“Sabemos que há restaurantes que são construídos por paixão, mas isto é um negócio” / Chef Diogo Rocha

O que pesou na decisão de uma criança com nove anos ajudar o pai na empresa de catering?
Não foi um peso, porque era uma vontade. Hoje, seria completamente impossível ter alguém com essa idade na cozinha. Mas, naquela época, já tinha a vantagem de ter este tamanho [risos]. Contactava com pessoas mais velhas… e este trabalho acabou por influenciar-me. Portanto, soube logo o queria ser: cozinheiro. O meu cozinheiro de referência era um grande cozinheiro, de quem, mais tarde, fui chef.

Como se chamava?
Era o Zé Alberto. Trabalhava na Encontros [de Carregal do Sal], a tal empresa de catering. Havia também o Zé Pataco, o Eurico, do Hotel Urgeiriça… Estas são as minhas referências. Na altura, falava-se que ganhavam 300 contos. Contactar diretamente com estas pessoas era o meu mundo e o mundo onde sempre me imaginei. Ser cozinheiro foi a escolha.

O percurso de cozinheiro de Diogo Rocha foi para a frente, ao longo do qual desenvolveu experiências multifacetadas.
Fiz formações, como a de 1999, em buffets e de decorações. Já na altura gostava muito de fazer decorações. Se calhar a estética já estava presente. Fiz uma formação na Escola de Hotelaria [e Turismo] de Coimbra, candidatei-me à escola, mas fiquei a trabalhar. Foi quando o chef Vítor Sobral me disse uma frase que gosto sempre de dizer: “puto, não podes ficar aqui. Tens de ir estudar.” Fui estudar Cozinha e Pastelaria, na Escola de Hotelaria e Turismo de Coimbra. Entrei em 2000 e sai em 2003. Depois, tirei a licenciatura em Produção Alimentar e Restauração, na Escola Superior de Hotelaria e Turismo do Estoril. Aproveitei para fazer alguns trabalhos na tal empresa de catering, durante as férias e aos fins de semana, o que me permitiu estar sempre a trabalhar, permanecer atualizado; contactei o chef Vítor Sobral, fiz estágio com o [chef] Aimé [Barroyer] e fiz uma época no Vila Joya. Recordo-me que fui dos poucos portugueses que entrou na cozinha do Dieter Koshina, no Vila Joya, para trabalhar. Passei pela bancada das carnes, onde estava o Stefan [Langmann], e pela bancada dos frios… foi um trabalho duro do ponto de vista de exigência. Foi uma coisa quase mágica, em que as coisas mudavam da noite para o dia. Para mim, é a grande escola a nível nacional. Também trabalhei no Hotel da Urgeiriça, na passagem de ano para 2000. Ganhei 40 contos! Era muito dinheiro. Quando estava quase a acabar a licenciatura, em 2008 – já estava como chef no Hotel Urgeiriça –, fui trabalhar para a Dão-Sul [hoje, Global Wines], com o objetivo de abrir a Quinta do Encontro, na Anadia, e o Paço dos Cunhas de Santar. Já havia a Quinta de Cabriz, onde encontrei o tal chef sobre o qual falei antes, que respeitei muito – ele era o chef residente e eu o chef executivo. Tive sempre um cuidado muito especial para com ele, pelo carinho que tinha com ele.

“Queremos que as pessoas venham a Viseu e sintam que estão em Viseu e em Portugal”

O Diogo Rocha já cozinhava na perspectiva de implementar o fine dining?
Já cozinhava numa perspectiva de fine dining, mas também fazia arroz de cabidela, cozido à portuguesa, robalo ao sal… Fazia tudo! Juntávamos 15 pessoas naquela mesa grande e, no final, recebia a opinião de cada um. Durante este tempo, o Celso [de Lemos] começou a entender-me melhor e eu a ele. Eu tinha na minha cabeça o que este restaurante deveria ser; e ele tinha na cabeça dele o que este restaurante deveria ser. Em 12 de abril de 2014, abrimos o restaurante. Na altura, abríamos só à sexta e ao sábado, ao jantar. Assim que anunciámos a abertura, o restaurante ficou logo cheio: 40 pessoas. Nos primeiros tempos, tinha a Inês [Beja] e uns alunos, o meu pai e a minha irmã, e a Rita [Rodrigues], que é, hoje, a minha mulher. 

No seguimento deste processo, o Mesa de Lemos contrata mais um profissional para a equipa do restaurante.
Foi o Rui Madeira, que esteve no Areias do Seixo. Foi meu empregado de mesa na Dão-Sul e veio para aqui como sommelier. Continuámos a contratar, não que sejamos hoje muitos mais, e já com o foco na cozinha que achava que fazia sentido para aqui. Experimentámos. Sei de restauração, mas também sei alguma coisa da região, porque sou daqui. Achava sempre, de forma convicta, que para vir a um sítio como este e estar a oferecer o que os outros restaurantes daqui oferecem, era mais do mesmo. Tínhamos de ser diferentes. Durante algum tempo, as pessoas tinham dúvidas, o que era natural. Como não carregámos muito na parte de custo, os custos não eram nada de extraordinário e conseguimos que a coisa ficasse no break-even. Não é por acaso, que o restaurante está aberto há 11 anos. Por outro lado, os recursos humanos são os necessários para o sucesso final e, em particular, o recurso financeiro.

“Fazemos este exercício do produto e do produtor desde sempre, porque é uma filosofia que vem com o Celso [de Lemos], que procura sempre a melhor matéria-prima, para fazer o melhor produto do mundo”

Qual é a filosofia do restaurante?
Ter o melhor produto que nós conseguimos comprar, o mais local que conseguimos comprar, o que nós conseguimos produzir. Ainda hoje gosto de dizer que a minha horta tem 25 hectares de vinha e dá vinho, e tenho outra de sete hectares, que é o olival, e dá azeite. Fazemos este exercício do produto e do produtor desde sempre, porque é uma filosofia que vem com o Celso [de Lemos], que procura sempre a melhor matéria-prima, para fazer o melhor produto do mundo.

Qual a relação do produto com a origem do mesmo?
Na ementa, só colocamos o produto e a origem. Por exemplo, “Do Caramulo, o cabrito” ou “Das Beiras, a maçã”. Ou seja, escrevemos o nome do produto e a proveniência. É só isto. Porque se for um nome muito extenso, o cliente acaba de ler a descrição do prato e já não se lembra do que leu no início. Tenho um cabrito extraordinário a um preço extraordinário, que é o preço que ele faz – não sou eu que faço o preço dele. Uma coisa que aprendi aqui é querer o melhor cabrito. A única coisa que negoceio é qualidade. O produtor é que sabe o trabalho que tem com o produto. Se eu compro a dez, tenho de pôr o custo de produção, a luz, os recursos humanos, a rentabilidade… Quem paga no final? O meu cliente. O meu cliente chega aqui e não negoceia o meu preço. Chega aqui e paga o meu preço. E eu quero ser justo. Hoje sou uma pessoa melhor, graças ao que o Celso [de Lemos] tem vindo a ensinar-me. 

Diogo Rocha evidencia a produção nacional.
Nós mostramos muito a bandeira de Portugal. Sempre quisemos trabalhar com produtos de Portugal. Por exemplo, a manteiga é dos Açores. Temos sempre muito peixe no menu. De carne, tenho sempre muito o cabrito, porque a vitela de Lafões há em pouca quantidade e só se consegue comprar a carcaça inteira, metade ou um quarto de carcaça. Não é fácil para nós mantermos a consistência no restaurante. Trabalhamos com os mesmos produtores de cabrito ou de enguia ao longo do ano, porque mantêm a mesma consistência ao longo do ano. É uma exigência nossa. No têxtil, a exigência é a mesma. Só os copos não são portugueses. A decoração é da Nini Andrade [Silva], o arquiteto foi José Carvalho Araújo, os têxteis são os nossos.

A sustentabilidade está na ordem do dia, mas não há horta. Como é posto em prática este exercício no Mesa do Lemos?
Temos uma horta que dá vinho [risos]. Nós só temos vinhos nossos, que vêm dali. Logo aí, sou o mais sustentável. Aqui bebe-se espumante que é feito ali em baixo. Foi muito desafiante no princípio. Hoje nem por isso. Com o azeite é a mesma coisa. Só consumimos azeite Quinta de Lemos. Tudo o que é cozinhado só é cozinhado com o nosso azeite virgem extra. O vinagre é nosso. Temos uma pequena olaria cá. Algumas das peças são usadas, durante o jantar, no Mesa do Lemos. Fazemos captação e tratamento de água, porque não temos rede. Temos uma ETA [estação de tratamento de água]. Temos um pequeno compostor, que o Hugo ou outro levam para onde quiserem. Fazemos a recuperação de cápsulas de café e fazemos reciclagem. Compramos local, compramos o mais biológico possível. Os aminities da casa de banho são eco-friendly. A própria captação de luz é fundamental. Durante o almoço, temos luz natural. 

“Temos sempre férias, de 15 dias, em agosto, porque é importante que passem esse período em família, com as crianças”

O que se tem feito no Mesa de Lemos, no âmbito da sustentabilidade social?
Sobre os nossos trabalhadores – gosto mais de lhes chamar assim, porque são realmente trabalhadores, não são colaboradores –, tentamos respeitar os dias de descanso. Quando isso não é possível, atribuímos uma compensação financeira. Temos sempre férias, de 15 dias, em agosto, porque é importante que passem esse período em família, com as crianças. Fechamos sempre no Natal e no fim de ano. Fechamos sempre na Páscoa. Ou seja, aquelas semanas que consideramos serem de família, tentamos que as pessoas estejam em casa. Temos ponto, porque é importante que as pessoas tenham as 48 horas de descanso semanais. Para mim, esse descanso é fundamental. Felizmente, pertencemos a um grupo que gosta muito de pessoas. Temos uma coisa extraordinária, que é a festa de Natal. É a festa da vida das pessoas! Há um espetáculo, em que as pessoas se inscrevem, ensaiam peças de teatro, vão para o palco, juntam-se… é mesmo uma festa!

Como descreve a vida de cozinheiro?
Acredito, cada vez mais, que esta vida não é de sofrimento. É uma área de muita abdicação natural, isso sim, porque eu quis ter esta profissão. Costumo fazer a comparação com os enfermeiros, que ganham menos do que um cozinheiro, comem pior do que um cozinheiro. Aqui, é obrigatório termos sempre sopa, fazer sempre um prato completo – hidratos, legumes ou salada, peixe ou carne – e haver fruta. Se a pastelaria tiver um excedente e o quiser colocar, coloca. Bebem água e café. O que a equipa come é sempre uma preocupação. Depois há a parte menos sexy, que é a parte financeira. Quando o cliente chega aqui, tem de se sentir como único, tem de se sentir especial, porque, para nós, é, de facto, especial. O meu pai também teve uma mercearia e, naquele tempo, dizia-me sempre uma coisa importante: “o difícil é o cliente passar a porta.” Aqui passa-se o mesmo. Mais ainda, as pessoas que aqui vêm, querem mesmo vir ao nosso restaurante. Portanto, quem está à frente tem de ter esta sensibilidade, este trato e atitude de vender, mas sem enganar o cliente! Uma empresa tem de ser rentável e o nosso ordenado vem daquilo que nós produzimos. Se produzirmos, somos recompensados. A grande evolução dos recursos humanos terá de passar por isto: ter uma adaptação do ordenado em função da produção. Não é só por se estar na empresa que vale dinheiro. O trabalhador existe, vale dinheiro, mas se tiver um empenho acima da média, tem de ser compensado por isso em detrimento de quem não tem uma melhor atitude. Tem de haver responsabilização. Não é só vender o vinho por vender, é saber vender bem aquele vinho e o cliente sair daqui satisfeito. No final do mês, verificamos quanto crescemos, em quanto conseguimos reduzir o custo em relação à matéria-prima ou se, pelo contrário, só aumentou dois, mas aumentou cinco ou seis no país, e ainda há dinheiro para o patrão partilhar connosco… ótimo! Sabemos que há restaurantes que são construídos por paixão, mas isto é um negócio. Não percebo que haja cozinheiros que não percebam de gestão. Ser cozinheiro é uma profissão em que é preciso ter experiência para triunfar. 

Da cozinha para a mesa, há todo um trabalho pensado, desenvolvido e concluído com criatividade, o qual é extensível ao “Menu criança”. Por que motivo o decidiu criar um alinhamento de pratos para os mais novos no Mesa de Lemos?
Acredito que a criança seja o meu cliente do futuro. E sendo meu cliente no futuro, creio que seja um dos decisores ou talvez o maior decisor em casa. Se eu tiver uma criança que gosta de vir ao meu restaurante, há uma maior probabilidade de os pais virem mais vezes ao restaurante. A questão das crianças prende-se com o facto de sermos uma empresa familiar. Eu sou uma pessoa da terra, da família, dos amigos, dos afectos. Desde sempre que recebemos as crianças. Os snacks, os três primeiros momentos do menu, são iguais para as crianças, a menos que os pais digam que não vale a pena trazermos mais e pedem logo a sopa. Ou seja, já têm ali texturas diferentes, sabores diferentes. É a educação culinária, que faz falta nas escolas e na vida. Há dois momentos da nossa vida em que não decidimos o que comemos: quando somos crianças e quando somos idosos. No primeiro, só comemos o que as escolas nos dão e as escolas só se preocupam com o preço, e tudo o que comemos é mau. Nas instituições também só se preocupam com o preço. Esta falta de educação alimentar reflete-se no dia a dia e nas escolhas na idade adulta. Por isso, para nós, as crianças são fundamentais. O menu é destinado a crianças até aos 10 anos. Depois, há crianças que, com oito anos, vão para os menus maiores e manifestam aquele deslumbramento… A criança não mente! 

Mesa de Lemos
© Fotografia: João Pedro Rato

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