Reunir chefs. Mostrar o produto açoriano, o genuíno, da terra e do mar. Mostrar São Miguel e o seu potencial. Juntar tudo e deixar marinar para, no jantar especial, exibir os sabores da ilha no prato.
As linhas rectas e a decoração semelhante à de uma casa caracterizam o À Terra, o restaurante do Azor Hotel, na cidade de Ponta Delgada
“Das origens para o À Terra”. Eis o nome do evento criado por Cláudio Pontes, açoriano de gema, de 38 anos e chef do À Terra, o restaurante do Azor Hotel onde, por fim, tudo se revela à mesa, na cidade de Ponta Delgada, Ilha de São Miguel, Açores. Feitos os convites e traçado o roteiro para a 2.ª edição, Cláudio Pontes contou com os chefs Luís Miguel Barradas, agora à frente da cozinha da Marisqueira Zagaia, em Setúbal, e Rodrigo Castelo, da Taberna Ó Balcão, em Santarém, para um jantar memorável a 10 de Março, no À Terra. Objectivo: exibir o potencial da terra açoriana e o que as águas frias do Atlântico permitem pescar em cada dia da semana.
A amêijoa da fajã de Santo Cristo, a batata nova em tinta de choco, a planta do gelo e puré à Bulhão Pato compõem este “Mar enlatado”
Depois do roteiro pela ilha e das missivas gastronómicas de uma cozinha onde impera a dicotomia terra e mar, eis que chega a hora de estar à mesa para o jantar do evento neste hotel, onde a hospitalidade é um valor levado a sério.
O que houver – leia-se couvert. Assim começou o jantar “Das origens para o À Terra”, na noite de 10 de Março, no restaurante do Azor Hotel, com a manteiga artesanal de Valformoso, na Ilha das Flores, o nosso pão e a criação de cada chef: flat bread de inhame e chouriço para comer com queijo do Faial, de Cláudio Pontes; a raia com carolo frita e rabaças (nome atribuído a espécies vegetais), de Luís Miguel Barradas, e a alcatra nua espécie de muffin oco feito com massa sovada, de Rodrigo Castelo.
“Barriga de espadarte”, açafroa, ponzu galego e cenoura “Biokairós”
Luís Miguel Barradas foi o chef escolhido para abrir as hostes à mesa. Para primeiro prato do desfile que se fazia adivinhar, o chef da Marisqueira Zagaia confeccionou barriga de espadarte, temperou-a com açafroa, adicionou-lhe ponzu galego – molho de soja com limão galego – e cenoura “Biokairós”. O prato que conquistou, sem delongas nem artimanhas, o palato dos presentes à mesa, que manifestaram a vontade de repetir este prato inspirado no sudeste asiático cuja cozinha é o prato forte deste chef setubalense e, por isso, com um gosto muito especial em relação aos sabores marinhos.
“Sargo em seu leite”, ou seja, num caldo de coentros e azeite, com chalota gratinada
Rodrigo Castelo apresentou, por sua vez, um prato equilibrado e guloso no sabor: sargo em caldo de sargo com coentros, azeite e chalota gratinada.
Já o chef do À Terra mostrou o mar dos Açores à mesa, entrada composta por amêijoa da lagoa da Caldeira de Santo Cristo – uma das fajãs da Ilha de São Miguel –, cherne, batata nova em tinta de choco – para imitar as pedras de origem vulcânica do arquipélago –, planta do gelo e um sublime puré à Bulhão Pato que, no conjunto, encheu as medidas das papilas gustativas.
“Polvo 3D”: polvo, gyosa com salada de polvo e caldo com ovas
Nos pratos, Luís Miguel Barradas representou o polvo numa tríade muito interessante: o polvo, uma gyosa recheada com salada de polvo e caldo com ovas, um creme de alho assado e daikon (rabanete japonês).
Rodrigo Castelo levou o Ribatejo até aos Açores com este trio composto por língua de vaca, rabo de boi e tagliatelli de lula
“A massa dos Açores” de Rodrigo Castelo dividiu as opiniões. Em causa esteve a língua de vaca que, no entanto, deu a consistência indispensável ao prato, recheando-a com rabo de boi – produto do Ribatejo, terra que viu nasceu este chef que trabalha a carne de boi como poucos – e cogumelos, e decorando-a com crocante de porco e uma tagliatelli de lula. Divinal!
A bochecha de porco da equipa do À Terra
Das mãos da equipa do À Terra saiu a bochecha de vitela de cheiro com puré de batata, cogumelos e espinafres e sementes de mostarda. O prato de eleição para este Inverno.
A “falsa amêndoa amarga”, uma criação do chef pasteleiro João Araújo
A genial “falsa amêndoa amarga”, do chef pasteleiro João Araújo, a rechear um limão galego sem polpa foi outra das boas surpresas da noite. Sobre o recheio fica o segredo… Seguiu-se a “Camarosa da Rosa a quebrar”, da “equipa doce”, para fechar a noite.
Malhadinha branco 2016 foi um das castas Arinto, Viognier e Chardonnay
A harmonização vínica ficou nas mãos do produtor alentejano Herdade da Malhadinha Nova, em Albernôa, Beja. Do desfile vínico fizeram parte Monte da Peceguina rosé 2016, Monte da Peceguina branco 2016, Monte da Peceguina Antão Vaz 2016, Monte da Peceguina Verdelho 2015, Malhadinha branco 2016, Monte da Peceguina tinto 2016, Malhadinha tinto 2014 e Malhadinha Colheita Tardia 2012.
A sazonalidade quer-se tratada com respeito
“Aqui é fácil trabalhar com os produtores. Por exemplo, a Biokairós que tinha, no início, apenas umas alfaces, umas couves e batatas, consultaram a Escola de Formação Turística e Hoteleira quando eu ainda lá estava a trabalhar. Fiquei responsável pelo projecto e começámos a ver, por estação, o que se podia cultivar. Hoje não tenho uma lista de encomendas. O que têm, trazem.”
Mas vamos por partes, até porque toda este festa gastronómico merece uma explicação por parte de Cláudio Pontes: “Ao ver os meus colegas a trabalhar com produtos açorianos no continente, pensei que o melhor seria convidá-los, para virem fazê-lo aqui, nos Açores. Por isso, decidi criar este evento para que viessem cá em diferentes alturas do ano para virem trabalhar o produto da época, ou seja, quando ele existe mesmo e perceberem também as dificuldades que há quando se vive e trabalha numa ilha. Convém lembrar que aqui há o produtor, o mar e nós.” A importância atribuída à frescura dos produtos é um dos pontos fulcrais da sua cozinha. Por essa razão, o chef do À Terra não vê com bons olhos os stocks de congelados, a massificação dos produtos. “Se isso deixasse de acontecer, o mar iria renovar-se, a terra iria renovar-se.”
“Quando comecei a trabalhar a sério em cozinha – em 1999, 2000 –, o chef do Meridian, em Lisboa, fazia encomendas a Itália e a empresas estrangeiras, porque não havia nada em Portugal. De um momento para o outro apareceu um senhor chamado Aimé Barroyer, que começou a trabalhar com os pequenos produtores que passaram a produzir coisas para o Pestana [Palace]. Foi muito educativo! Quando entrei no Pestana [Palace], não sabia o que era uma ovelha churra, não sabia o que era uma chícharo, não sabia o que era xerém.”
É com base em todo este ensinamento e experiência de uma carreira com quase duas décadas, que Cláudio Pontes quer também partilhar este respeito pela sazonalidade e dar a devida importância à relação estabelecida com o produtor. Só assim é possível regressar às origens, ou seja, tornarmos a cozinhar apenas os produtos da estação e comer apenas o que mar nos dá.
“Aqui é fácil trabalhar com os produtores. Por exemplo, a Biokairós que tinha, no início, apenas umas alfaces, umas couves e batatas, consultaram a Escola de Formação Turística e Hoteleira quando eu ainda lá estava a trabalhar. Fiquei responsável pelo projecto e começámos a ver, por estação, o que se podia cultivar. Hoje não tenho uma lista de encomendas. O que têm, trazem.” O passo seguinte é “cozinhar com o que há”.
Em defesa dos produtos biológicos
Os chefs convidados e os do À Terra num dos talhões de terra da Biokairós
Ainda era de manhã quando estávamos a entrar na Quinta do Priôlo. Para além de acolher o campo de ensaio de Terrantez do Pico, uma parte desta propriedade foi cedida pelo Ministério da Agricultura à Kairós, a Cooperativa de Incubação de Iniciativas de Economia Solidária que impulsiona a criação de microempresas. A finalidade passa por dar autonomia a pessoas abrangidas por este projecto de integração social.
É aqui que Sofia Medeiros e Raquel Vargas protagonizam uma incessante descoberta sobre o que a terra da Ilha de São Miguel pode dar
É deste enredo social que nasce, em Abril de 2016, a microempresa de agricultura biológica, a Biokairós cuja consultoria é feita por Avelino Ormonde, impulsionador da agricultura sustentável na Ilha Terceira, com a Biofontinhas. A comprovar esta realidade é de registar que, por exemplo, a sálvia (ou salva) e a erva príncipe são utilizadas para infusões que, depois, são usadas para pulverizar os produtos. “É tudo biológico”, sublinha Sofia Medeiros que, juntamente com Raquel Vargas estão responsáveis por cerca de meio hectare de terra que está a cargo da Biokairós.
Nas duas estufas e no talhão de terra que têm nas mãos, ambas cultivam novos produtos hortícolas, bem como outros considerados autóctones dos Açores. Na lista constam diferentes tipos de beterrabas, de cenouras, de couves, de fruta, de flores comestíveis…
O trabalho baseia-se no método “tentativa e erro. Os primeiros produtos que escolhemos foram os mais fáceis”, revela Sofia Medeiros. “Agora já começamos a arriscar um pouco mais” também por incentivo de Cláudio Pontes: “Está sempre a desafiar-nos a cultivar produtos novos.” Portanto, para breve, estão em vista os diferentes tipos de tomate, entre outros hortícolas, para tornar este ofício ainda mais interessante. O destino destes produtos são, nomeadamente, restaurantes e hotéis da Ilha de São Miguel, têm a Escola de Formação Turística e Hoteleira, de Ponta Delgada, como parceiros.
Entre o mar, a terra…
Rodrigo Castelo, Cláudio Pontes e Luís Miguel Barradas são os chefs que mostraram quanto valem “Das origens ao à Terra”
O Mercado da Graça, datado de 1948 e localizado na zona histórica de Ponta Delgada, é ponto de encontro obrigatório de quem partilha o gosto pela terra e pelo mar. Entre uma imensidão de produtos da terra autóctones e outros que por lá ficaram graças às viagens constantes durante e após os Descobrimentos Portugueses, há uma lista considerável de couves, com destaque para a galega e a americana ou couve kale frisada, há o inhame e os minhotes (inhames mais pequenos), há frutos e tubérculos.
As mãos abrem-se ao mundo com a quantidade de fruta exótica que nasce na Ilha de São Miguel. Aqui o ananás é rei, mas também há quem muito aprecie a banana dos Açores ou a anona.
A peixaria do Mercado da Graça é um dos spots obrigatórios do roteiro pela Ilha de São Miguel
Paredes meias – ou sem elas – com o espaço reservado à fruta e aos legumes está a peixaria. Aqui a variedade e a quantidade estão à mercê do que as águas do Atlântico permitem que seja pescado. Devido às chuvas fortes e ao mar revolto dos últimos dias, a dificuldade dos pescadores tem vindo a crescer. Mesmo assim, a pescaria tem valido pela diversidade – moreia, garoupa da pedra, juliana, cântaro, peixe-cão, sargo, os moluscos…
A moreia é um dos peixes típicos dos restaurantes açorianos
Sobre o peixe e os mariscos, Cláudio Pontes reafirma a posição de confiança. Há dias em que vai para a lota bem cedo ou telefona para o seu contacto da lota, que lhe compra o peixe.
… e a carne maturada
Os cortes da carne de vaca são fundamentais na cozinha do chef do restaurante do Azor Hotel
Ainda no Mercado da Graça, é de salientar que os talhos estão devidamente separados do espaço ocupado pelos agricultores. São dois corredores curtos e envidraçados, onde os enchidos e as carne de vaca dos Açores preenchem as montras. Na primeira da fila está o fornecedor do À Terra e a quem Cláudio Pontes desafiou a fazer cortes novos de carne. A proposta veio na sequência do chef açoriano querer fazer experiências com carne maturada: “Achámos que o restaurante [do Azor Hotel] deveria ser uma steakhouse, por ser mais fácil de trabalhar e partilhar a carne.” Actualizada a lista de cortes de carne, graças à persistência de Cláudio Pontes, “agora tenho todos os cortes da vaca e todas elas são açorianas.”
Apesar de serem velhas, não são gordas ou não tivessem este mamíferos de calcorrear declives, ora suaves, ora mais acentuados para, calmamente, poderem pastar. “O meu objectivo agora é trabalhar com a Ramo Grande”, a raça bovina autóctone da Ilha Terceira e que já está a ser criada na Ilha de São Miguel, revela o chef. A charolesa e a Black Angus são outras duas raças com as quais o nosso entrevistado tem encomendado da Ilha de Santa Maria para as trabalhar no À Terra. “Cá, em São Miguel, também já há Black Angus.”
Todas as carnes que passam pelas mãos de Cláudio Pontes são alvo de experiências no que à maturação diz respeito. O resultado está à vista de todos os que vão ao restaurante e se deparam com o frigorífico próprio para o efeito, onde são exibidas as peças de carne. Logo, é natural que ouça falar na aguardente Velhíssima Mulher de Capote, produzida na Ribeira Grande, ou no whisky Jack Daniels quando estiver a comer uma determinada peça de carne à mesa do restaurante do Azor Hotel. “Estamos no bom caminho.”
O emblemático Rei dos Queijos
É de notar que os Açores são responsáveis por mais de 50 por cento dos queijos produzidos em Portugal
Ir ao Mercado da Graça e não entrar no Rei dos Queijos é como ir a Roma e não ver o Papa. Carlos Alberto Bernardo, de 63 anos, é figura de destaque e os olhos desta loja. O negócio não aconteceu por acaso.
Já trabalhava com um senhor que vendia queijo, mas quis o tempo que “deixasse de o fazer por conta doutrém e passar a fazê-lo por conta própria.” Só aqui há 180 queijos da Ilha de São Jorge, dos quais um tem um ano de cura, “fora os pequenos, que têm mais variedade”.
Para acompanhar o desfile pantagruélico dos Açores, há os chás da Gorreana, os licores, as compotas, a açafroa e a pimenta da terra – o acompanhamento típico do queijo fresco –, sabores imperativos da lista de compras de, pelo menos, quem se estreia na ida aos Açores. O pão de massa sovada e o bolo lêvedo são “de comer e chorar por mais” ou, na melhor das hipóteses, de levar para casa, para que a saudade destes produtos únicos se dissipe lentamente.
Das Caldeiras da Ribeira Grande para o jantar no À Terra
Imparável, Cláudio Pontes continua a dar corda à imaginação. Desta vez é o “prato surpresa” que, no início a madrugada de 10 de Março, decidiu levar às caldeiras da Ribeira Grande. Chegados ao destino, é dado início ao ritual: a panela, envolta no lençol branco, é colocada na caldeira para o que lá estivesse dentro fosse cozinhado ao vapor.
O segredo, esse, manteve-se até quase ao fim da tarde de sábado, quando o chef açoriano e João Araújo, o chef pasteleiro do À Terra, retiraram a panela da caldeira. Para surpresa de todos, tratava-se de um pão de centeio com pimenta da terra cuja cozedura foi inspirada no bao (pão asiático cozido a vapor). “Ora se aqui tenho as caldeiras onde posso cozinhar pão a vapor de uma forma natural, porque não fazê-lo?”, esclareceu o chef açoriano aquando da explicação acerca desta nova receita submetida já a alguns testes, para que estivesse feita a preceito na noite do jantar sob o tema “Das origens para o À Terra”e batizado com o nome “o nosso pão”.
{Sobre o seu percurso profissional, Cláudio Pontes responde prontamente: “Acreditei sempre que Portugal ia ser o meu futuro. Gosto muito da nossa cultura gastronómica. Nós, lá fora, somos carne para canhão. Andei a passear lá fora, mas sempre sem obrigação. Estive em Inglaterra, via um restaurante, comia e batia à porta para dizer que gostava de lá estar uma dia na cozinha a trabalhar. Conseguia, assim, assimilar muito mais. Estive em Itália, na Tunísia – o hotel tinha sete restaurantes e só não consegui entrar num –, três meses no Brasil. Sempre de férias. Como não me sentia obrigado em ter de receber e de cumprir horas, assimilei muito do que fui aprendendo.” Em Portugal continental, Cláudio Pontes diz ter tido “grandes chefs”.
Esteve no Penina Hotel & Golf Resort, em Portimão, no Hotel Dona Filipa, em Almancil, na Casa de Fados, no Bairro Alto, em Lisboa, esteve cerca de seis anos no Hotel Méridien, em Lisboa, com o chef Eddy Melo, abriu o Hotel Cascais Miragem, em Cascais, foi convidado para o Pestana Palace, abriu o The Oitavos, foi para o Tavares e, depois, para o Hotel Avis. Viajou até Dili, em Timor, passou pela Douro Azul e, por fim, regressou aos Açores, primeiro para a Escola de Formação Turística e Hoteleira e, em seguida, o À Terra.}