bacalhau d’assinatura • chef Afonso Carvalho: “A ideia não é mudar a essência do prato regional. A ideia é enaltecer os mesmos sabores e dar uma nova apresentação”

“O mais difícil é conquistar os alunos que saem das escolas de Portugal, porque aqui não é Lisboa e os alunos acabam por ficar nas cidades das escolas de hotelaria. Mas acho que quanto mais interessantes os projetos forem, mais facilidade têm em atrair pessoas mais qualificadas

Afonso Carvalho nasceu em 1997. Natural de Coimbra, foi após o ensino obrigatório que iniciou o percurso na cozinha. Primeiro na Escola Superior de Hotelaria e Turismo do Estoril, onde fez a licenciatura em Produção Alimentar e Restauração, entre 2018 e 2021, e o mestrado em Inovação em Artes Culinárias. Na lista dos estágios, constam o Antiqvum e o Euskalduna, na cidade do Porto, o Geranium, em Copenhaga, capital da Dinamarca, e o Erva, restaurante do Corinthia Hotel Lisbon, em Lisboa. 

O regresso à “Lusa Atenas” aconteceu quando Afonso Carvalho assumiu o cargo de chef na reabertura do Passaporte, restaurante instalado no outrora edifício ocupado pelo Governo Civil de Coimbra. Um ano e meio mais tarde, rumou novamente à “Invicta”, para a abertura do boutique hotel Bonjardim 560, recentemente denominado Saboaria.

A ida para o Spatia Comporta, na aldeia de Bicas, pertencente ao concelho de Grândola, surgiu de uma oportunidade, que agarrou com total dedicação. Integrou a equipa deste refúgio em maio de 2023. Em fevereiro de 2024, iniciou um novo desafio, o Õra, o restaurante de cozinha de autor deste resort. Leia a entrevista ao chef Afonso Carvalho.

O que pesou na decisão de um jovem chef de 26 anos rumar ao Alentejo, para liderar a um restaurante de cozinha de autor?
Queria sair do Porto, por ter muito trânsito, estar sempre a chover. Vi a publicação de um ex-professor meu de Gestão de Recursos Humanos, que também é head hunter, que estava à procura de um chef executivo para a Comporta. Decidi candidatar-me e entrei em maio de 2023. Depois, porque esta zona está em desenvolvimento e eu achei que seria uma oportunidade na minha carreira. Na altura, o projeto Spatia era mais pequeno. Esta parte estava em construção. Só havia o Honesto, com uma cozinha pequena e cinco cozinheiros, uma sala de restaurante misturada com a recepção e uma carta não muito forte. Foi esse desafio que me motivou a vir, para renovar e melhorar aquele espaço, e fazer a preparação deste novo projeto. Com o Õra houve novamente uma reabertura, já que a equipa era muito inexperiente, não tinha os conhecimentos básicos de cozinha de hotel, de gestão, de carta, de stocks. Houve uma nova contratação de equipa, formação e nova carta. Foi um desafio que gostei muito e continuo a gostar.

Construir uma cozinha de raiz é um processo moroso, uma vez que implica recursos humanos, bem como a estruturação da dinâmica de um espaço a partir do zero e da criação de uma carta.
Primeiro tive de perceber a equipa que já cá estava, conhecer cada um deles, ver a forma como iriam integrar-se neste novo projeto e desenvolver a própria evolução deles. Tratam-se de pessoas humildes, com vontade de aprender. Nesse aspeto foi muito fácil. Ficou basicamente a equipa toda desde esse momento. Na altura, éramos seis, agora somos 16. Convidei o meu sub-chef, Carlos Neves, que é de Coimbra e estava no Algarve. Já está connosco há um ano e meio e foi uma grande ajuda. 

É fácil atrair as pessoas para o Alentejo, trabalharem nesta zona da região?
É uma região muito atrativa em termos de qualidade de vida. Estamos a dar boas condições de trabalho, isto é, alojamento e ajuda no transporte, e a parte salarial e de subsídio de alimentação é grande comparativamente a Lisboa, onde é muito mais difícil ter essas condições. Aqui, os hotéis fornecem alojamento, mas também percebo que, em Lisboa, os hotéis não tenham capacidade de dar alojamento aos trabalhadores. Em relação às comunidades estrangeiras, é mais fácil atrair estas pessoas para cá. O mais difícil é conquistar os alunos que saem das escolas de Portugal, porque aqui não é Lisboa e os alunos acabam por ficar nas cidades das escolas de hotelaria. Mas acho que quanto mais interessantes os projetos forem, mais facilidade têm em atrair pessoas mais qualificadas.

Quão enriquecedor é confecionar pratos típicos de um Alentejo que nada a ver com o receituário das Beiras?
Existe uma receituário português diferenciado em todas as regiões, mas depois há pontos comuns no uso das ervas aromáticas, nos temperos. Li e pesquisei aprofundadamente sobre a culinária alentejana, os pratos regionais, os produtos mais utilizados. Peguei nisso, testei e dei o meu cunho mais pessoal às receitas mais tradicionais.

A que livros e manuais recorreu para aprofundar o conhecimento nesta matéria?
Recorri a livros de Maria de Lourdes Modesto e ao livro “Cozinha Tradicional do Alentejo” [de Maria Antónia Goes]. Esta foi a maior bíblia que li sobre o Alentejo. Também tenho o livro de Manuel Fialho [“Cozinha Regional do Alentejo”]. Portanto, cabe a nós pegarmos naqueles pratos e dar o nosso cunho, mas mantendo sempre os sabores.

Quilómetro zero ou economia local? No Õra abrem-se as portas para o mundo?
É um pouco dos dois. No Õra, tendo um público internacional, ao pequeno-almoço, temos de ter produtos mais banais, não recorrentes do quilómetro zero. No entanto, em matéria de enchidos, só trabalhamos com a SEL [Salsicharia Estremocense], trabalhamos com os queijos Ortodoxo, o pão é da padaria Do Beco, em Lisboa. Na carta do restaurante, temos peixe de fornecedores locais, a carne vem de um talho de Grândola e os legumes são trazidos de uma quinta dos proprietários do Spatia[Comporta]. No verão, somos auto-sustentáveis em tomate, melancia, curgetes… Sempre que podemos, apostamos no produto local e sazonal de pequenos produtores.

Dê-nos exemplos de pratos de inspiração alentejana e outras criações, confecionados com produtos e técnicas alheios à região.
Tenho a carne de porco alentejana. Neste caso, uso lagartos de porco, com um pouco mais de gordura, que, quando é frita, fica mais crocante. Faço com batata gratin, que é frita, uma técnica diferente, para simular a batata frita, e utilizamos as amêijoas à Bulhão Pato. É um prato interpretativo. Temos a lula recheada com migas. O recheio é feito com migas de tomate e chouriço. Fazemos um molho com tinta de choco, alho assado e sésamo – lá está, o sésamo não existe na cultura alentejana, mas faz parte deste molho. Fazemos croquetes de borrego, em que usamos algumas especiarias, como o ras el hanout. Temos pastéis de massa tenra recheados com cação e amêijoas à Bulhão Pato, e a presa tradicional com as migas de tomate e espargos. Um prato mais tradicional? O ensopado de borrego servido numa terrina, o qual colocamos sobre pão tostado com piso de hortelã, açorda de carabineiro. Temos a Wagyu Kobe A5, para atrair um público mais internacional, assim como a fraldinha e os entrecotes na grelha, por exemplo. Este equilíbrio tem de haver aqui, porque estamos num hotel, onde temos a responsabilidade de agradar a todos e a capacidade de responder ao que os clientes querem, porque já aconteceu um hóspede querer apenas um peixe grelhado com legumes cozidos sem sal nem azeite. E depois há hóspedes que permanecem no hotel durante uma semana. Há ainda o bacalhau, que tenho sempre nas minhas cartas. Antes tinha um bacalhau cozinhado a baixa temperatura acompanhado por um creme de sésamo, mizu e alho assado, coberto de torresmos, cebolinho e óleo de salsa. Agora, temos uma brandade de bacalhau, cremosa, com batata, bastante cebolinho e poejo, para ficar mais fresco. Por cima, tem um puré de azeitona verde, com limão e salsa, batata frita de cabelo de anjo e cebola frita. É um prato guloso, cremoso, e tem a parte da crocância da batata e da cebola, para além da acidez e da frescura do puré de azeitona.

O peixe, em geral, é um produto muito delicado. O bacalhau também o é?
Não o considero mais delicado que os outros peixes. Há a sardinha, o pregado… É delicado no que toca ao ponto de confeção. Neste caso, cozinhamos o bacalhau previamente a baixa temperatura, colocamos no Josper, para lhe dar um sabor mais a lenha, e desfiamos. Gosto mais de cozinhar peixe do que carne. Conseguimos ser mais criativos com o peixe, fazer criações mais frescas e mais vibrantes, do que com a carne.

Que outros sabores marinhos constam na ementa do Õra?
O salmonete, que é grelhado e servido com molho de caldeirada, feito com as espinhas, e que tem um sabor tradicional muito português. Servimos com uma salada de funcho e laranja. A lula, que já tinha referido, e a secção de grelha, com uma confeção mais simples, ou seja, com os peixes escalados, assim como o arroz de peixe caldoso e cremoso, em que utilizamos essencialmente garoupa e lingueirão, a açorda de carabineiro, um produto que está muito presente na alta gastronomia, e o bacalhau. O cliente estrangeiro procura muito o peixe, sobretudo o peixe grelhado e escalado, talvez por não estar habituado a ver o peixe inteiro, que é arranjado na mesa. O bacalhau é o produto, que, não sendo português, é típico no país e eles gostam sempre de provar.

Existe o ponto de equilíbrio entre a tradição e a inovação?
É importante que não se perca a essência de um prato, pelo menos, em relação ao sabor. Eu sei que existe o estigma a respeito dos chefs que reinventam pratos, mas, aqui, a ideia não é mudar a essência do prato regional. A ideia é basicamente enaltecer os mesmos sabores e dar uma nova apresentação, introduzir mais técnicas e, na verdade, melhorar o próprio prato. Por exemplo, na carne de porco alentejana, gosto da batata frita crocante, mas há restaurantes tradicionais que servem batata frita ensopada em óleo. Neste caso, a técnica ajuda a melhorar este prato da cozinha tradicional, o que faz com que já não seja um prato tradicional, mas sim de autor.

“Trata-se de um trabalho constante, quer na criação dos pratos, quer na própria confeção. O desafio é, portanto, manter a consistência aliada à criatividade e ao bom produto, para satisfação dos clientes

Qual é a opinião do chef Afonso Carvalho sobre os pratos tradicionais confecionados com produtos que não são regionais?
Não digo que os pratos daqui sejam tradicionais, pois acho que não se pode dizer que o prato é tradicional quando não é. O único prato do Õra que é 100 por cento tradicional é o ensopado de borrego. Os restantes são interpretações minhas. Se calhar é preciso explicar isso ao cliente ou nem isso, porque há clientes que vêm aqui, gostam do prato e sentem-se felizes! Aqui, é importante o trabalho de sala, que tem de saber ler o cliente, perceber se o cliente tem ou não interesse em saber o que é servido.

Quanto tempo um chef precisa para atingir a perfeição na cozinha?
Todo! Cada dia é um dia diferente e é sempre um desafio fazer um trabalho o mais consistente possível. Mas a perfeição quase nunca existe, embora quanto mais perto estivermos [da perfeição], melhor. Trata-se de um trabalho constante, quer na criação dos pratos, quer na própria confeção. O desafio é, portanto, manter a consistência aliada à criatividade e ao bom produto, para satisfação dos clientes.

É ir! Bom apetite!

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© Fotografia: João Pedro Rato

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