A celebração pantagruélica do chef Rui Paula / Restaurante Boa Nova

O mar e a terra convergem numa apoteose gastronómica e criativa servida em harmonia com uma garrafeira digna dos deuses de produtores nacionais e além fronteiras, à mesa da célebre Casa de Chá da Boa Nova.

A casa. Incrustada sobre as rochas e de olhos postos no Atlântico, a Casa de Chá da Boa Nova, em Leça da Palmeira, Matosinhos, marcou o início de um imenso percurso pela arquitetura por parte de um dos incontornáveis nomes da disciplina em questão, Álvaro Siza Vieira – na altura era discípulo de Fernando Távora, o arquiteto que tinha ganho o concurso organizado pela Câmara Municipal de então. Foi 1958 o ano da versão final do projeto e 1963 o da conclusão da construção de mui emblemático edifício, que é património da arquitetura moderna, erigido à beira-mar que, em 2011, recebeu a classificação de Monumento Nacional e, em 2014, submetido a uma nova requalificação sob a orientação de Álvaro Siza Vieira cuja carreira foi consagrada com o prémio Pritzker, em 1992.

No interior. O mobiliário disposto foi reproduzido de acordo com os desenhos originais assinados também por Álvaro Siza Vieira, respeitando quer as linhas, quer os materiais, com o intuito de, ao mesmo tempo, devolver a singularidade e a história à Casa de Chá da Boa Nova cuja concessão está, por 20 anos, nas mãos de Rui Paulo, chef portuense que, depois do DOC, no Douro, e do DOP, no centro histórico da Invicta, reabriu as portas do, agora, mui respeitado monumento nacional como Restaurante Boa Nova.

A sala. Ampla, cândida e demarcada por detalhes que nos remetem para a glamourosa arquitetura moderna dos idos anos 1950’, 1960’, a sala é rasgada, de um lado ao outro, por uma varanda envidraçada, aberta para o mar, e complementada por uma outra, de janelas em forma da retângulo, ora na vertical, ora na horizontal, viradas para o mar. E é do mar que a cozinha do novo restaurante de Rui Paula obtém o peixe e o marisco, ingredientes que se traduzem no prato forte deste spot gastronómicos e arquitetónicos localizado a norte do país. Afinal, “nós estamos rodeados pelo mar, por isso damos-lhe prioridade na cozinha, além de que queremos enaltecer o que temos de melhor no que toca ao peixe e ao marisco”, afirmou o chef em conversa, e “procuramos trabalhar o mar, para mostrar as nossas receitas”.

A carta. O nome dos menus de degustação fazem jus ao alinhamento do chef autodidata cuja paixão pela cozinha cedo o conquistou. Atlântico é o primeiro da lista, como se tratasse de uma ode ao que o mar nos dá, seguido Do Mar e da Terra, uma combinação entre os produtos de ambos, do menu Boa Nova, mais curto e composto por pratos da carta – renovada há cerca de três semanas, para dar as boas vindas à primavera –, apresentando sempre duas opções para a entrada, o peixe, a carne e a sobremesa, e dos clássicos no menu à la carte“acho que as memórias devem estar sempre presentes”, justificou.

As boas vindas do chef podem ser degustadas na sala de estar mais intimista do restaurante

As boas vindas. O Porto tónico dá lugar às boas vindas na primeira sala com vista para o mar e na companhia de um coral ornamentado pelos macarons de feijoada de choco e sementes de sésamo, o ceviche de carabineiro, o mexilhão com molho marinheiro em folha de ostra, a sanduíche feita a partir de pele de bacalhau crocante com bacalhau espiritual e o cone com crème frech e ovas de lavagante. Quatro iguarias que antecederam o desfile pantagruélico que se fez adivinhar ou cada um dos menus de degustação não fossem compostos por oito pratos.

O polvo na rocha e salada de polvo como sempre se fez

Entre uma mão cheia de diferentes pães para escolher e provar com as manteigas – de manjericão, a tradicional e a de noz pecan –, Carlos Monteiro, o escanção, apresenta os vinhos eleitos para a harmonização dos menus de degustação Atlântico e Do Mar e da Terra, os quais iremos apresentar em separado. E, apesar de serem dois menus, nem mesmo as saudações do chef se repetiram à mesa elevando, assim, a criatividade de Rui Paula na cozinha.

A representação da terra com o chíxaro e o tomate

Saudações do chef. Para acicatar o gosto, o polvo na rocha e salada de polvo como sempre se fez deram início do repasto à mesa, comprovando os sabores de uma verdadeira salada de polvo e, por outro lado, o chíxaro e o tomate representaram a terra com uma acidez subtil que conquistou o palato à primeira.

A calçada portuguesa pensada ao detalhe pelo chef

Menu Atlântico. Agora sim, mergulhemos no imenso mar que banha a costa portuguesa, com a calçada portuguesa, a entrada da autoria de Rui Paula composta por um carpaccio feito a partir de vieira e aipo, com legumes baby e vieira crocante – ambos combinaram muito bem, graças ao sabor picante e ligeiramente ácido do aipo.

Carabineiro com três texturas de ervilha

O carabineiro com três texturas de ervilha, ovo de codorniz e ar de dashi, o caldo da cozinha japonesa que agitou, no bom sentido, a combinação dos sabores no prato.

Por sua vez, Carlos Monteiro escolheu o Delamotte Blanc de Blancs, um champanhe feito a partir da casta Chardonnay.

O robalo no seu habitat

Os aromas do mar intensificaram-se com o robalo no seu habitat, acompanhado com bivalves, algas e sasifi, um legume que é uma raiz rica em açúcares que deu um sabor especial ao prato.

Depois houve o melhor prato: Pescada de anzol com plâncton e perceves, a combinação perfeita no seu todo à mesa.

De Baco, e para ligar – e muito bem – com os dois pratos, foi eleito o Soalheiro Alvarinho Granit branco 2015, um vinho de Monção e Melgaço, sub-região dos Vinhos Verdes.

O prato de bacalhau reflete criatividade da cozinha do Restautante Boa Nova

Ode à criatividade com o prato de bacalhau, a sua bochecha e língua, e uma feijoada de samos (o bucho deste peixe abundante dos mar do norte) “de comer e chorar por mais”.

A lula reforça, uma vez mais, a paixão de Rui Paula pela representação no prato sem, com isso, alterar o verdadeiro sabor do produto

O prato que se seguiu foi o arroz de lulas cuja apresentação comprova, uma vez mais, a criatividade de Rui Paula, assim como o sabor genuíno dos produtos que utiliza na sua cozinha – “e sem nunca perder a nossa identidade”, acrescentou o chef em conversa –, tendo a lula sido recheada com estufado de lula, molho bordalês e acompanhada com arroz estufado.

Do extensa garrafeira do restaurante, eis que chegou à mesa o La Forêt Bourgogne Pinot Noir 2013, um vinho da casa francesa Joseph Drouhin, uma proposta que casou bem com ambos os pratos.

A seleção de queijos portugueses – comum aos dois menus de degustação aqui referidos – é o prato que se segue, comprovando o prestígio atribuído, uma vez mais, aos produtos portugueses numa cozinha que denota um trabalho feito com o rigor e a dedicação que são reconhecidos ao chef Rui Paula. No carrinho estão os Queijo da Serra da Estrela , o de Azeitão, o de Évora, o de ovelha, o de vaca da Ilha de São Jorge, o côvo e o de cabra picante, apresentados na companhia de doce de frutos vermelhos e do guloso doce de marmelo, e pão.

Quase no fim do repasto, eis que chegou a pré-sobremesa, um convite ao doce pecado ostentado por uma maçã, uma laranja e frutos vermelhos, e cada peça deve ser degustada sem trincar, para que o recheio se espalhe pela boca.

A refrescante sobremesa feita com cítricos e o ivoire

Para encerrar o menu Atlântico – na companhia de um Monte da Ravasqueira LH 2013 –, vieram os cítricos e o ivoire, uma tríade de sabores demarcados pelo chocolate na penna cota com lima – em forma de seixo –, pelo gelado de limoncello, e petazetas, que nos remetem para a infância.

Da terra e do mar. Falemos, primeiro, do vinho cuja escolha recaiu num Borges Real Senhor Blanc de Noir Clássico Bruto, um espumante do Dão feito a partir da casta Touriga Nacional.

A enguia interpretada pelo chef

Na cozinha, Rui Paula abriu o menu com a enguia acompanhada pela beterraba, o tutano e a pata negra, uma sinfonia de sabores que conquistaram logo o palato.

Lagostim com porco, ostra e maçã

O mesmo legado de Baco acompanhou o lagostim com porco, ostra e maçã, um prato exuberante de sabores, que seduziram a boca à primeira.

O caril do mar convida a um mergulho no Atlântico a meio do repasto

De volta ao Atlântico num só mergulho veio o surpreendente caril do mar, com carabineiro, vieira e mexilhão, para ser degustado a par com um Niepoort Redoma Reserva branco 2014, feito a partir de castas oriundas de vinhas velhas.

A caldeirada que não é mais do que uma homenagem ao peixe da nossa costa

O par perfeito para o vinho foi, contudo, a caldeirada composta por peixe da nossa costa, lula e petinga, uma trilogia de sabores que comprovaram, uma vez mais, o trabalho consistente do chef portuense, que apostou num monumento nacional, para dar a conhecer os produtos nacionais a quem quer conhecer o emblemático projeto de arquitetura de Álvaro Siza Vieira e a cozinha de Rui Paula, que reforça com a afirmação de que “Leça não tem hotéis, portanto quem aqui vem, vem de propósito”.

Com os pés assentes na terra, eis a entre costela de wagyu

Entre costela de wagyu é o nome do prato que se segue no menu da terra e do mar, o qual é feito com o cantarelo (um cogumelo amarelo ou alaranjado), amaranto e couve-flor, um casamento perfeito no prato composto apenas com produtos da terra e com o vinho, um Vale da Raposa Sousão tinto 2011, um duriense da casa Alves de Sousa.

A feijoada à transmontana feita com os produtos que a compõem

A mesma harmonização foi sugerida por Carlos Monteiro para a feijoada à transmontana, com feijão, enchidos e legumes, uma interpretação, na cozinha e no prato, da autoria do chef, que sempre manifestou a sua dedicação a Alijó, vila do distrito de Vila Real, onde abriu, nos anos 1990’, o seu primeiro restaurante, o Cêpa Torta.

A pré-sobremesa do menu da terra e do mar

Ao prato seguiu-se a seleção de queijos portugueses e a pré-sobremesa colorida e composta por batata roxa doce e profiteroles, que encheu as medidas com o Vinho do Porto Rozès LBV 2006.

A sobremesa de espargos, beterraba e romã reserva uma surpresa

De trus foi também a combinação deste Vinho do Porto com os espargos, a beterraba e a romã na versão doce, tendo a romã de ser deixada para quando terminar o prato, para um final explosivo na boca.

Em súmula. A respeito dos produtos utilizados na cozinha do Restaurante Boa Nova, Rui Paula declarou à Mutante que os peixes e os mariscos são adquiridos na lota de Matosinho e em Angeiras, em Matosinhos, e de outra empresa “para outros peixes, porque os arranja com a consistência certa”, garantindo que “todos os produtos são do dia”.

Quanto aos legumes biológicos, oriundos de uma empresa do norte, o chef portuense destacou quão importante é “arranjá-los com o verdadeiro sabor, o sabor bom”.

E, além da boa nova da carta da primavera, todos os comensais do restaurante são, já quase no final do repasto, convidados a conhecer a cozinha, “para conhecerem e verem quantas pessoas trabalham lá e perceberem a logística” é explicada pelo chef de sala, Fernando Carrilho, que nos apresentou Catarina Correia, a chef residente – com quem Rui Paula (leia aqui a entrevista à Mutante realizada em 2013) trabalha há seis anos –, Mauro Silva, o chef responsável pelos snacks, as manteigas, as saudações do chef e as entradas – que o acompanha há nove anos –, e Mafalda Cardoso, a chef pasteleira que desafia todos os que ali entram a desvendar o sabor escondido no limpa-palato, entre os demais cozinheiros e ajudantes que compõem uma equipa formada, ao todo, por 18 elementos.

Por tudo isto, Rui Paula confessou “nesta casa é imperativo ter a estrela [Michelin], mas não tenho de estar obcecado”.

Aos curiosos, aos gourmets e gourmands fica a recomendação e a dupla certeza que vale bem a viagem até Leça da Palmeira, com a avenida da Liberdade no GPS, pois a Casa de Chá da Boa Nova (junto ao farol da Boa Nova) está aberta de terça a sábado, das 12.30 às 15 horas, e de segunda a sábado das 19 às 23 horas, sendo obrigatória a reserva através do 229 940 066 ou do 932 499 444.

Bom apetite! •

+ Restaurante Boa Hora
© Fotografia: João Pedro Rato
+ Agradecemos à DS o apoio na realização da viagem
Legenda da foto de entrada: Pescada de anzol com plâncton e perceves

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