A Bica tem cultura nipónica, sonoridades várias e bons vinhos a acompanhar

Cosmopolita e descontraído. Assim é o Independente Lisboa-Bica, onde as influências portuguesa e japonesa se cruzam à mesa, na companhia de referências a condizer com as novas tendências.
Os quartos valem pela diferença e as artes apelam à consciência social. 

A fachada mantém a traça do século XIX


As viagens são pretexto maior para ampliar conhecimento. No regresso, a bagagem é feita de memórias, sonhos, histórias, inspirações. Eis o que fazem os irmãos d’Eça Leal, que, de mochila às costas e sem pretensiosismos, “calcorreiam” o mundo. De tão longínquas paragens trouxeram a ideia de cruzar o passado com o presente. A prova está no Independente Lisboa-Bica, boutique hotel instalado no n.º 93 da Rua de São Paulo. 

O edifício, datado de 1849, mantém a traça original da pensão de outrora, como se pedisse uma viagem no tempo ou o contar da sua história “agora numa versão mais contemporânea e mantivemos a dimensão de grande parte dos quartos. Tendo dimensões mais limitadas, nada melhor que projetá-los recorrendo ao minimalismo e funcionalidade asiática”, explica Duarte d’Eça Leal.

Quarto familiar e para amigos © Francisco Nogueira


Os interiores ostentam a descontração dos nossos dias em consonância com o minimalismo asiático. Sem recortes nem invenções, esta unidade é combinação exemplar de uma unidade hoteleira cosmopolita, como se quer. A mescla de detalhes combina tapetes de padrões arrojados com mobiliário retilíneo, feito a partir de bétula sustentável, as tonalidades suaves com a cor de cada mini-bar, onde há produtos japoneses e nacionais.

A expressão artística é aposta forte em cada canto do Independente Lisboa-Bica


Pelos corredores e nos 26 quartos, a arte não passa despercebida. A criação artística cabe ao Manicómio. Este projeto de reinserção psicossocial, desenvolvido por Sandro Resende e José Azevedo, contribui para a abertura de portas para a profissionalização de pessoas com doença mental. Há 63 quadros espalhados pelo boutique hotel. É uma espécie de exposição a visitar pelos hóspedes, sobretudo se optar por subir para cada piso pela escadaria da antiga pensão. Ao mesmo tempo, esta mostra tem como objetivo sensibilizar cada um para o quão importante é mantermo-nos motivados e estimular quem connosco trabalha.


Bica-San, palco de gastronomia e muita música

Desçamos. O elevador é de acesso direto ao piso térreo, onde fica o Bica-San, restaurante criado à imagem de uma taberna japonesa, um izakaya. A comida é asiática. Os produtos são maioritariamente portugueses. A base desta cozinha incide nas trocas e influências gastronómico entre o nosso país e o Japão. Esta homenagem é feita pelo chef Bruno Antunes, que detém conhecimento no que às técnicas nipónicas diz respeito desde os tempos em que esteve em Londres. Dúvidas? Vamos à conversa sobre comida e, claro, vinhos.

Quem é o Bica-San ou “Gajo da Bica”?
Duarte d’Eça Leal:
Alguém que viajou até ao Japão e ficou fascinado pela cultura, pelas gentes, pelos costumes e, claro está, pela gastronomia. Alguém, que ao regressar a Lisboa, traz na memória os sabores experimentados, os ingredientes que partilhou também por lá e traz nas bagagens uma série de novos pratos, técnicas, temperos, molhos e novos hábitos conjugados com os sabores portugueses.


No Bica-San há petiscos portugueses inspirados no intercâmbio gastronómico entre Portugal e Japão. É este o culminar da viagem do “Gajo da Bica”?
Duarte d’Eça Leal:
Sim, no regresso a casa a experiência vivida está ainda muito presente e isso transporta-se para o prato. A nossa história está repleta de exemplos de intercâmbios “gastronómicos”. E são muito evidentes entre Portugal e o Japão. Os peixinhos da horta, por exemplo, que “levaram” a tempura para o Japão, juntamos aqui no Bica-San, um “Bulhão Pato” de funcho. Dos grelos de nabo, fazemos um arroz Gohan ao qual juntamos berbigão. A uma rabanada, tão típica de cá, juntamos um creme de matcha. Desta forma, honramos esta viagem, esta mescla de culturas e de sabores.


Porquê um izakaya nestas ruas de Lisboa, bem perto do rio Tejo e num hotel contemporâneo, numa época em que se fala tanto no regresso às origens, às várias cozinhas criadas nas respetivas regiões do nosso país, que reforçam a nossa identidade?
Duarte d’Eça Leal:
Esta zona da cidade é conhecida pelo seu lado mercantil. Por aqui passava o mundo. As trocas comerciais povoavam o Cais do Sodré e a Bica. É um dos locais da cidade onde diversas culturas sempre se cruzaram, pelo que esta ode a duas culturas gastronómicas distintas faz sentido precisamente aqui. Além disso, somos feitos de muitas experiências ao longo da vida e desde que fizemos uma viagem ao Japão havia este desejo. Concretizá-lo aqui nesta artéria viva da cidade onde até hoje se sente o pulsar dessas trocas de culturas – hoje com outros formatos – pareceu-nos o mais adequado.
A juntar a isso, a experiência do chef Bruno Antunes, nos seus anos de trabalho e experiência em Londres, onde desenvolveu muitas técnicas relacionadas com a cozinha japonesa, permitiu-nos este “atrevimento”.
Além desta abordagem que homenageia duas culturas, ela também honra parte da nossa história pelo mundo, ao mesmo tempo que nos remete para as nossas origens. Nos pratos já referidos, e em outros detalhes, como o Brás de couve-flor que temos no tofu braseado – sim, não tem o bacalhau, mas usamos as mesmas técnicas. E, como não podia deixar de ser, a nossa gastronomia está sempre presente através dos produtos que usamos, que vai da amêndoa – outro ingrediente partilhado por Portugal e o Japão –, ao atum dos Açores, o pinhão, a pera, ou o peixe utilizado na Sakana do Dia.

O chef Bruno Antunes (2.º a contar da esquerda) e a sua equipa


O que faz o chef para evitar uma cozinha que não gere confusão nesta cozinha de fusão entre as culturas acima mencionadas?
Bruno Antunes:
Sendo o intuito da nossa cozinha prestar uma homenagem ao intercâmbio cultural entre Portugal e Japão, torna-se fácil construir uma carta que não seja confusa, utilizando a técnica certa no produto certo. As nossas bolsas de tofu são o exemplo disso. Aplicamos a técnica do Brás com couve-flor às bolsas de tofu japonesas (Aji inari) que são marinadas em mirin e soja. Desta forma, obtemos um prato com contrastes entre o doce e salgado, marcamos no yakitori para dar uma nota de fumo. O resultado é um prato com um toque doce, salgado, fumado. Toda a nossa cozinha foi pensada com esse registo: aplicam-se produtos e técnicas de ambas as culturas, facilitando a criação de uma carta descomplicada e interessante e que consiga cruzar elementos entre as duas.

A carta de vinhos também convida a viajar além-fronteiras. No entanto, não há referência ao saké.
Duarte d’Eça Leal:
Ainda não, mas estamos a preparar novidades nesse sentido! Vamos introduzindo algumas novidades ao longo do tempo. De referir, por outro lado, que apesar da ausência do saké, a carta de cocktails segue exatamente a mesma linha de homenagem aos dois países e culturas, através da utilização de diversos chás japoneses como base nas bebidas – chá de Sencha Sakura, Chá Choco Tahi  –, enquanto usa diversos elementos nacionais como o ananás, o pepino, entre outros. Até porque, tradicionalmente, o chá tem um papel fundamental no Japão. A carta de vinhos viaja para diversas paragens, incluindo, obviamente, Portugal. É uma carta pequena, com uma seleção cuidada e criteriosa feita pela nossa equipa liderada por Samuel Garas e em consonância com a cozinha. 


Carta de vinhos curta, mas preciosa

Sobre o vinho, o escanção Samuel Garas, vai mais longe. Responsável pela seleção vínica do grupo Independente, denota uma filosofia centrada em valores. “Estes valores têm como objetivo orientar a nossa tomada de decisões. Na vanguarda, o nosso objetivo é celebrar a cultura do vinho, defender os pequenos produtores, os artesãos e os vignerons.” Contribuir para as boas práticas ambientais é outros dos aspectos enaltecidos pelo escanção, que destacas “pessoas que cultivam vinhas saudáveis e práticas agrícolas positivas. Produtores e enólogos que se preocupam com a terra em que trabalham e com o vinho que produzem.”

A proveniência dos vinhos é outro tema cujo esclarecimento cabe a Samuel Gatas. “Vinhos que tenham um forte sentido de identidade, que falem da sua origem e que tenham uma verdadeira expressão de lugar.” A evidência maior é “às variedades autóctones”, destaca. 

Na calha, há eventos e provas vínicas. O objectivo destas acções passa por “colmatar o fosso entre o produtor e o consumidor, permitindo que a voz, a visão e a história do produtor sejam ouvidas e compreendidas a um nível mais profundo”

Mas até nos eventos vínicos, Samuel Garas quer inovar. O primeiro tem lugar hoje, dia 8 de Dezembro e conta com vinhos da Sicília. De lá para cá, Fillipo Rizzo traz Lamoresca, projeto familiar que tem como berço San Michele di Ganzaria, pequena aldeia localizada no interior da ilha. “Uma zona seca, algo árida, situada entre colinas ondulantes e terrenos agrícolas”, onde ficam os cinco hectares de vinha exposta a colossais oscilações térmicas. “E Filipo trabalha diligentemente para produzir frutos saudáveis e bonitos”, esclarece o escanção. Para “fugir” do convencional, o escanção do grupo Independente vai providenciar um serviço de vinho a copo destes vinhos – colheitas recentes e outras surpresas – a par com a escolha de pratos à la carte, assinada pelo chef Bruno Antunes, feita por quem aceitar este desafio. “A acompanhar-nos nesta noite estará Simon, o filho de Fillipo, que desde então assumiu a produção de vinho e estará disponível para partilhar a história por detrás de cada vinho”, informa Samuel Garas.


Esta opção está alinhada com a filosofia associada à carta de vinhos do Bica-San, a qual “centra-se em complementar os sabores com influência asiática do menu. Os principais perfis são: sal, ácido, doce, terroso e umami. Este é também um menu lúdico, divertido e de ritmo acelerado, baseado no modelo izakaya. Por isso, os vinhos devem refletir isso e serem consumidos sem pretensões e com uma sensação de descontração”, afirma Samuel Garas. Além disso, apresenta-se como uma lista “concisa e predominantemente portuguesa”, com referências de Norte a Sul do país. Mas há margem para incluir vinhos europeus, “para que possamos entender melhor como o vinho se traduz e comunica de onde vem. Essencialmente, a linguagem da região que está a tentar partilhar connosco.

Esta forma de trabalhar proporciona aos nossos clientes um espectro mais alargado de experiências, mantém as coisas interessantes para o nosso staff e informa e desenvolve a nossa cultura vinícola local”
.


O Bica-San é também palco de sonoridades várias. Às quintas-feiras, a partir das 19h30, músicos locais dão voz a sonoridades próprias. A curadoria está nas mãos da produtora cultural Ana Vulcão, que, de rua em rua, descobre talentos ecléticos, que, aqui, têm a oportunidade de mostrar bons sons.

Já ao outro dia, de manhã, serve-se o pequeno-almoço. Continental ou japonês? Vale a experiência. É ir!

+ Independente Lisboa-Bica
© Fotografia João Pedro Rato

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