaurante chinês com dez, 12 anos e acho que, hoje em dia, as crianças vão cada vez mais cedo aos restaurantes e, se calhar, gostam primeiro mais do sushi do que do cozido. Foi assim que fizemos a nossa carta, misturando os produtos asiáticos com os portugueses, o que faz todo o sentido.

Onde aprofundou esse gosto pela cozinha asiática?
Trabalhei muito a vertente asiática quando estive em Londres num estágio que fiz com o Nuno Mendes, no ano passado e, na altura, ele também se envolveu um pouco no projecto do Sublime [Comporta] e explicou-nos o porquê de ele próprio praticar bastante essa vertente asiática – porque permite melhorar a digestão. Por exemplo, uso os pickles em quase todos os pratos, porque tiram a parte enjoativa e a parte de gordura e é isso que diferencia a cozinha francesa da cozinha asiática ou de fusão. A cozinha francesa tem produtos muito nobres e bem cozinhados, respeita os pontos de cozedura nos legumes, no peixe e na carne, mas é uma cozinha que já nem todas as pessoas apreciam, porque é mais pesada e é quase chata.

“(…) também temos muito Alentejo, que fui descobrindo e trouxe para o Bastardo.”

Mas há uma base francesa.
O que temos no Bastardo, hoje, é uma base francesa nos molhos de carne e de peixe, mas também temos muito Alentejo, que fui descobrindo e trouxe para o Bastardo. Temos sempre um peixe fresco na carta, o arroz de amêijoa, o piso de coentros e outro de salsa, embora tenhamos também o linguini nero, que trouxe do Sublime [Comporta], mas o objectivo é ter uma base portuguesa e fazer com que a base francesa não seja visível.

Neste momento, que culturas o inspiram mais?
Do países que gostei mais, e apesar de o visitar por menos tempo e de não estar muito presente na carta, foi Marrocos, do qual continuo a trabalhar a massala, o caril… mais a puxar para Marrocos do que para Ásia. Em Marrocos há os cheiros, há muito comércio de rua, ao contrário de cá, no entanto não sabemos quem é o produtor, o que nos leva a ter alguns cuidados porque, na verdade, há cada vez mais pessoas preocupadas com a saúde.

A questão da saúde é, portanto, levada a sério no Bastardo.
Sim e não é uma moda. É uma forma de estar, de saber comer e nós queremos educar os clientes. Acho que temos de nos preocupar quem estamos a servir e outro dos nosso objectivos é que voltem ao Bastardo. Eu, por exemplo, uso cada vez menos sal na comida e utilizo mais o piso, os pickles e as técnicas que vão buscar mais sabores, para que possa utilizar menos sal. Para quem gosta da comida com mais sal, não há problema, mandamos vir flor de sal para a mesa, porque o sal, os molhos amargos e os molhos muito caramelizados já não fazem muito sentido.

“Eu tiro mais partido das vivências, porque prefiro viajar e conhecer outros projectos – com o dinheiro que é preciso para comprar um livro vou jantar a três sítios diferentes e, no final, falo com o chef.”

Já falámos de viagens e de técnicas. Qual é o papel dos livros neste ofício?
Digo sempre à minha equipa que há três formas de crescermos na cozinha e uma delas é o aprender fazendo, ou seja, aprendemos quando pomos a mão na massa; o aprender com outros, com os livros e a Internet; e as vivências. Eu tiro mais partido das vivências, porque prefiro viajar e conhecer outros projectos – com o dinheiro que é preciso para comprar um livro vou jantar a três sítios diferentes e, no final, falo com o chef. A verdade é que, quando comecei na cozinha, ninguém partilhava nada. No Eleven já havia mais abertura, porque havia cozinheiros que viajavam muito e partilhavam saber. Na viagem de navio que fiz o espírito era ainda mais aberto e, quando voltei, já vinha com a ideia de que iria partilhar mais com a equipa com a qual viesse a trabalhar. Hoje em dia, os cozinheiros que conheço são muito mais abertos.

Fale-nos sobre a história do cruzeiro que fez pela Antártica.
Era um navio quebra-gelo, com dois andares, onde preparávamos o pequeno-almoço e as outras refeições. Sempre que havia um iceberg, saíamos, para fazer caminhadas, mergulhávamos, fazíamos workshops com os clientes na cozinha… tínhamos uma grande abertura de poder estar com eles, mas com limites. Era um navio de exploração científica.

Depois trocou o mar por terra. Para onde foi de seguida?
Fui parar à equipa de banquetes do Penha Longa. Foi bom, porque era o mais novo de uma equipa de quatro elementos – apesar de termos muitos estagiários –, mas quando os outros elementos da equipa estavam de folga, era eu quem geria as folgas – no navio tinha aprendido a gerir uma cozinha, no Eleven já geria a minha bancada. Portanto, sem saber, dei quase um salto para sub-chef júnior, assumi muita responsabilidade e foi bom, porque tínhamos material de grande qualidade, grandes equipas e trabalhar no Penha Longa é espectacular! Mas, no final de mais de um ano queria ir mais longe. Como tinha tido uma colega da Polinésia no navio, perguntei-lhe ‘o que é preciso fazer para ir ter contigo? Apetece-me sair da Europa’. Meti-me no avião e fui.

Em que ilhas da Polinésia esteve?
Fui para o Taiti, mas é uma ilha muito industrializada. Depois apanhei uma avioneta para Raiatea, a cinco quilómetros de Bora Bora, e voltei para Moorea, para a casa dos pais da minha colega. O pai dela é responsável pela revista Tahiti Magazine e estava a restaurar os Jeep Willys, da II Guerra Mundial, e o meu trabalho era tirar o musgo dos jipes. A limpeza demorada dois ou três dias a fazer, entretanto, o pai tratava da mecânica do carro e, no fim, eu pintava. Assim se passavam as manhãs. À tarde dava voltas de jipe pela ilha com ele. Estive um mês com ele.

“Cada um trazia o que podia e fazíamos um banquete, o que envolveu muito a parte criativa (…)”

Quanto à cozinha, era fácil encontrar os produtos que queria para dar azo à imaginação?
Não é fácil gastar dinheiro lá, porque bastava apanhar os produtos que precisávamos para comer. Fazíamos canoagem e surf. Foi uma viagem com uma grande dinâmica saudável, física e criativa. Estava, na altura, a tomar conta da casa de um casal da Califórnia, onde tínhamos de apanhar tudo que caísse das árvores, desde maracujás a abacate, coco… e tínhamos de cortar a relva. Era bastante divertido! Eu era o mais novo e vivia com uma espanhola, a rapariga da Polinésia e uma norte-americana que tinha estado no circuito mundial de surf. Foi interessante ver como quatro pessoas conseguiram sustentar-se durante três meses. Chamávamos amigos para irem jantar lá. Cada um trazia o que podia e fazíamos um banquete, o que envolveu muito a parte criativa – a norte-americana gostava muito de cozinha mexicana, eu dava uns toques de português, a espanhola dava qualquer coisa e a da Polinésia era muito raw food. Foi uma boa forma de partilhar conhecimento.

Foi, então, que recebeu uma chamada da Herdade da Malhadinha Nova.
Na altura a Rita Soares estava à procura de um sub-chef para a Malhadinha e a quem tivesse pedido tinha sugerido o meu nome, portanto precisava de mim daí a uma semana. Tive de voltar para Portugal. Pedi ao meu pai para ver a viagem, porque tinha comprado bilhete só de ida. O meu objectivo era ser woofer na Nova Zelândia ou ir para a Austrália, por isso, tinha tudo comigo – as facas, as fardas, roupa de Verão e roupa de Inverno. Estava preparado para onde quer que fosse. Mas já tinha feito extras na Malhadinha e tinha gostado muito. Passado uma semana, tive de voltar.

“Tinha menos de dez quilos! Não comia carne, todos os produtos eram biológicos e não tinha vestido umas calças enquanto estive na Polinésia! Foram os melhores três meses de sempre.”

Voltou, mas para o Alentejo.
Do Taiti para o Alentejo com dois dias na casa partida! Quando voltei fiz a barba e cortei o cabelo. Tinha menos de dez quilos! Não comia carne, todos os produtos eram biológicos e não tinha vestido umas calças enquanto estive na Polinésia! Foram os melhores três meses de sempre. Na Malhadinha era muito engraçado ver a transformação da vinha ao longo das quatro estações e é muito importante para um cozinheiro ter esse contacto com a vinha. Lá também aprendi que a carta do restaurante é muito trabalhada de acordo com a estação, mais do que em Lisboa – há as nêsperas, depois há o cozido de grão, o ensopado de borrego, a canja de perdiz… Foi muito bom, porque conseguimos fazer evoluir a carta e aprendi bastante com os patrões, a Vitalina, que faz um arroz de cabidela que, até hoje, não comi um igual!

Como surgiu a oportunidade de ir para o Sublime Comporta?
Fiz um ano na Malhadinha quando surgiu a oportunidade de fazer os menus de degustação para o Sublime, que estava a começar. Eles adoraram e abrimos o restaurante. Acabei por sair um bocado da sombra, além disso foi um desafio maior, com a procura de fornecedores de peixe, de carne, de legumes. Se o produto faltasse tínhamos de nos desenvencilhar. Entretanto, senti vontade de voltar a casa. Fiz algumas pesquisa e vi que o Bastardo era o que melhor se enquadrava no que eu queria. Fiz dois dias de trabalho ainda com o chef Luís [Rodrigues] aqui. E dois dias bastaram para conhecer o projecto, sobretudo pelo estilo informal. Entretanto, tinha enviado três ou quatro currículos – foi a primeira vez que enviei currículos, pois era sempre aconselhado quando ia para algum lado – e precisava de passar receitas, de relaxar um bocado. Quando o chef saiu, a directora telefonou-me, dizendo-me que o meu nome tinha sido recomendado pela [chef] Ana Moura.

De todas as vivências que teve, quais foram as que trouxe para o Bastardo?
Trago algo mais de informal, algo mais de partilha. Acho que – e foi algo que aprendi com o chef Nuno Mendes – já não podemos ser tão sérios e o Alexandre [Martins, Director do Internacional Design Hotel] não quer que este seja um restaurante de hotel, onde temos de estar todos certinhos. Com esta equipa todos nós criamos para os combates gastronómicos e destes sai um prato para a carta. Todos os cozinheiros podem convidar os pais, as namoradas, os amigos para virem provar os pratos, o que é muito interessante, porque nunca tinha visto uma ideia destas.

Quem criou o desafio?
Foi o Alexandre [Martins], que me disse para fazer o ramen e eu aceitei um, mas de base vegetal, a pensar na parte saudável da carta. Tinha de ter um bacalhau na carta, daí o do Alentejo, o peixe fresco, por exemplo, com arroz de amêijoa, como tenho agora, o bao, porque já estava a aparecer. Depois tínhamos de manter os clássicos, como o bife, o risotto, ou seja, mantivemos os best-sellers da carta antiga, porque é um projecto com três anos e o chef Luís [Rodrigues] merece esse respeito. O objectivo é tornar a carta mais jovem, mais leve.

“É uma mistura de Malhadinha com Sublime e eu mesmo.”

A cozinha portuguesa é a base desta carta.
É a cozinha portuguesa a caminho do Oriente, como o Alexandre [Martins] diz e, sim, com os produtos portugueses em alta. É uma mistura de Malhadinha com Sublime e eu mesmo.

Há mais boas novas?
Não queria mexer muito na carta, porque a equipa foi criada em Dezembro, Janeiro, pelo que convém ter uma base sólida. Agora estamos a trabalhar o Special, ou seja, trabalhar um prato de estação, – por exemplo, na altura da fava vamos ter um prato especial com favas, na altura do tomate, teremos um gaspacho inspirado no gaspacho do chef Joachim [Koerper], e continuamos com as tachadas do dia, mas também queremos criar mais pratos para a mulher e para as crianças… Experiências diferentes. •

[Actualização: O chef David Jesus deixou a cozinha do Bastardo estando, neste momento, a abraçar outro projecto.]

+ Restaurante Bastardo
© Fotografia: João Pedro Rato

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