P’las raízes da cozinha regional portuguesa / Areias do Seixo

A saudade é apaziguadora quando as memórias refletem um receituário tão vasto e tão rico que, quando dividido por regiões, expressa a temperança gerada por crenças e tradições, e pelo que a terra e o mar que, desde sempre, levou para a mesa. E em companhia de um bom vinho de produção nacional.

Tiago Emanuel Santos, o jovem chef que está há sete meses na cozinha do restaurante do Areias do Seixo

Remontemos às décadas de 40, 50 e 60 do século XX, à era dos nosso avós e pais. Eis o convite de Tiago Emanuel Santos – chef do restaurante do Areias do Seixo, hotel que combina a ecologia e sustentabilidade com o conforto e a sofisticação, em Torres Vedras –, a uma viagem ao passado em 12 momentos colmatados com histórias. Um regresso às nossas raízes à mesa, as mais profundas que se possam imaginar, à semelhança das raízes que, na horta do hotel, são deixadas avançar mais e mais na terra, para que ai permaneçam agarradas por mais tempo. Como nós, portugueses, que nos recordamos do nosso receituário quando somos postos à prova de sabores há muito deixados de parte do dia a dia, mas que perduram no tempo, agarrados a crenças e tradições.

O momento relaxante antecede o jantar com um copo de vinho e dois dedos de conversa

Após um passeio elucidativo pela horta durante o qual o nosso palato foi posto literalmente à prova, antecedido por uma caminhada até à duna reservada a momentos mais calmos, de contemplação e introspeção com uma vista infinita para o Atlântico, passando pelo círculo de fogo, para desfrutar de copo na mão e dois dedos de conversa, pela estufa e pelo lago, onde são servidos repastos ora privados, ora mais intimistas, ainda houve tempo para um brinde no terraço do Areias do Seixo num momento de partilha com desconhecidos comungado por uma fogueira que aqueceu o fim de tarde.

Rui Madeira, o escanção que, em conjunto com o chef, tem esmiuçado os lugares mais inimagináveis em busca do vinho português

Já no restaurante, e em jeito de boas vindas, Rui Madeira, o escanção, elegeu um champanhe produzido naquela região francesa por um português: Eric de Sousa. Uma exceção, já que o objetivo é oferecer uma carta de vinhos cem por cento de produção nacional – mesmo no bar, onde a finalidade é ter, apenas, bebidas nacionais – e, acima de tudo, da Região de Lisboa.

Da horta – cuidada por Job, holandês, e Tânia, portuguesa, um casal que, centra toda a atenção nos seus agricultores, as galinhas, e em todas as plantas, as flores, as bagas, as ervas aromáticas, os legumes e as árvores – saem as honras da primeira entrada, discreta e simples, chocante e muito saborosa, “uma cenoura da minha horta”, diz-nos Tiago Emanuel Santos. Uma cenoura algarvia, nome que o chef atribui a este tubérculo talvez em homenagem a um chef de terras bem a sul que Tiago Emanuel Santos admira profundamente…

Tomada de ovo, pastel de molho, pataniscas de bacalhau e torresmos

Os pratos de cunho português prosseguiram viagem fora, desta vez, com os torresmos, a soberba tomatada de ovo, as pataniscas de bacalhau e o melhor de todos: O pastel de molho. Este último deve a sua origem aos operários das fábricas da cidade da Covilhã, na beira interior, cujo molho é feito com açafrão, fazendo com que o pastel fique suculento. Perante este quarteto de memórias vivas Tiago Emanuel Santos deixou uma pergunta: “Como é que a comida simples e surpreendente não pode estar numa mesa de alta cozinha? Como é que algo tão simples é, afinal, tão complicado?” O sabor é a alma deste segredo tão bem guardado na cozinha deste jovem chef.

O azeite e a trilogia de manteigas e de pão

Sigamos para o terceiro momento: O couvert. O azeite virgem extra é de Moura, um tributo que o produtor Gonçalo Rosa da Silva quis prestar à avó Angélica. A trilogia de manteigas são de vaca, da ilha do Pico, nos Açores; de cabra, de Cortes do Meio, na Serra da Estrela; e de ovelha, de Azeitão – e são manteigas “a sério” cuja degustação advém do intenso trabalho de procura de Tiago Emanuel Santos, para quem “o caminho da alta cozinha tem de passar por apostar nesta vertente de procura e recolha de produtos endógenos”. E a trouxa feita de pano de Alcobaça é composta por broa feita a partir do carolo de milho, de Cortes do Meio, pão de trigo de Padronelo, freguesia do concelho de Amarante, e de bolo lêvedo típico dos Açores, e os três pães, feitos a partir do receituário português, são feitos no forno de lenha da cozinha do Areias do Seixo.

A fava rica por Tiago Emanuel Santos

Depois veio a mulher da fava rica. Ou uma inspiração nesta figura alfacinha dos anos 1940’ que vendia sopa em Lisboa, levando-a numa panela que transportava à cabeça e apregoando a sopa de favas que oferecia a quem não tinha nada para comer – e a quem a pedisse. A composição? Fava, toucinho e alho. Supimpa, para rimar com Casa de Santar Arinto e Sauvignon 2010, um vinho regional do Dão.

A vila de amêijoas apregoam a tradição em terras bem a sul de Portugal

Do Dão passamos para um Torres Vinho Branco 1991, da Adega Cooperativa de Torres Vedras (então pertencente à Comissão Vitivinícola Regional de Alenquer, Arruda e Torres Vedras), cuja oxidação do próprio foi de truz com o fumado das amêijoas do prato típico de Olhão: Vila de amêijoas. Uma tradição que associa a religião a um ato pagão, uma memória viva dos tempos em que, antes de partirem, para as longínquas pescas de bacalhau, os homens iam à igreja do Livramento pedir proteção e boaventura e, depois da missa, a família juntava-se no adro do edifício de culta à religião cristã, para comer este prato pascal  feito em cima de caruma dos pinheiros. E um petisco dos deuses.

Trás-os-Montes, Sesimbra e Açores à mesa de uma só vez

A partir de então, o receituário ficou à boa mercê das interpretações do chef cuja pedra basilar é a cozinha regional. Desta forma, entramos num trio de produtos regionais que comungaram bem entre si: O cuscuz transmontano, o carapau de Sesimbra e a açafroa dos Açores. Uma explosão de sabores que não é, de certo, para meninos e, por conseguinte, muito bem harmonizado pelo Quinta de Sant’Ana Pinot Noir 2013, um vinho tinto da Região de Lisboa que casou com o prato graças à frescura da casta francesa.

O vinagre

Limpemos o palato. Para o efeito, Tiago Emanuel Santos preparou um gelado de vinagre Moura Alves, feito a partir da casta rainha da Bairrada, a Baga, e desenhado pelo enólogo Rui Moura Alves.

Coelho bravo, arroz cremoso e queijo velho açoriano de São Miguel

Coelho bravo do oeste foi o prato que se seguiu acompanhado por um arroz cremoso e queijo velho açoriano de São Miguel, e servido num pequeno tacho, porque é assim que é feito e assim que sabe bem. Foi um despertar de memórias, que levaram a remontar à comida do tempo da avó, um sabor tão bom harmonizado por um Vinho Tinto Reserva 1970, da Adega Cooperativa de Torres Vedras, a qual – parafraseando mui ilustre Fernando Pessoa – “primeiro estranha-se e, depois, entranha-se.”

A vaca e os legumes da horta

Com a vaca velha de Alcains  é chegada a vez de contar mais uma história, que fica guardada no segredo dos deuses, pois para ouvi-la, o melhor é mesmo ir ao restaurante… Sobre a carne, de sabor genuíno, veio “com vegetais da nossa horta e cogumelos”, um prato aconchegante nas noites frias de estio servido numa tábua inspirada naquela que deu origem à história.

A laranja

Entremos na sobremesa composta por três momentos. O primeiro teve inspiração na chamada laranja dos pobres que, de sabor tão adgestridente, juntavam-lhe azeite e mel, e ficava a macerar durante a noite para, no outro dia, pela manhã, pudesse ser comida. Por sua vez, Tiago Emanuel Santos demarcou a adstringência na casca de laranja confecionada com mel e azeite sobre a qual colocou um sorbet de laranja, o que resultou numa sobremesa refrescante e inteiramente apreciável.

Uma inspiração no Pudim abade de Priscos

O segundo coube ao pudim Abade de Priscos reinterpretado pelo chef, que fez acompanhar  tão vetusta iguaria bracarense com texturas de ananás e “alfazema da nossa horta”, para travar o doce, ato complementado por um Quinta da Alorna Fernão Pires Colheita Tardia.

O pão de ló de ovar do chef

O terceiro momento foi de mestre: Pão de ló de Ovar. Ou um pão de ló de Ovar como ele poderia ser feito. E mais não dizemos – ou melhor, dizemos, pois falta aqui pronunciar o vinho que lhe fez boa companhia: Quinta de S. Sebastião Reserva tinto 2013, feito a partir das castas Merlot, Touriga Nacional e Syrah.

O ambiente orgânico caracteriza um restaurante que convida a uma experiência que é uma constante descoberta

É este o menu de degustação apresentado a quem, de fora, quer conhecer o trabalho de Tiago Emanuel Santos – só os hóspedes podem olhar para a Carta da Lua –, o jovem chef de 28 anos que trocou a geografia pela formação em cozinha, a qual casa bem com o mestrando em gestão de território – sistemas de informação geográfica e proteção remota, que o ajuda nesta longa caminha assente na constante procura dos produtos endógenos de cada região do país.

Recordações em miniatura

Há sete meses no restaurante do Areias do Seixo, onde iniciou este desafio do zero este é, porém, “o princípio de uma longa caminhada” acompanhada por uma equipa primada pela rapidez no seu ofício – mesmo numa noite em que o restaurante estava “composto” – e pela simpatia num restaurante que prima pelo ambiente descontraído e pela decoração orgânica a desfrutar num repasto que termina com miniaturas de bolos que acicatam boas recordações, como o de bolacha, o salame ou a pinhoada, acompanhadas de uma boa conversa à mesa.

Em suma, vale a pena a viagem. Bom apetite e levem a saudade convosco. •

+ Areias do Seixo
© Fotografia: João Pedro Rato

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