Podemos dizer que há um “antes” e um “depois” para André Cruz, chef executivo do Feitoria. Essa barreira no tempo acontece na viragem de 2014 para 2015, quando viaja de mochila pela América do Sul, na companhia de Ruben Trindade. Deste roteiro cultural e gastronómico traz uma intensa aprendizagem, que, aos poucos se estabeleceu na cozinha do restaurante de fine dining do Altis Belém Hotel, em Lisboa.
“Nem dei conta”, responde André Cruz quando lhe dissemos que está há 15 anos no Feitoria, o restaurante, com uma estrela Michelin, do Altis Belém Hotel em Spa, em Lisboa. “Em janeiro de 2009, quando entrei para o Feitoria, José Cordeiro era o chef consultor, João Rodrigues era o chef do Feitoria e João Simões era o chef do Mensagem, que abriu primeiro”. Até chegar aqui, André Cruz frequenta e conclui o curso de Cozinha e Pastelaria, entre 2004 e 2007, na Escola Superior de Hotelaria e Turismo do Estoril. “Entrei com 15 anos”, lembra. Vírgula e Bica do Sapato são espaços de restauração que também constam no currículo. Leia a entrevista.
Como era visto o fine dining em 2009?
Era deslumbrante, quase inalcançável. Era exclusivo! Quando venho para o Feitoria já se falava em estrela Michelin, porque o chef [José] Cordeiro vem da Casa da Calçada, que tinha uma estrela Michelin. Em 2011, ganhámos a estrela.
Em maio de 2022, André Cruz assume a função de chef executivo do Feitoria. Hoje, com 36 anos, faz questão de alterar um ou outro elemento da composição de cada prato, de acordo com o que recebe dos produtores, o que, “em termos criativos, é muito bom”, confessa. “Foi o que aprendi no Boragó”, acrescenta.
“Ainda hoje guardo imagens destas viagens. Tínhamos uma playlist e acordava muitas vezes durante a viagem a ouvir Pink Floyd ou Pearl Jam, com aquela vista deslumbrante…”
chef André Cruz
Em 2014, o André Cruz pega na mochila e vai para a América do Sul na companhia de Ruben Trindade, chef do Restaurante Casa do Gadanha, em Estremoz.
Foi uma grande experiência! Mudou-me completamente. O Rúben [Trindade] saiu do Feitoria e foi para o Ocean [restaurante do Vila Vita Parc, em Porches, no Algarve]. Éramos – e somos – muito próximos. Falámos em ir para a Ásia, para a América do Sul, em vários sítios, mas acabámos por escolher a América do Sul. Queríamos muito ir ao [restaurante] Central, no Perú, e ao Boragó, no Chile. Entretanto, recebemos resposta positiva do Boragó, no Chile, e saímos daqui, com essa passagem programada para o Chile. Aterrámos no Perú, porque o estágio começava mais à frente no tempo e aproveitámos para conhecer aquelas culturas, de mochila às costas, de camioneta e de país em país – Perú, Chile, Argentina, Paraguai, Brasil. Fazíamos a viagem um bocado a correr, para vermos o máximo de conseguíamos. Houve uma viagem de 32 horas, no autocarro mais barato! Foi quando acabámos o estágio no Boragó e fomos de Santiago do Chile até Punta Arenas, na Patagónia. Ainda hoje guardo imagens destas viagens. Tínhamos uma playlist e acordava muitas vezes durante a viagem a ouvir Pink Floyd ou Pearl Jam, com aquela vista deslumbrante…
Chegaram a escrever algo sobre estas viagens pela América do Sul?
Pensámos em falar com alguém para documentar aquela viagem, mas esse plano não foi para a frente. Temos uma experiência muito gira que aconteceu quando cruzámos a Patagónia para o lado da Argentina, para uma zona que se chama Torres del Paine. Um sítio inacreditável! Completamente selvagem! Compramos as viagens na cidade. Depois fomos da cidade até às Torres del Paine. Subimos até lá cima… Subir até lá cima não é pêra doce! Para lá chegar, tivemos de caminhar por trilhos, com mochila às costas, durante nove horas. Fomos com pouco dinheiro para lá. No primeiro dia, comprámos algumas coisas para comer, mas no segundo dia já não tínhamos dinheiro, mas tínhamos de lá ficar três dias a dormir na tenda, que tínhamos alugado na cidade, mas não os colchões, o que pirou as coisas. Não devemos dormir em contacto directo com o chão. O meu saco-cama era militar, super bom, mas o do Ruben era fraquinho… Impossível! Às três da manhã, o Ruben já não aguentava mais. Havia neve e estávamos a mais ou menos 2.000 metros [de altitude]. Arrumámos tudo e pusémo-nos a caminho.
Em que época do ano isso aconteceu?
Isto aconteceu na passagem de ano [de 2014 para 2015]. Estava lusco-fusco. Um dos cozinheiros do Boragó tinha-nos dado uma lata de milho fermentado. Abrimos a lata de milho, o Ruben prova e começa a agoniar-se… Foi horrível! Eu estava com uma fome tão grande, que engolia aquilo… [risos] Comia o milho e bagas selvagens que apanhávamos por lá, que parecem mirtilos. As bagas eram nutritivas e dividimos pelos dois. Nessa noite dormimos nas Torres del Paine.
Mas não ficaram apenas por ali.
Quando comprámos a viagem tínhamos dois meses e meio para lá ficar, mas, quando chegámos, fomos ao Peru e do Peru fomos para a Bolívia. Em La Paz há um restaurante, o Gustu, de Claus Meyer, um dos fundadores do Noma. Foi criado para dar apoio à população, ou seja, os bolivianos iam para este restaurante-escola, onde tinham uma profissão, aprendiam práticas de higiene e de organização, e aprendiam inglês. Ficámos lá praticamente um mês. A chef é a dinamarquesa Kamilla Seidler, que esteve aqui no Feitoria. Foi uma ótima aprendizagem! La Paz já fica a mais de 3.600 metros de altitude. Respirar era horrível, lavar os dentes era horrível…
O Gustu foi o primeiro ou o segundo restaurante onde trabalharam quando estiveram na América do Sul?
Primeiro estivemos no Gustu. Depois é que fomos em direcção a Santiago do Chile, para o Boragó, que foi de uma intensidade criativa imensa, no que toca a contacto com produtores, horta, recolecção. Íamos uma vez por semana, de manhã, para recolectar. A viagem era como se fôssemos daqui a Vila Nova de Mil Fontes apanhar ervas ou até ao Algarve. Voltávamos à noite, para “dar” serviço. O [chef] Rodolfo Guzman é muito intenso! Esta dinâmica mexeu muito connosco, com a nossa maneira de ver as coisas. Tanto que o Ruben também está a fazer um trabalho muito direccionado para a sazonalidade, a relação com os produtores. Esta viagem plantou-nos esta sementinha. Foi uma passagem dura, mas muito boa! Foi dura, porque íamos com alguma experiência e, de repente, somos coordenados por profissionais mais novos, mas acabámos por nos integrar.
“Este conhecimento que trouxemos não se compra. Faz-se a partir da convivência e esta convivência é inacreditável! Para além do conhecimento em termos profissionais.”
chef André Cruz
O que trouxe na bagagem dessa intensa rota culinária?
Fez-nos muito bem estarmos este tempo fora. Fez-nos dar valor a muita coisa. Foi quase uma introspecção. No que toca a conhecimento cultural, foi um choque. Para mim, a Bolívia foi um choque, mas positivo. Lidámos com pessoas com muita carência e que dão muito valor a coisas simples. Tivemos uma situação muito gira com um dos cozinheiros do Gustu, um boliviano que vivia numa favela de La Paz, situada a pouco mais de 4.000 metros de altitude. Convidou-nos para fazermos uma refeição tradicional boliviana em casa dele. Quando lá chegámos, tínhamos quatro ou cinco pratos bolivianos. Ficámos muito sensibilizados. A mãe tinha-se levantado às quatro ou cinco horas da manhã, para cozinhar aquele banquete e eles não tinham a mínima condição de vida! Ainda hoje falamos com ele. Este conhecimento que trouxemos não se compra. Faz-se a partir da convivência e esta convivência é inacreditável! Para além do conhecimento em termos profissionais.
Esta convivência também valeu a pena pela proximidade com os produtores locais.
O [Rodolfo] Guzman já, nessa época, fazia muito esse contacto com os produtores. É preciso ver que há nove anos, ele reunia biólogos, artistas, artesãos, matemáticos, cozinheiros, produtores num espaço, que era uma cozinha criativa, na parte de cima do Boragó. Esta dinâmica era ainda embrionária, mas altamente criativa. Toda esta bagagem resulta em muitas ideias.
Esta relação com o produtor e o produto também está associada à sustentabilidade. O que é feito aqui, no Feitoria em prol desta temática?
O Feitoria é um restaurante super posicionado, reconhecido. Por isso, tem de passar uma mensagem, não só para os clientes, mas também para as pessoas que trabalham connosco. A sustentabilidade ambiental, económica e dos próprios trabalhadores têm de ser implementadas. Evitamos ao máximo o uso de plásticos, o que é um esforço tremendo. Cortamos com o uso do papel. Temos panos próprios de limpeza que são lavados todos os dias. Na mise-en-place utilizamos panos próprios para acondicionar peixe, marisco e legumes. Agora estamos a fazer compostagem, para eu levar para a minha horta, no Pinhal Novo, mas, no futuro, quero que sejam os fornecedores a levarem, para fertilizarem as terras deles ou para as galinhas. Queremos fazer muito mais! Em termos de sustentabilidade de staff, fazemos muito menos horas do que se faz, em média, no fine dining. Em média, fazem hoje entre nove a dez horas. Esta questão relacionada com as pessoas é muito importante para nós. Portanto, as horas a mais que fazem, pagamos em tempo ou em dinheiro.
Em relação ao aproveitamento dos produtos, fazem aqui preservados. São uma alternativa aos parings de vinhos.
Temos kombuchas, infusões. As infusões são servidas em copo de vinho. Aprendi esta prática com as Infusões com História [André Figuinha e Miguel Moreira]. Temos sumos naturais. Fiquei alerta para esta questão dos parings sem álcool num restaurante com três estrelas Michelin. A minha mulher estava grávida e passou a noite a beber água, porque não podia ingerir bebidas com álcool. Foi aí que tive a ideia de instituir os parings não alcoólicos, além de que temos dois vinhos sem álcool, da Dinamarca. Um é feito a partir de Chardonnay e o outro é de Pinot Noir. As kombuchas são ótimas, porque aproveita-se muita coisa.
“Quando semeamos alguma coisa, a expectativa é que dali nasça e cresça uma coisa boa, bonita e que dê para comer. O que espero deste menu Semente é exactamente isso, fazer um trabalho, no qual acreditamos, que as pessoas valorizem e respeitem.”
chef André Cruz
A horta biológica, a apicultura. Esta ligação à terra surgiu após a viagem pela América do Sul?
Sempre vivi em ambiente agrícola. Os meus avós maternos, de Escalhão, Figueira de Castelo Rodrigo, no distrito da Guarda, eram agricultores. Tinham vacas, produziam legumes. Adorava ir para lá. Houve uma época em que tive de lá ficar por questões de saúde. Beber leite directamente da vaca, por exemplo, é uma memória da minha infância. Aquilo era mágico! A horta que temos no Pinhal Novo já existia antes da viagem, mas as abelhas… não queria saber nada daquilo. Ía lá o avô da minha mulher, o Sr. Saul, que foi quem levou as abelhas para lá. Um dia, um enxame [de abelhas] voou para a copa de uma árvore. Como o Sr. Saul não podia subir, tive de lá ir. Vesti o fato, colocámos o escadote junto à árvore… “Isso não é assim”, dizia [risos]. Comecei a fazer perguntas e a comprar livros sobre abelhas e sobre apicultura, e passei a interessar-me sobre este tema. Hoje sou um aficcionado na apicultura. A horta tem tudo a ver comigo.
Que outras viagens gostaria de fazer?
Há dois destinos que gostava muito de conhecer: Japão e Nova Zelândia. O Japão por causa da gastronomia, do produto. Aquela cozinha é super influenciadora, muito rigorosa, muito tradicional. Há um respeito familiar muito intenso. O cuidado, o produto, a variedade. A Nova Zelândia é Natureza pura! Mas tenho muitas viagens por fazer.
A “sementinha” referida nesta conversa, tem a ver com o menu Semente? O que esperas obter com esta semente?
Quando semeamos alguma coisa, a expectativa é que dali nasça e cresça uma coisa boa, bonita e que dê para comer. O que espero deste menu Semente é exactamente isso, fazer um trabalho, no qual acreditamos, que as pessoas valorizem e respeitem. Simboliza o caminho novo que passámos a fazer no Feitoria. Queríamos fazer algo diferente, chegar a novas ideias, fazer novas dinâmicas de serviço. À conta do nome, vamos fazer um menu em papel reciclado, com sementes, o qual está a ser desenvolvido. Assim, as pessoas podem semear o menu num vaso e não se esquecerem do Feitoria ou ter o Feitoria com elas durante algum tempo.