bacalhau d’assinatura • chef João Narigueta: “Aqui posso confecionar pratos que comia na minha infância, para que outras pessoas os possam comer”

João Narigueta denota uma enorme apetência para as artes, mas a disciplina de Geometria Descritiva, no 12.º ano, trocou-lhe as voltas, pesando na decisão de tirar o curso de Cozinha e Pastelaria no Centro de Formação de Évora, em 2013. Um ano depois, fez o estágio no L’AND Vineyards, a unidade de cinco estrelas localizada em Montemor-o-Novo, com o chef Miguel Laffan.

A permanência estendeu-se até ao verão, melhor ainda, até 2019, regressando no início de 2020, já com o chef Nuno Amaral na cozinha do restaurante do referido resort do Alentejo. Despediu-se em junho desse mesmo ano, para abrir o Híbrido, situado na cidade-museu, com Filipe Rebocho, outro nome recente no universo da cozinha criativa. Um ano e meio depois, ficou a solo com a equipa do referido espaço de restauração.

No verão de 2023, chegou a vez de dar mostras quanto vale na gastronomia tradicional alentejana. Assim acontece no Poda, em Montemor-o-Novo, onde o valor da equipa é partilhada por Miguel Dominguinhos, fundador e escanção do restaurante, sendo o mérito da cozinheira alentejana Alexandra Matado, braço-direito do chef João Narigueta, enfatizado por ambos.

Como sempre fui uma pessoa muito criativa, sentia-me ali preso, porque tinha alguém superior a mim a ditar-me o que tinha de fazer. Mas como fui para o L’AND Vineyards sem saber cozinhar, aprendi tudo lá e aproveitava para estudar – ainda hoje estudo – técnicas novas. Sempre fui muito curioso acerca de como se fazem as coisas”

Quão importante é a estética no trabalho do chef João Narigueta, tendo em conta a apetência e o gosto que demonstra em relação às artes? Nós vamos evoluindo. Sempre estive muito ligado ao surrealismo. No L’AND Vineyards, já a estética era muito importante para o chef Miguel Laffan, que me deu as bases que me ajudaram a evoluir ao longo da minha carreira. Enquanto lá estive, segui as regras do chef, com uma base de cozinha francesa, muito estilizada, muito certinha. Mas quando sai, optei por uma cozinha mais orgânica, enaltecendo a essência do produto. É, no fundo, o que faço no Híbrido, aberto desde 26 de outubro de 2020.

Tendo em conta a conjuntura vivida em 2020, o que pesou na decisão de abrir o Híbrido, em Évora? Estava um pouco cansado do que estava a fazer no L’AND Vineyards, da típica cozinha francesa. Como sempre fui uma pessoa muito criativa, sentia-me ali preso, porque tinha alguém superior a mim a ditar-me o que tinha de fazer. Mas como fui para o L’AND Vineyards sem saber cozinhar, aprendi tudo lá e aproveitava para estudar – ainda hoje estudo – técnicas novas. Sempre fui muito curioso acerca de como se fazem as coisas. Tinha outro colega, o Filipe Rebocho, que tinha saído, dois anos antes, do L’AND Vineyards para o Esporão, com quem me encontrei numa tarde em Évora, para bebermos uma cerveja e falarmos. Lançou-me o desafio de abrir um espaço em Évora. Nem foi preciso procurar. Dois ou três dias depois, o Filipe [Rebocho] ía a passar à porta onde está atualmente o Híbrido e ligou-me a dizer que o espaço estava disponível. O que tínhamos idealizado inicialmente não tem a ver com o Híbrido de hoje, mas decidimos avançar. Foi um bocadinho aventureiro demais, tendo em conta que abrimos a meio de uma pandemia, mas decidimos seguir em frente. Pensámos que fosse algo passageiro, o que não foi. Fomos persistentes em querer abrir um espaço sem que houvesse alguém a ditar regras.

Queria muito ter total liberdade para criar. No último ano no L’AND Vineyards e no ano em que voltei, sentia, por vezes, falhas de comunicação da minha parte para com o chef Miguel Laffan ou o chef Nuno Amaral. Comecei a fazer alguns vinagres e outros testes de fermentação, porque queria aproveitar tudo ao máximo – tive sempre um grande problema com os excedentes que existiam na cozinha, mas senti, tanto da primeira, como da segunda vez, algumas reticências em prosseguir este caminho e até mesmo pelo facto de não provarem o que estava a fazer. Portanto, quando saio e vou para o Híbrido, onde não tenho ninguém a dizer-me o que tenho de fazer, começámos precisamente a implementar o desperdício zero… ou quase zero. Foi aí que nasceu a base do Híbrido e que permanece ainda hoje. Isso foi fundamental no restaurante. Aliás, houve dois tópicos fortes no Híbrido: a sustentabilidade ambiental – numa fase inicial não, mas, no percurso que se fez, em trabalhar apenas um conjunto de matéria-primas, em que mais de 90 por cento do produto é de Montemor[-o-Novo] – e desperdício quase zero. É um desperdício quase residual. Quando o Filipe [Rebocho] sai, cerca de um ano e meio depois, acabei por seguir o mesmo caminho, virando-me para os produtores de Montemor-o-Novo, ou seja, no início trabalhávamos com produtores entre Montemor e Évora, mas, a partir do momento em que o Filipe [Rebocho] sai, foco-me nos produtores de Montemor. Neste momento, tenho 16 fornecedores daqui, para Poda e para o Híbrido.

O produto é o factor mais preponderante para os dois restaurantes. É o mais importante. As duas bases do Híbrido são constituídas pela parte ambiental, que pressupõe o produto de excelência, e pela composição histórica que existe no Híbrido. O facto de ter trabalhado numa pesquisa intensiva, de querer saber o que se comia antigamente, quais as técnicas usadas antigamente, os produtos utilizados antigamente.

No meu caso e no do Filipe [Rebocho], ambos com uma carreira curta e passada em Portugal, pensámos por que razão havíamos de recorrer a inspirações em países sul-americanos ou asiáticos, quando temos tanto para explorar aqui? A partir daí, começamos a procurar a essência junto das pessoas mais velhas, a falar com os nossos avós”

Essa viagem histórica remete-nos até que época? Conseguimos recuar até a “O Livro de Cozinha da Infanta Dona Maria”, do século XV, e ao livro de Domingos Rodrigues, “Arte de Cozinha”, do século XVII, e ao de Lucas Rigaud, do século XVIII. Entretanto, contactei a Morbase, um grupo de estudos de Montemor-o-Novo, que detém um suporte de contexto medieval, para tentar perceber, com este grupo de historiadores e arqueólogos, o que se comia há mais de 500 anos, na região, perceber que técnicas eram utilizadas. Comecei a pesquisar outros livros, receituários internacionais e outras formas de confeção. Descobri algumas receitas de pratos à portuguesa, em livros franceses, holandeses, italianos… O Virgílio Nogueiro Gomes está a fazer um trabalho fantástico e está ao acesso de qualquer pessoa. A partir daí, foi conjugar sabores e adaptá-los para os dias de hoje. No meu caso e no do Filipe [Rebocho], ambos com uma carreira curta e passada em Portugal, pensámos por que razão havíamos de recorrer a inspirações em países sul-americanos ou asiáticos, quando temos tanto para explorar aqui? A partir daí, começamos a procurar a essência junto das pessoas mais velhas, a falar com os nossos avós. O Filipe [Rebocho] vivia em São Miguel de Machede, onde tentava perceber o que se comia antigamente, na região. Também temos a sorte de termos vivido no campo e de termos contacto direto com o campo. Com os meus avós, tentei perceber o que comiam na infância, qual a alimentação que tinham, a regularidade com que se alimentavam. Fomos recolhendo informação e guardámos, com a premissa de seguir isso no restaurante Híbrido, baseada em sabores históricos, mas com uma componente experimental… híbrida.

Nessas conversas com os seus avós, conseguiu saber que produtos eram mais usados outrora e cultivados, e que estiveram na iminência de desaparecer? Na verdade, o que procurei inicialmente com os produtos daqui, de Montemor-o-Novo, foi exatamente isso, procurar produtos que caíram em desuso, receitas que desapareceram. O facto de ter vivido no Escoural, terra dos meus avós, obrigou-me a olhar para a cozinha de outra forma. Havia uma grande falha sobre o que se dizia da cozinha desta região, porque tentava-se vender a carne de porco com migas de alguidar, a sopa de tomate e pouco mais. Mas quando comecei esse trabalho de pesquisa e de procura intensa no Híbrido, vimos que o tomate está na nossa história há mais de 200 anos. Quão tradicional é, afinal, uma sopa de tomate? Comparado com uma sopa de beldroegas, que é uma erva silvestre daqui e que aí, sim, é se calhar um prato que já se fazia há 500, 600 anos. Quando começamos a procurar a origem do produto, descobrimos muitos mais – e que, para mim são habituais –, como é caso das catacuzes, dos cardos, dos espargos silvestres, das amoras silvestres, da vagem do feijão fradinho, do chícharo, do melão-marmelinho, que eu comia em miúdo. Era plantado pelo meu avô e tinha um sabor ligeiramente salgado. Desde que comecei a trabalhar com estes produtores, senti que tenho a felicidade de viver nesta região, de partilhar estas memórias de infância. Aos poucos, fui descobrindo que alguns deste produtos iam existindo em algumas hortas caseiras, mas que os produtores não conseguiam escoar no mercado. Por isso, tentei que conseguissem plantar mais, para vender aos restaurantes. Felizmente, hoje consigo ter estes produtos, mesmo o melão-marmelinho. Dos 16 produtores com os quais trabalho em Montemor-o-Novo, 10 são biólogos ou têm uma ligação a alguém que é biólogo. Havendo esta parte científica por trás, ajuda-me a descobrir novos produtos. Há ainda outra erva, a azeda-dos-namorados, com formato de espada e que sabe a maçã verde. É fantástico utilizar estas plantas, como a saramago, que estão disponíveis no campo e toda a gente se esqueceu delas, porque não estão no supermercado. Há produtos aos quais ninguém dava nada há 20 ou 30 anos, como o gengibre. Hoje é muito comum comprar, ao contrário do que aconteceu com estas plantas selvagens, que deixaram de ser usadas na cozinha. 

Este trabalho realizado com os produtores de Montemor-o-Novo também foi transposto para o Poda. Podemos dizer que aqui faz uma cozinha alentejana mais típica? Quando abrimos o Poda, num registo de cozinha portuguesa, eu, como chef de cozinha, vou ser mais tendencioso e vou puxar mais pela cozinha alentejana do que outra coisa. Mas, na verdade, aqui posso confecionar pratos que comia na minha infância, para que outras pessoas os possam comer. Grande parte desses pratos são banais, como a sopa de beldroegas, que qualquer alentejano sabe o que é, mas, muitas pessoas não sabem o que são. As beldroegas são altamente nutritivas e é fantástico poder utilizar, na nossa alimentação, uma planta que cresce em abundância.

Muitos desses pratos, confecionados no Poda, são memórias trazidas de casa dos avós do chef. Como as batatas de borrifó, que são daqui do Alentejo, as migas gatas, um ícone da casa, ou o coelho à São Cristóvão. Vamos entrar com as fatias azedas, uma sopa que a minha avó fazia. É um caldo de alho refogado no vinho da carne, ao qual se junta louro. Antes do alho começar a ficar amarelado, antes mesmo de começar a torrar, juntava-se água, sal, vinagre, deixava-se levantar fervura e adicionava-se os ovos batidos no caldo. Finalizava-se com vinagre, daí chamar-se fatias azedas, também por causa do aproveitamento do pão, que enchia o prato, em cima do qual se regava com o caldo. Comia-se juntamente com o resto dos enchidos e alguma carne frita. Isso é algo que comi centenas de vezes. 

Foi fácil distanciar-se do que fazia no Híbrido? Numa fase inicial, foi difícil trabalhar de uma forma totalmente diferente comparativamente com o Híbrido. Quando começámos a fazer testes aqui, no restaurante, chegava de manhã e fazia um ensopado de borrego. Baseava-me no registo que aprendi no L’AND [Vineyards]: marcar bem os legumes e a carne. Um processo muito técnico e rigoroso. Quando chegava ao final, não sabia igual ao que comia antes. Simplesmente, comecei a fazer o ensopado [de borrego] a partir do zero. Fui ter com a minha mãe, para saber como fazia o ensopado [de borrego] e aprimorei algumas coisas. Quando repeti aqui todo o processo, coloquei tudo no tacho ao mesmo tempo e tem de estar bem marinado, porque é assim que sempre se fez. Temos o cação frito na ementa do Poda, que era feito pela minha mãe e pela minha tia, mas o que as pessoas têm em mente é o cação panado e frito. Na verdade, não comia assim. Por vezes, panavam em farinha e fritavam, mas, na maioria das vezes, quando comia em casa da minha tia, o cação era cortado aos cubos, temperado com massa de pimentão, como se faz a carne de alguidar, e frito em banha, sem farinha. O cação ficava confitado e absorvia mais a massa de pimentão. E comia sempre com migas de couve. Esse prato também está aqui. Mas não fui buscar apenas pratos da minha tia e da minha avó. A minha mãe é de Alter do Chão. Portanto, durante grande parte da minha infância comi arroz de Alter [do Chão] feito com açafroa. Era o arroz amarelo, como lhe chamávamos, feito para acompanhar, por norma, com borrego. 

De volta às migas gatas… Existem várias formas de as fazer no Alentejo, depende das famílias. Basicamente, é o aproveitamento do pão. No caso da minha tia, fazia sempre as migas gatas no dia a seguir à açorda de bacalhau ou de cavala, o que tivesse. Do caldo que sobrava, no dia seguinte, fazia a tal açorda, em que juntava as lascas de peixe do dia anterior e muito vinagre. Se houvesse bacalhau no dia a seguir, comia-se com bacalhau. Houve dois senhores que disseram que as migas gatas não eram feitas assim, então decidi perceber que outras variáveis existem destas migas. Em Portalegre, por exemplo, as migas gatas são basicamente iguais, mas, em vez do aproveitamento do caldo do peixe, são feitas com o aproveitamento do caldo da carne e fazia-se com bastante vinagre. Em outras regiões não são feitas com carne, mas sim com poejo, alho, pão, água e vinagre. Sem proteína. Aqui, fizemos uma versão em que todas as migas gatas são feitas com bacalhau. No inverno, grelhamos o bacalhau na brasa e deixamos marinar em azeite; no verão, cozemos o bacalhau e servimos com uma salada de pimentos. As migas gatas são feitas com qualquer parte do bacalhau. Afinal, há que ter em conta o desperdício zero.

E há outro prato de bacalhau no Poda. Um outro prato é a sargalheta de bacalhau, que é uma mistura entre caldeirada, tomatada… É feito com enchidos, que, depois de fritos, são retirados, deixando ficar apenas o pingo do toucinho, da carne, no qual se refoga cebola, alho, louro e pimento. O pimento é cortado em pedaços grandes, tal como fazia a minha avó, que colocava na borda do prato, para não o comer – dizia que era indigesto. Depois do refogado estar no ponto, a minha avó juntava tomate toscamente cortado e deixava levantar fervura. Adicionava batata, bagos de arroz e ovo escalfado. Por cima, colocava bacalhau ou cavala curada em sal, ou carapaus curados em sal, e finalizava com coentros. Os enchidos eram servidos à parte. A sargalheta varia de região por região. Em Portel não tem peixe, assim como em Évora. Ou seja, não há um certo e um errado. Tem de ser bom, ponto! Outro prato que tivemos no inverno foi a feijoada de bacalhau, porque gosto muito de feijoada de sames de bacalhau, mas é difícil colocar aqui os sames. O meu avô, da parte da minha mãe – o meu avô era de Évora e a minha avó da Sertã –, era guarda-rios e viveu em Ponte de Sôr e Alter do Chão, fazia muitos serviços em Vila Viçosa, no Redondo, etc. Lembro-me de me contar, muitas vezes, que comia uma feijoada de bacalhau, com feijão branco e poejo na época da Quaresma – não sabia precisar se era em Vila Viçosa ou se era no Redondo. Mais tarde, ao falar com o chef Carlos Galhardas, ele estava em Vila Viçosa e, numa biblioteca, descobriu que havia uma receita de bacalhau com feijão branco e poejo. Pensei logo: ‘por que não fazer o mesmo?’ Fiz e resultou num best seller. Mas também já tivemos pataniscas, pastéis de bacalhau…

De onde vem o arroz de forno com pato a acerejado? Quando aparecia de surpresa em casa dos meus avós e não havia nada para o neto comer, o meu avô ía à capoeira e escolhia um pato ou uma galinha, ou um frango. O pato era cozido com uma cabeça de alho, cebola e enchidos. Depois, era desfiado e ia ao forno, ou seja, era acerejado. Era a designação que se dava à carne de aves que vai ao forno. Ia ao forno com arroz e os enchidos. Aqui, este prato é feito com pato ou galinha.

No âmbito da recuperação de receitas que o chef João Narigueta fez no Poda, podemos referir a enxovalhada. A enxovalhada começa no Híbrido, porque, não sendo pasteleiro, uma das falhas que acabava por ter no Híbrido era sentir a necessidade de não inventar muito. Por isso, fazia a enxovalhada com massa mãe, mas não seguia a receita original, porque a original inclui banha e, no Híbrido, tenho clientes que não comem carne e têm várias outras restrições. Portando, comecei a fazer com azeite e manteiga. Quando abrimos o Poda, pensei em colocar aqui a enxovalhada. Contudo, no Híbrido são 14 lugares e só abrimos ao jantar; no Poda abrimos de quarta-feira a domingo, ao almoço e ao jantar, então já era difícil fazer enxovalhada. Neste caso, envolvemos a Dona Queijada, uma pastelaria daqui, de Montemor [-o-Novo], que faz a melhor enxovalhada que existe. Não é melhor que a minha, mas é diferente. É um bolo que quase desapareceu, até mesmo em Montemor-o-Novo, e, no Poda, é a sobremesa com mais saída. Temos de ter sempre enxovalhada, porque, quando vêm, as pessoas pedem a enxovalhada, porque é realmente diferente. A queijada de Montemor também é algo que gostaria de desenvolver, porque, até agora, não tenho uma que relembrasse a minha infância. Mas, quem sabe, no futuro, quando tiver tempo, dedico-me à pastelaria e recuperar o sabor genuíno da queijada.

Falámos de criatividade, pesquisa, produtores, cozinha híbrida e de cozinha regional, que o chef João Narigueta foi beber às memórias de infância… Lembrei-me das vagens de feijão fradinho, que também são conhecidas por corninhos, porque a ponta enrola. No ano passado, tivemos uma grande quantidade de feijão fradinho. Por isso, tivemos na carta a sopa de corninhos ou de feijão de molhinho. Na verdade, é uma sopa de tomate com a vagem deste feijão. Tivemos aqui um cliente com 60 anos. Nasceu em Beja e foi estudar para Lisboa, e nunca mais voltou. O senhor estava sentado na mesa ao lado desta e começou a chorar, porque se lembrou da mãe e da avó a cozinharem este prato. Acho isso muito importante, porque queremos transmitir a alguém da faixa etária dos 18, 20 anos, que, se calhar, vai comer algo que é apenas bom e, possivelmente, estamos a criar uma memória futura, mas para alguém que, em outros tempos, comeu e deixou de comer durante muito tempo, voltar a comer despertou a lembrança de outro alguém que lhe era muito querido. É muito gratificante.

A questão das memórias associadas ao que as nossas avós cozinhavam fazem parte do passado. Hoje, é tudo diferente. Mudou tudo e temos de aceitar. Faz parte da evolução. Tantas vezes digo que a gastronomia é mutável e a sociedade também. A verdade é que as crianças não têm a facilidade de acesso a estes produtos que tive e algumas crianças daqui, do interior, se calhar ainda vão tendo. Por isso, é importante que haja restaurantes como o Poda ou o Páteo Real [em Alter do Chão], que valorizam o que é a cozinha tradicional e não se focam apenas em confecionar algo bem feito. Mais do que isso. É trazer as memórias para a mesa. Este tipo de restaurante diferencia-se de uma boa tasca, exatamente porque contamos a origem das coisas às pessoas. É quase um museu vivo da gastronomia. Este tipo de restaurante é uma forma de mostrar uma realidade que já não existe. 

Foi isso que o fez tornar-se cozinheiro? No meu caso, foi sem querer. Em grande parte dos casos, é sem querer. Outros casos há em que foi por necessidade. Mas foi uma profissão que ganhou importância nos últimos anos e acho que se está a valorizar um bocadinho demais. Afinal, não deixa de ser só comida. Há a questão do cozinheiro que quer aprender mais e mais, e há o cozinheiro que procura trabalho, que gosta de cozinhar e segue a profissão, como outra qualquer. O que distingue mais o meu trabalho, que outros colegas também o fazem, é a questão da curiosidade e da criatividade, e do empenho que é necessário, para que consiga ter os produtos que consigo ter no Híbrido e no Poda, ou que o Rodrigo Castelo tem no Ó Balcão, ou o Carlos Teixeira, no Esporão. Dá muito trabalho. Falar e convencer os fornecedores a trabalhar diretamente connosco é o que bloqueia automaticamente alguns colegas da profissão, porque não querem ter esse trabalho. É legítimo. Pessoalmente, é muito mais gratificante este envolvimento direto com produtores. Há semanas que não toco numa faca, porque estou na horta mais a falar com as pessoas e a orientar as coisas, do que propriamente a cozinhar.

O bacalhau para além das 1001 receitas

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© Fotografia: João Pedro Rato

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