A cozinha que é uma curadoria de receitas de língua portuguesa

Geographia é o nome de baptismo do mais recente restaurante da Rua do Conde, em Lisboa. Mais do que uma aula, é uma viagem pelo receituário de países associados aos Descobrimentos.

Comecemos pela História de Portugal, paixão partilhada pelos três sócios e amigos Ruben Obadia, antigo jornalista, Miguel Júdice, empresário, e Lucyna Szymanska, responsável por uma das maiores agências de modelos da Polónia. O trio partilha, ainda, um outro dos maiores prazeres da vida: viajar. Qual é, então, a disciplina indispensável a um viajante nato? A Geografia. É, portanto, este outro trio, desta feita, de ingredientes, determinante para a apresentação do restaurante Geographia.

Onde, em tempos, fora um restaurante tipicamente de bairro e, antes ainda, uma mercearia, hoje é um espaço de restauração com uma ementa recheada de sabores que rapidamente conquistam o palato. A sua composição contém “pratos de sítios por onde andaram os navegadores portugueses”, resume Ruben Obadia, a quem foi delegada a função de gerente. “Havia receitas que se estavam a perder, como o arroz gordo, de Macau”, daí o interesse e o gosto de as reunir após o pedido apresentado a famílias de Goa, de Macau, entre outros países representados na carta. Por essa razão, a base da cozinha do Geographia incide não só nos sabores portugueses, mas também na fusão de sabores de países de língua portuguesa. Já as técnicas culinárias e a partilha de ingredientes está nas mãos de três cozinheiros: um brasileiro, um cabo-verdiano e um português.

O cocktail lassi, uma bebida indiana feita à base de iogurte, de banana e gengibre

Em resumo: estamos perante (quase) uma volta ao mundo com destino às cozinhas de Angola, Brasil, Cabo Verde, Goa, Macau, Moçambique, São Tomé e Príncipe, Timor Leste e, claro, Portugal. Afinal, foi com os Descobrimentos que, Portugal e a Europa, passaram a conhecer e a desfrutar de muitos dos produtos utilizados, ainda hoje, na nossa cozinha. É o caso das especiarias, do chá, do café, da malagueta, da cana-de-açúcar, entre uma panóplia de alimentos cuja “história geográfica”, se fosse aqui especificada, quase não teria, certamente, fim à vista.

Para evitar incorrecções, nada melhor do que consultar os mapas antigos dispostos no interior do restaurante. Pode fazê-lo enquanto desfruta de um dos três cocktails de assinatura, como o lassi (bebida indiana feita à base de iogurte) de banana e gengibre, sem álcool e elaborada em tributo a Goa. Ou a caipirinha Gabriela, Cravo e Canela – aqui a homenagem vai para a célebre telenovela brasileira dos anos 1970, baseada no romance do escritor Jorge Amado, a qual fazia parte da grelha do primeiro canal da RTP. Acompanhe com as estaladiças e saborosas rodelas de mandioca fritas.

A geografia dos sabores

Os bogés, de origem goesa, são uma entrada “de comer e chorar por mais”

Das seis entradas, destacamos a salada morna timorense, com frango, batata doce, abóbora, grão, banana, laranja e amêndoa, uma conjugação de sabores e texturas que sabem bem partilhar. Os bogés, de Goa, feitos com cebola frita e farinha de grão, à semelhança dos peixinhos da horta, são uma excelente sugestão, sobretudo para os apreciadores de coentros e hortelã, desta feita, servidos em chutney.

Os dim sum de minchi pertencem à culinária macaense

De Macau, directamente para as entradas consta, ainda, o dim sum de minchi, recheado com carne picada e molho de soja, acompanhados por molho de pimentos doces.

Seguem-se dois pratos vegetarianos a ponderar: cachupa vegetariana, de Cabo Verde, e caril de legumes com cuscuz nordestino – feito com farinha de milho –, uma fusão de ingredientes e aromas de Goa e do Brasil.

Da geografia marítima são eleitos cinco pratos. Destes salientamos o caril de camarão à goesa servido com um saboroso arroz solto confeccionado com leite de coco. Há quem fale de quão apreciado é o polvo grelhado com grão de bico, batata doce, milho bebé e grelos, de origem portuguesa.

O saboroso vindaloo de porco preto servido no prato com a figura central do restaurante, o rinoceronte, e acompanhado, aqui, por arroz confeccionado com leite de coco

O mesmo número de receitas constam na lista das carnes, com o recomendado vindaloo de porco preto, habitualmente servidos com cuscuz nordestino, é prato que reúne as cozinhas portuguesa, brasileira e goesa. A influência da primeira está evidente no vindaloo, caril utilizado em Goa cuja génese está na nossa carne em “vinha d’alhos”.

Quanto ao número de sobremesas, aquele aumenta para sete. Na lista constam o famoso quindim, doce típico do Brasil, servido co serve de caipirinha, a muito equilibrada mousse de chocolate de São Tomé com o seu salame, a Portokal (laranja, azeite virgem e canela em pó) ou, claro, o melhor pão de ló do universo com coulis de frutos vermelhos.

De salientar, ainda, o café, uma mistura de grãos provenientes de Angola, Brasil, Cabo Verde, Timor Leste e São Tomé e Príncipe, tostados em forno a lenha. O chá, denominado de Boa Esperança – o nome do cabo situado na ponta sul do continente africano –, é composto por um blend de roibos, da Cidade do Cabo, erva-mate, do Brasil, e erva-príncipe. A carta vínica contém, essencialmente, vinhos de pequenos produtores de regiões vitivinícolas de Portugal.

Quanto ao menu de almoço, a partir de Outubro, passará a retratar, no prato, os sabores de países além fronteiras, enquanto ao sábado haverá a apreciada comida de família tão ao estilo dos anos 1980, como a feijoada ou o cozido à portuguesa com um twist de outro país de língua portuguesa. Mas as boas novas não ficarão por aqui!

Além dos referidos mapas, há uma imagem muito especial a retratar este Geographia, palavra escrita de acordo com a grafia antiga: o desenho do rinoceronte Ulisses, da autoria de Albrecht Dürer, símbolo do cruzamento de culturas de expressão portuguesa. Recorde-se que, de acordo com a História, o animal foi oferecido pelo Sultão do Gujarat a Afonso de Albuquerque, então vice-rei da Índia, que o enviou, posteriormente, ao rei D. Manuel I que, por sua vez, decidiu oferecer ao papa Leão X, no âmbito da missão diplomática, com o propósito de manter, por parte do Vaticano, as concessões de posse exclusiva das novas terras a Oriente.

Sem esquecer o inusitado macaco, na Sala dos Mapas, nem a instalação da ONG queniana Ocean Sole, na Sala da Selva, a mais reservada do Geographia.

O horário do Geographia, no n.º 1 da Rua do Conde, mantém as portas abertas de segunda-feira a sábado, das 12h30 às 15h00 e das 19h30 às 23h30. 

É ir, pois vale a pena. Bom apetite! •

© Fotografia: João Pedro Rato
Legenda da foto de entrada: A salada morna timorense do Geographia prima pela cor e (muito) pelo sabor

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