O restaurante Cavalariça Comporta entrou numa nova era, mas o produto continua a ser a estrela deste espaço de bem comer, aliado à tentativa de respeitar o quilómetro zero, numa cozinha onde a mestria requer o expoente máximo do trabalho.
Nasceu em 1994, em Lisboa. Pouco tempo depois, os pais decidiram trocar a capital pelo Alentejo. Fora os quatro anos em que estudou Gestão e Produção de Cozinha, na Escola Superior de Hotelaria e Turismo do Estoril, entre 2015 e 2018, e o tempo que esteve no Il Gallo d’Ouro (Garfo de Ouro do Guia Boa Cama Boa Mesa 2025), localizado no Funchal, na ilha da Madeira, João Mónica, que ainda reservou um ano aos estudos do curso de Arquitetura, permanece na região que o acolheu na infância e onde vive, mais concretamente em Vila Nova de Santo André, cidade do município de Santiago do Cacém, a qual dista 50 quilómetros da Comporta, pertencente ao concelho de Alcácer do Sal.
Pelo Alentejo, João Mónica assumiu funções na cozinha na extinta marisqueira Cais da Estação, no restaurante Casa do Médico de São Rafael e como chef de cozinha no bar Magic Cactus, da praia da Vieirinha. Tudo no concelho de Sines. Em 2022, surgiu a oportunidade de trabalhar, lado a lado, com o chef Bruno Caseiro, no Cavalariça Comporta, restaurante instalado numa antiga cavalariça, onde entrou como sub-chef e onde impera a partilha alinhada com o ambiente descontraído deste espaço. Findos seis meses, passou para a função de chef, que exerce a solo desde o início deste ano de 2025. Leia a entrevista ao chef João Mónica.

A textura crocante dos croquetes de cachaço de porco alentejano, maionese de mostarda e louro, conquistam logo à primeira
Que ideais são trabalhados na cozinha do Cavalariça Comporta? A referência que mais uso na cozinha, a qual fui buscar ao chef Benoît [Sinthon, do Il Gallo d’Ouro] e ao chef Bruno [Caseiro], é a valorização do produto. Torna-se mais fácil cozinharmos quando temos bom produto, quando usamos bom produto local, de fornecedores mais próximos. A tentativa do quilómetro zero faz com que os ingredientes cheguem aqui mais frescos e facilita o meu trabalho.
O produto local facilita a tarefa do chef João Mónica em que sentido? Permite-me chegar a um resultado de uma forma mais fácil, embora haja o auxílio das técnicas de cozinha. Mas o bom ingrediente por si só é meio caminho andado para apresentarmos algo incrível ao cliente. Trouxe esta filosofia da [ilha da] Madeira, a qual também é passada pelo Bruno… mas fazendo de uma forma diferente. Nos últimos dois anos, fui buscar inspiração à cozinha portuguesa e tentei surpreender com isso. Um dos exemplos que posso dar é o tortelloni de ossobuco [bimis, pão frito e conserva de limão] com molho de iscas. Já há algum tempo dizia ao Bruno que queria ter iscas no menu, porque, quase todas as segundas-feiras, a Inês [Duque, gerente do Cavalariça Comporta] e eu vamos almoçar a um restaurante pequenininho em Sines, onde como, quase sempre, iscas. Mas não queria meter iscas no prato, porque, se calhar, seria difícil vender esta ideia ao cliente. Tentar surpreender através do receituário tradicional é algo que consigo fazer nos últimos dois anos.

As cenouras algarvias é uma homenagem ao verão, a par com o kimchi de funcho e as capuchinhos, que conferem frescura a este prato
A respeito da valorização do produto e do quilómetro zero, e uma vez que o Alentejo possui um património culinário muito rico, seja aqui, no litoral, seja no interior, foi pacífico o ato de reunir os fornecedores que necessita? Mantemos quase todos os fornecedores que tínhamos desde o início, mas andamos sempre à procura de coisas novas. No próximo inverno, quero utilizar cogumelos. Para isso, vou ter um fornecedor de cogumelos biológicos, de Évora, que veio cá por acaso. O facto de trabalharmos com estes fornecedores, a mensagem acaba por passar entre eles. Trabalhamos com A Cerquinha desde 2017, onde vou, por exemplo, no inverno, para saber o que a Rita [Pacheco] vai plantar para a primavera do ano seguinte e, assim, consigo criar pratos de acordo com o que vai estar disponível. Se agora tiver uma ideia para o próximo inverno, posso ir lá e perguntar se a Rita pode plantar nabiças. Esta facilidade de relações permite-nos assegurar um bom produto.
Tendo em conta a quantidade de restaurantes abertos, a carne é tão acessível quanto os hortícolas? Não. Vou dizer-lhe dois pratos de carne que temos aqui: o frango [do campo assado, com massa de pimentão caseira e limão], que temos do Talho O Romão, em Grândola, com o qual trabalhamos desde o início – este é provavelmente o best seller deste restaurante e está sempre garantido; e o porco [presa de porco alentejano, molho de leitão, laranja e alface grelhada], que vem da Laborela [concelho de Ourique] e está cá todas as semanas. Há sempre uma preocupação em comunicar com os fornecedores sobre as quantidades necessárias. Eles são os nossos maiores aliados e acho que podem usar o nosso conhecimento para melhorar o produto. Essa partilha de informações é sempre útil para os dois lados.

O ossobuco, saboroso e a desfiar lentamente como manda a cartilha, é o recheio eleito dos tortelloni
Traduz-se numa ação de consolidar a qualidade do produto. Sim. Do produto e do produto final. Por exemplo, as entregas d’ A Cerquinha são feitas, agora, no verão, à quinta-feira. Mas, no inverno, faço questão que seja feita à quarta-feira de manhã. Como segunda e terça estamos fechados, eu mesmo passo em Grândola à quarta-feira de manhã, recolho na horta e trago os produtos frescos para aqui. Se não trabalhasse com um produtor tão pequeno, acho que não haveria esta proximidade. Afinal, esta relação é de pessoas para pessoas, porque se passarmos a um cliente o que de melhor temos do nosso território, vamos ser sempre bem vistos.
Na cozinha do Cavalariça Comporta, onde a culinária tradicional tem palco a par com outros receituários, que técnicas utiliza o chef João Mónica? O facto de ter estado na ilha da Madeira com o chef Benoît, faz-me recorrer muito à manteiga, aos molhos, que vêm muito da cozinha francesa, assim como as reduções prolongadas. Mas acho que, no final de contas, vai ser a cozinha portuguesa a brilhar. A minha maior inspiração, vai ser sempre a minha avó. Para mim, é a melhor cozinheira do mundo! Dando o exemplo do torricado, que comia em casa da minha avó, foi, agora, transformado para esta versão mais moderna, mas o sabor faz-me lembrar os momentos passados há 20 anos, na quinta dos meus avós, com o tomate que o meu avô apanhava, para a minha avó cozinhar… Portanto, são os sabores portugueses que me levam a desenvolver o menu da Cavalariça. No entanto, quando há elementos de outros países dentro da equipa da cozinha, é natural que passemos a receber influências de outras cozinhas. Neste momento, 90% da equipa de cozinha é nepalesa. Já estou a pensar em fazer um caril para o menu.
Sendo o bacalhau um produto muito usado por cá, qual é a importância deste produto na cozinha da avó? Tenho a memória de, ao domingo, a minha avó grelhar o lombo de bacalhau, com muito alho e o pão ribatejano cortado e grelhado, onde esfregava o alho. Fazíamos uma salada de tomate e pimentos. Eu cortava o pão, colocava o tomate e desfiava o bacalhau, para pôr por cima. O prato que vou servir é uma inspiração desse bacalhau. Na base, tem um creme de tomate com misu – lá está, uma técnica asiática influenciada pelo Bruno; tem óleo de pimento verde, bacalhau confitado e fumado, uma salada de agrião, pickle de chalota e um crocante de pão.
De volta aos recursos humanos no restaurante, qual é a análise que faz a respeito desta questão no Alentejo? Neste momento, não é só no Alentejo. Com o Covid, muitas pessoas ficaram sem trabalho e tiveram de encontrar uma solução no âmbito da área de trabalho, e passaram a valorizar mais a qualidade de vida. A restauração sofreu muito com isso. Estamos numa fase de reestruturação, em que estamos a dar mais valor à qualidade de vida e a tentar que as nossas equipas também consigam ter esse tempo disponível. Quando entrei no Cavalariça, enquanto chef, uma das coisas que implementei foi o horário semanal de quatro dias. Fazem quatro dias repartidos e têm três dias de folga, porque, apesar de gostarmos do que fazemos, a nossa vida não é só isto. Defendo que, ao termos uma vida social saudável, somos muito melhores aqui dentro. Mesmo assim, não está fácil arranjar recursos humanos. O facto de ser na Comporta, não é fácil, por não haver casas com preços acessíveis para as pessoas, mas temos cá uma casa para o staff. Eu faço, todos os dias, 50 quilómetros para trabalhar.

“O meu papel aqui não incide apenas em seguir o que é a tradição, a cozinha daqui, da zona, mas no que se tem vindo a fazer no Cavalariça. Quando estou a pensar num prato, não penso só na cozinha do João, penso também no que fazemos aqui“
chef joão mónica
No Cavalariça Comporta, a inspiração na gastronomia alentejana pende mais para o litoral ou para o interior da região? Sou do Alentejo litoral, onde a cultura alentejana está um bocadinho à parte. [Vila Nova de] Santo André, onde resido, é uma cidade recente, que cresceu com o regresso das pessoas que estiveram nas ex-colónias portuguesas. Portanto, lá a herança alentejana não está tão vincada, o que acaba por ser muito interessante, porque há restaurantes com muamba de galinha, cachupa… Nunca tinha pensado muito neste assunto. No Cavalariça, a criação de pratos não se prende com a cozinha alentejana, mas sim com o produto alentejano. Penso no ingrediente e na maneira como hei de criar um prato. Agora, estou a pensar nos figos. É uma das minhas frutas preferidas e quero criar uma sobremesa com isso. Depois, recorro aos livros de cozinha portugueses e internacionais. No final, é experimentar e testar até acertar.
Criatividade e contemporaneidade são ingredientes servidos neste restaurante. Enquanto chef, o que tem de fazer para enaltecer o produto e o prato em que se inspirou? O meu papel aqui não incide apenas em seguir o que é a tradição, a cozinha daqui, da zona, mas no que se tem vindo a fazer no Cavalariça. Quando estou a pensar num prato, não penso só na cozinha do João, penso também no que fazemos aqui, como os fumados, técnica com a qual já trabalhamos há muito tempo. Há um senhor desta zona que nos vem trazer a lenha que utilizamos para os fumados, como o bacalhau. Acho que seguir a linha de criatividade e de sabores que nos trouxe até hoje, e que enche o restaurante todas as noites, é importante.
Mas há aqui uma nova era, a era do chef João Mónica. Já se pode dizer que há uma cozinha com a sua assinatura? O facto de ter acompanhado o Bruno durante três anos leva-me a pensar que foi com ele que muita da minha identidade culinária foi desenvolvida. Portanto, quero acreditar que aquilo que ponho na mesa agora vem muito dele, daí a escolha de dar continuidade ao conceito da Cavalariça. Não vamos romper com tudo. Vamos continuar com novas ideias. No entanto, eu valorizo muito os vegetais. Por isso, é provável que venhamos a ter mais pratos com vegetais. Durante toda a minha carreira trabalhei em restaurantes de peixe e marisco. Portanto, se calhar o Cavalariça poderá ter mais esta vertente. Depois não sabemos que futuro nos reserva. Posso vir a ter um cozinheiro que me vai ‘puxar’ para outra vertente da cozinha. Acho que o que vemos fora daqui também nos pode inspirar.
As viagens são muito importantes para um cozinheiro. Muito! Em termos de inspiração, em termos de novos sabores. Cheguei a estar três meses na Ásia, o que me fez olhar para a comida de outra maneira e valorizar o produto fresco. Eles apanham o marisco e cozinham-no logo ali, à nossa frente, até mesmo nos mercados de rua, o que é emocionante. Quanto mais viajamos, mais criatividade e mais abertura temos, para fazer coisas diferentes.

Panna cotta com granita de chá preto e pickle de pêssego e pêssego em calda
Como encara o trabalho que tem vindo a fazer, bem como dos seus pares, com a mesma idade? Há uma idade certa para atingir a perfeição ou ainda há um trabalho árduo pela frente, até chegar a esse ponto? Eu não acredito na perfeição. Acho que comecei a sentir-me muito mais realizado quando descobri que a perfeição não existe. Há sempre falhas e o facto de falharmos faz-nos evoluir e aprender coisas novas. Só para lhe dar um exemplo, a panna cotta [com granita de chá preto e pickle de pêssego e pêssego em calda] que fiz, só dois meses depois é que descobri onde estava a falha. Nunca vou criar uma coisa perfeita logo no primeiro dia. Há muito trabalho e podemos estar próximos na perfeição, mas a perfeição é uma palavra que está fora do meu vocabulário. Em relação ao meu percurso, e além do trabalho que está por trás, houve as escolhas certas e há sorte, porque é preciso estar no sítio certo e na hora certa nos sítios, para surgirem as oportunidades.
É ir! Bom apetite!
O bacalhau para além das 1001 receitas
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