Para quem não sabe, trata-se do generoso Vinho de Carcavelos, acção iniciada na década de 1980, pelo município homónimo. É produzido numa das mais pequenas regiões demarcadas do mundo e tem origem na recuperação de património vitivinícola que urge preservar.
O texto vem a propósito da implementação da oferta de enoturismo da Câmara Municipal de Oeiras, no sentido de divulgar, promover e preservar o património identitário inerente ao Villa Oeiras, nome atribuído ao projecto e ao Vinho de Carcavelos produzido em terras pertencentes, outrora, a Marquês de Pombal.
Todos sabemos que se trata de Sebastião José de Carvalho e Mello, o grande impulsionador do Vinho de Carcavelos, no século XVIII, cuja produção tinha lugar na, agora, chamada de Quinta de Cima. Localizada a dois passos do centro histórico da vila de Oeiras, esta propriedade era o epicentro da actividade agrícola, que abrangia a produção de cereais, fruta, azeite, hortícolas, além a produção dos bichos-da-seda, como casa própria, associada ao desenvolvimento da indústria da seda no país. Mas já lá voltamos, até porque é importante conhecer a narrativa ligada a tão relevante legado vitivinícola, que, hoje, “não é só um projecto público. É também, porque o vinho tem expressão no mercado”, justifica Alexandre Lisboa, responsável por este projecto do município de Oeiras.
A recuperação de uma generosa herança
O Vinho de Carcavelos ganha expressão no mundo. Eça de Queiroz, ilustre escritor português, refere tão delicada bebida na sua obra “Os Maias”. Mais tarde, em 1908, é constituída, por Carta de Lei, a Região Demarcada de Carcavelos. “Com a grande expansão urbana, quase por completo se obliterou a vinha”, esclarece Alexandre Lisboa, referindo-se aos anos 80 do século XX.
É precisamente nesta década, que se inicia o projecto de recuperação do Vinho de Carcavelos, dentro dos actuais 135 hectares murados daquela que foi, em tempos, a propriedade de Marquês de Pombal. O mentor foi Luís Carneiro, Engenheiro na antiga Estação Agronómica Nacional, em Oeiras, que mandou plantar os primeiros cinco hectares de vinha, com as variedades de uva Trincadeira, Castelão, Arinto, Galego Dourado e Ratinho. “Também há Malvasia de Colares e Ramisco”, nomeou Alexandre Lisboa a título de curiosidade. O desafio estendeu-se a Estrela Carvalho, Engenheira da antiga Estação Agronómica Nacional, que decidiu desenvolver este projecto, juntando as referidas uvas brancas e a aguardente vínica da Lourinhã, que, na altura, também era objecto de estudo.
Em consequência deste trabalho conjunto, é assinado, em 1988, um protocolo entre a Câmara Municipal de Oeiras e a Estação Agronómica Nacional. Nove anos mais tarde, em 1997, ambos tornam-se parceiros efectivos da produção do Vinho de Carcavelos, inicialmente apresentado com outro nome. Em 2001, a antiga abegoaria – “onde se fazia a produção de alguns lacticínios, como a manteiga” no tempo do Marquês de Pombal –, situada no lado Norte, da Quinta de Cima, é convertida em adega de ambas a entidades supramencionadas. O objectivo era materializar a produção do Vinho de Carcavelos, acção que passa, em 2006, para as mãos do município de Oeiras. É então que o Villa Oeiras começa a dar cartas.
A influência marítima, os ventos e as castas
Antes de avançar, importa salientar as condições edafoclimáticas da Região Demarcada de Carcavelos, em particular da vinha plantada na Quinta de Cima. Alexandre Lisboa chama a atenção para o facto desta zona estar inserida no complexo vulcânico de Lisboa, entre a Serra de Sintra e a Serra da Arrábida. A este factor, juntam-se os solos de fundo marinho. “Temos, aqui, solos argilocalcários, com fósseis por todo o lado e, por isso, ideais, para a cultura da videira.”
Some-se a orientação da encosta, com um declive suave – “entre dez a 15 por cento” – e a exposição solar total, que vai de Nascente a Poente. A proximidade do mar é outro aspecto a ter em conta. É de lá que é proveniente a brisa atlântica, “que traz a água e os sais minerais essenciais, para a nutrição das plantas”. Sente-se durante a noite e a madrugada, deixando o rocio nas folhas da videira. “Depois, o vento de noroeste diurno ‘limpa’ essa humidade”.
Sobre as castas, é de realçar os dois grupos em que estão divididas. Na lista das autorizadas, constam a Seara Nova e a Rabo de Ovelha. “São as mais recentes e aumentam o volume de produção”, acrescenta o nosso cicerone. As castas brancas recomendadas são Galego Dourado, “a mais identitária desta região”, a Ratinho, “a mais precoce e confere uma complexidade aromática importante” ao Villa Oeiras, e a Arinto, que atribui frescura e acidez a este Vinho de Carcavelos. A Castelão, a Trincadeira e a Amostrinha estão inscritas no alinhamento das castas tintas recomendadas. “Todas têm uma capacidade fantástica de envelhecimento”, assegura Alexandre Lisboa.
Mas por que razão é a Região Demarcada de Carcavelos uma das mais pequenas do mundo? Feitas as contas, estão contabilizados actualmente 31 hectares de vinha. Desta soma, 19 hectares pertencem ao Villa Oeiras, dos quais seis foram plantados no início de 2021.
“Já estão aprovados mais oito hectares”, avança o nosso cicerone, plano esse que abrange duas outras propriedades, “a Quinta da Samarra e mais uma em Bicesse”. No entanto, o projecto Villa Oeiras é o único da Região Demarcada de Carcavelos com adega própria, daí que seja dado o apoio necessário à Adega de Belém Urban Winery, em Lisboa, à Quinta da Samarra, no Estoril, e à Câmara Municipal de Cascais, detentora do Mosteiro de Santa Maria do Mar, em Sassoeiros, Carcavelos, onde estão plantados cerca de 900 pés de vinha comunitária, tendo-se realizado a primeira colheita em 2019.
A adega boutique do Vinho de Carcavelos
Por falar em adega ou na Adega Casal da Manteiga, é aqui que se processa a vinificação e parte da produção do Villa Oeiras. “Os mostos são analisados todas as semanas”, revela Alexandre Lisboa frente às cubas de inox instaladas no interior do lado Norte do edifício. A vindima é manual, após a qual os cachos são submetidos ao desengace total. O bagaço é utilizado como fertilizante do solo da vinha.
“Nesta altura do ano, estão a decantar e depois vão para a madeira. Aqui estão os vinhos mais antigos”. Os mais recentes estão na Adega do Palácio do Marquês de Pombal. As barricas estão empilhadas no lado oposto da adega. No interior de cada uma, descansa o Villa Oeiras, para um longo processo de envelhecimento. A preferência recai no carvalho português. “É uma madeira mais honesta. Sentimos a importância da aguardente”, enaltece Alexandre Lisboa, mas, no início do projecto, foi feito um estudo baseado nos tipos de madeira, no sentido de eleger as que tinham maior vantagem para vinhos de guarda. A título de exemplo, Alexandre Lisboa fala sobre a colheita de 2007, submetida a barricas de carvalho português e a barricas feitas a partir de madeira da floresta francesa de Loimousin, ambas com tosta média e tosta forte, com o intuito de analisarem a evolução e os atributos organilépticos deste vinho generoso em cada uma das pipas.
“Se possível, fazemos os lotes no final.” Geralmente, ocorrem por volta dos seis meses antes do engarrafamento. “Um lote pode ter entre 25 a 30 barricas” e o resultado deve rondar 12,5 por cento, 13 por cento de álcool. Em nome da recuperação da cultura vínica da região, “temos de saber tudo e experimentar tudo”.
Ou seja, além do Vinho de Carcavelos Villa Oeiras, são produzidos brancos, tintos e aguardentes. A 29 de Abril de 2019, “começámos o processo de envelhecimento de aguardente”. Este estudo está a decorrer em parceira com o Instituto Superior Agrário, em Lisboa, para “verificar o poder de envelhecimento em pipas de Carcavelos”, e a Quinta do Rol, propriedade vinhateira, abrangida pela área geográfica da Região Demarcada da Lourinhã e a única, onde o vinho é destilado, a fim de obter aguardente vínica. E “temos de ter muita paciência”, pois o tempo de estágio é longo.
O descanso do Vinho de Carcavelos em adega palaciana
Em vista, está a vontade de ascender aos 80 mil litros de produção de Vinho de Carcavelos Villa Oeiras e às 1500 pipas, a dividir entre a Adega Casal da Manteiga e a Adega do Palácio do Marquês de Pombal, situada na Quinta de Baixo.
O acesso obriga a atravessar a Quinta de Cima, de onde se destaca a beleza paisagística e a monumental Cascata do Taveira ou dos Gigantes, em alusão a Fauno e Cíclope – estátuas essas que estão na Quinta de Baixo –, com o seu conjunto de painéis de azulejos do século XVIII e contígua à Casa da Pesca, objecto de reabilitação, por forma a dar continuidade à recuperação do património arquitetónico deixado por Marquês de Pombal.
Já nos jardins do Palácio do Marquês de Pombal, um belo exemplar do barroco do século XVIII cruzado com o modernismo do século XX, desta feita recuperado pelo Arquitecto Paisagista Gonçalo Ribeiro Teles, como tão bem diz Alexandre Lisboa, está a adega mandada construir por Sebastião José de Carvalho e Mello. A fila de bustos dos antigos imperadores Romanos não deixam o olhar indiferente e a grandeza desta obra estende-se ao seu interior.
Com orientação Norte/Sul, 70 metros de comprimento e 15 de largura, esta adega ostenta, hoje, pipas de Sauterne, Cognac e Bordéus, e o tonél de mogno da América do Sul, peça museológica a contemplar antes de começar a prova vínica. Há três à escolha e o nome de cada uma é alusivo a três obras-primas do século XVIII.
A escolha é feita entre a Cascata dos Poetas (€12), prova que inclui o Villa Oeiras 7 Anos – de momento, é o vinho mais jovem do portefólio – e o Villa Oeiras 15 Anos Superior; a 4 Estações (€17), com ambos do primeiro, além de um vinho apto a Carcavelos branco e um IGP branco; e a Casa da Pesca (€25), em que, aos anteriores somam-se o Villa Oeiras Colheita tinto 2009, cujo lote “ficou a ‘casar’ por um ano”, e também um vinho apto a Carcavelos tinto.
“Com os colheitas, pretendemos (…) que o vinho demonstre o potencial da Região de Carcavelos. No futuro, vamos fazer colheitas com mais idade”, afirma Alexandre Lisboa.
As harmonizações dividem-se entre a Clássica (Queijada de Oeiras e Pastel de Vinho de Carcavelos), a Superior (Queijo da Ilha, queijo Roquefort, Queijada de Oeiras e Pastel de Vinho de Carcavelos) e a Premium (Queijo da Ilha, queijo Roquefort, Queijada de Oeiras, Pastel de Vinho de Carcavelos, bacalhau em escabeche e patê de veado e perdiz). Os preços são, respectivamente, de €4, €8,40 e €12 e são precisas, no mínimo, duas pessoas para se realizar a prova vínica, cujo valor inclui a visita.
Se o propósito é apenas conhecer (€6) sem provar, também é possível, mas será que vai querer perder toda esta história no copo? Brindemos!