O lado sóbrio da cozinha de Vincent Farges

Epur é simplicidade, é sabor. É o todo essencial, o produto, sem excessos, extravagâncias nem atributos de uma qualquer arte cénica. Quem alinha em aceitar o desafio de estar nas mãos do chef?

A estreia do restaurante do chef francês Vincent Farges e de José Pedro Medonça, co-fundador da Desenhabitado, aconteceu em Maio deste ano, no Chiado, em Lisboa. A caminho da sala é feita a passagem por um corredor envidraçado, deixando entrever a azáfama da cozinha, e pelo lounge, onde o fogão de pedra de tempos idos se cruza com as linhas rectas e depuradas das peças de mobiliário. Já a sala contígua é luminosa! Farta em janelas com vista privilegiada para o imenso casario da cidade e o Tejo, converte-se num espaço depurado, minimalista, decorado com mesas de madeira natural, despojadas de toalhas, mas ornamentadas com objectos delicados. Nas paredes sobressai o lambrim composto por azulejos centenários

O refrescante e ceviche vegetal de meloa e aloé vera com o sabor pronunciado do aipo e do gengibre muito bem harmonizado com Hibernus Premier Millésime Brut 2016, um espumante de José Cavalheira, da região demarcada da Bairrada, cuja composição reúne as castas Bical, Chardonnay, Maria Gomes, Baga e Arinto

A escolha do nome do restaurante foi feita em consonância com o espaço. “Epur, em francês, significa limpo, limpo do que é superficial”, justifica Vincent Farges. Por isso, a cozinha do Epur representa “o lado sóbrio da comida, com mais foco no produto do que no pormenor artístico”.

Nas mãos do chef

O refogado de lentilhas e tomate acompanha o porco assado de pele saborosamente tostada

Gd = Gravitação Degustativa. Esta é apenas uma parte da fórmula da carta do Epur constituída por três Menus Epurismo: um com quatro momentos, outro com seis e ainda um outro com oito. Além do Menu Essencial (prato principal e entrada ou sobremesa) disponível apenas à hora do almoço.

Os três tipos de pães são feitos na cozinha do Epur e acompanhados por manteiga da ilha do Pico e azeite do Douro

A carta é, porém, uma não-carta ou não fosse a descrição dos pratos meramente abstracta. Apenas apresenta a essência de cada entrada (água, terra, horta), de cada prato principal (do mar, do rio, do campo, recordações) e das sobremesas (chocolate, pomar ou vintage). Logo, estamos nas mãos do chef. “Hoje vem cá come um prato. Amanhã pode comer o mesmo, mas já é servido com outro produto ou outra apresentação.”  Contudo, há sempre o cuidado de perguntar sobre as restrições à mesa aquando do acto da reserva.

A delicadeza de Vincent Farges, presente nesta entrada protagonizada pelo lírio dos Açores marinado em pimentos, azeite e flor de sal, e acompanhado por legumes e gás-acho de pepino, funcionou na perfeição com Alfaiate branco 2016, da Herdade de Portocarro, na região vitivinícola da Península de Setúbal, feito a partir das castas Esgana-Cão (Sercial), Galego Dourado, Arinto e Antão Vaz

“Por exemplo, se estivesse escrito na carta que um dos pratos seria a língua de vaca, ninguém pediria. Assim, provavelmente, comerão”, sublinha. Este não é o único produto português que entra na cozinha do Epur. Vincent Farges faz mesmo questão que todos sejam nacionais, das carnes, como o cordeiro e o borrego da Serra da Estrela, ou o porco preto, por exemplo, ao peixe, proveniente da nossa costa e dos Açores. A expressão máxima de que há pratos que são inspirados em receituários regionais, como a chanfana ou a vitela assada. “Se os turistas vêm aqui, porque razão tenho de ir buscar outros produtos que não os portugueses?”

O toque cítrico do limão e da lúcia-lima protagoniza o equilibrado contraste com o sabor do robalo salteado e da sames de bacalhau neste prato de peixe de mar com nage de alcaçuz e molho de bivalves, para o qual Ivo Peralta escolheu o Conciso branco 2015, um vinho do Dão e de Dirk Niepoort feito a partir de Encruzado, Malvasia e Bical para um pairing de truz

Há caviar? Há, “mas não é um caviar qualquer. Vem como complemento num prato que é um sucesso”, garante. Assim que chegar a época da trufa, esta fará parte da sua cozinha, pelos aromas e os sabores que proporciona num prato.

“Cozinhar, cozinhar, cozinhar!”

A saborosa e bem macia língua de vitela estufada com legumes da época, salada de couve coração com chouriço e molho de alcaparras exprime a subtileza do chef, desta feita, combinada com Triunvirato n.º 5 tinto, vinho das Caves Messias feito a partir da casta Touriga Nacional colhida em três regiões vitivinícolas nacionais: Douro, Dão e Bairrada

Em todos os pratos “há um ingrediente rei ou um conjunto de três, para privilegiar o sabor”, sublinha o chef do Epur. A decisão advém da experiência, sabedoria e bom senso de Vincent Farges, de 45 anos e com três décadas dedicadas à cozinha (se contarmos com a sua entrada, aos 14, 15 anos, no liceu de cozinha profissional, na Auvergne). Portanto, “não há quebra-cabeças nem desconstruções”, garante. “É preciso cozinhar, cozinhar, cozinhar!”

O deleitoso brioche da Alsácia recheado com compota de alperce, creme de mascarpone e baunilha, e gelado de alfazema

Há simplicidade. Mais do que isso: Vincent Farges trata o produto com a delicadeza que há muito apreendeu e agora implementa, com maior expressão, no Epur. “Trato a pastelaria da mesma maneira que trato a cozinha: com sabor, com sentido.”

A memorável combinação do gelado de zimbro com o chocolate (72%), o chocolate de leite (42%) e a pinhoada remataram o repasto na companhia de um Vinho do Porto Graham’s LBV 2012

Até mesmo a criatividade vive da simplicidade no prato. Mas o chef francês (leia aqui a entrevista à Mutante) vai mais além. Criatividade é escolher o peixe do dia que melhor fica com as guarnições definidas na sua cozinha, o que, por vezes, também tem de mudar.

A harmonização é, por sua vez, baseada numa carta vínica repleta de referências portuguesas, sobretudo de pequenos produtores, à excepção do champanhe. Ivo Peralta, o escanção da casa, é quem escolhe o vinho que melhor combina com cada prato quando lhe é solicitado pairing, mas há sempre a opção de ser o cliente a eleger os néctares para acompanhar a refeição, podendo optar também pelo vinho a copo.

Já que o vinho é o primeiro a entrar em cena, a explicação do escanção cinge-se apenas às sensações provocadas entre aquele e os sabores do prato, cuja apresentação é feita só quando este chega à mesa. Uma surpresa comme il faut que vale bem a pena experimentar.

O Epur situa-se no n.º 14 do Largo da Academia das Belas Artes, em Lisboa. Está aberto de terça-feira a sábado, das 12h30 às 15h00 e das 19h30 às 23h00. Aconselha-se a reserva através do 213 460 519 ou de reserve@epur.pt.

Bom apetite! •

+ Epur
© Fotografia: João Pedro Rato
Legenda da foto de entrada: Vincent Farges, o chef e co-proprietário do Epur, localizado no coração do Chiado lisboeta

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