“Um cozinheiro só é completo quando suou, chorou, trabalhou muito” / Chef Miguel Laffan

A conversa fez-se à mesa do L’AND Vineyards entre colheradas e garfadas saboreadas com vagar. Ao mesmo tempo, os pratos eram explanados com o rigor de um chef, pelo próprio, mas muito ficou por contar. Afinal, “as conversas são como as cerejas”.

Tom Ym Kung com carabineiro assado e nage de carabineiro, uma sopa aconchegante e a fazer jus às noites frias que teimam em ficar por mais tempo, agraciada pela harmonização perfume dos ingredientes e pelo picante, e acompanhada por um Quinta do Rol Pinot Gris branco 2012, Vinho Regional de Lisboa

Ao início eram as amêndoas caramelizadas com especiarias, o clássico de Miguel Laffan, no Restaurante LAND, do L’AND Vineyards, em Montemor-o-Novo que, na noite de 23 de Novembro de 2016, conquistou – de novo, se é que podemos dizê-lo – uma estrela Michelin, na edição de 2017 do Guia Michelin de Espanha e Portugal, apresentado em Girona, na Catalunha do país vizinho, momento em que o chef vive in loco. Mas já lá iremos.

Comecemos pelo detalhe, a subtil influência da cozinha tailandesa.
Às vezes as pessoas pensam que faço comida tailandesa. Não posso dizer que seja uma influência da cozinha tailandesa ou do sudoeste asiático na forma de temperar os pratos, com as limas, os gengibres, os kefirs, as especiarias… A minha base continua a ser, acima de tudo portuguesa, com técnica francesa enraizada. Depois, vou buscar estas pequenas ferramentas, para diferenciar a minha cozinha e metê-la um bocado ao meu gosto. Obviamente que acabo por ter um ou outro prato que acaba por ser uma influência clara, mas uma coisa é um ‘carinho’, outra coisa é uma influência.

Tiramos a palavra influência e vamos buscar apenas o gosto.
O que eu gosto é da frescura dos gengibres ou das limas, mas também vou buscar pequenos detalhes da cozinha japonesa, com o molho de soja, o mizu.

“(…) gosto de criar uma linguagem, de fazer uma interpretação muito minha, uma cozinha mais actual, mais fresca.”

Bolinho de caça com trufa, foie gras e molho do assado – “procurei a empada que me enchesse as medidas, mas a massa não me convencia, por isso decidiu cozer pão ao vapor”, revelou o chef Miguel Laffan

Mas a técnica francesa também está presente.
A minha forma de pensar é, basicamente, francesa, o que é normal para a cozinha dos chefs da minha geração. No entanto, gosto de cozinha portuguesa, e gosto de criar uma linguagem, de fazer uma interpretação muito minha, uma cozinha mais actual, mais fresca.

As viagens contam?
Acho engraçado que, a forma de nós voltarmos a viajar é cozinhando, é aproveitando os sabores que trouxemos e que, de alguma forma, nos transportam para o passado, para essa viagem em particular, para momentos da nossa infância.

Curiosidades.
Temos uma sobremesa nova muito gira, na carta. Chama-se “Lishia in the Sky with Dimonds”, uma homenagem aos Beatles e à sua música. Há pessoas que dizem ser uma música dos Pink Floyd, mas não! É dos Beatles! De música percebo eu! Temos também a presa de porco de um produtor muito especial, com puré trufado e que leva salsifi, legumes e, com a qual, conseguimos, finalmente, fazer uma cozedura especial.

Fale-me dos pratos, de como surgem as ideias do chef.
Não tenho um protocolo de criação. Obrigo-me a estabelecer um deadline e não pressiono. Vou pensando numa ideia e, de repente, ‘cai uma semente’, que dá algum fruto, que vale a pena ser regado e quando ‘cai’ no prato digo: ‘Uau!’ Ou seja, não acredito em fórmulas mágicas.

“Os nossos produtores estão cada vez melhor, mas ainda têm um largo caminho pela frente…”

Robalo pescado em linha com aipo, cogumelos, folhas de couve pack choi, espargos brancos, um prato leve e muito harmonioso nas notas dos sabores, que harmonizou – e muito bem – com Herdade do Freixo Reserva branco 2015, Vinho Regional Alentejano feito a partir das castas Sauvignon Blanc, Alvarino e Arinto colhidas da encosta da Serra d’Ossa, na aldeia do Freixo, concelho de Redondo

Para os pratos há, porém, o preceito de ter produtos de qualidade. É fácil conjugar esta condição com a questão do quilómetro zero?
Defino prioridades. Quero trabalhar com um produtor, mas a prioridade é a região onde estou a, acima de tudo, a qualidade. O produto e a qualidade são as minhas prioridades, mas não me limito de todo à filosofia do quilómetro zero o que não quer dizer, porém, que não concorda com essa mesma filosofia. Gostaria que assim fosse, mas no campeonato em que estamos não é possível e se não formos claros a respeito a essa questão, os produtores não sentem necessidade de crescer, de evoluir. Os nossos produtores estão cada vez melhor, mas ainda têm um largo caminho pela frente para um restaurante como o L’AND Vineyards ficar com produtos de qualidade e beneficiar com o quilómetro zero, mantendo a consistência. As grandes cozinhas que eu conheça e que foram referências mundiais estavam preparadas de antemão para terem uma cozinha quilómetro zero. Esta é a minha opinião.

França é disso um exemplo.
França é, na minha opinião, a nação-pai da gastronomia, com grandes cozinheiros, porque os produtores são uns apaixonados.

Contudo, a cozinha regional do nosso país é o exemplo prático do quilómetro zero.
Acho que há uma falta de organização. Por exemplo, temos boa caça aqui, mas tenho de comprar caça a Espanha, porque estão estruturados para isso. Cá, apesar de haver caça belíssima, não é possível tê-la aqui. O mesmo acontece com os cogumelos, que são óptimos…

“Temos uma cultura de palato muito rica, muito forte.”

No fundo, os produtos portugueses são cada vez mais valorizados nos restaurantes com estrela Michelin. Podemos dizer que está a surgir um novo movimento da gastronomia portuguesa?
Acho que estamos todos mais entusiasmados, mais esclarecidos, com mais confiança. Grande parte da evolução estagnou, em tempos, se comparmos com Espanha, onde a imposição dos chefs de cozinha aconteceu mais cedo. Venho de uma geração em que o hotel castrava, de alguma forma ,a imaginação, a criatividade dos chefs, ou seja, os chefs tinham de seguir uma linha, porque era assim e ninguém queria pensar muito. Ficávamos muito confortáveis, o que levou, durante muito anos, a afastar os criativos. Há dez anos para cá, começou-se a abrir mais caminho para os criativos, que passaram a exercer a sua vocação, o seu dom, e a evolução parte daí. A cozinha portuguesa tem tudo para dar certo – não gosto de falar propriamente de técnicas, gosto mais de falar sobre os sabores finais. Temos uma cultura de palato muito rica, muito forte.

É notória a evolução do perfil do chef. Como a descreve?
Quando começamos alguma coisa, estamos sempre muito inseguros e a insegurança leva-nos a nos impor e a criarmos de uma forma mais egocêntrica, ao contrário do que acontece quando és mais maduro, quando já olhas para os pratos, para a tua cozinha, de uma forma mais clara, sabes o que conta e o que vale mais. Isso é evolução. E a evolução do perfil, com as novas tecnologias, veio ajudar muito. Somos muito mais esclarecidos e perdemos um pouco da mão-de-obra “tractor”, porque para um restaurante funcionar não podemos ser todos iluminados e chefs. Uma pessoa, para ser bem formada, precisa sempre de passar pelos processos todos e ser, verdadeiramente, um cozinheiro. Um cozinheiro só é completo quando suou, chorou, trabalhou muito, passou muitas horas seguidas na cozinha – note-se que não concordo com o facto de os cozinheiros passarem 12, 14 horas numa cozinha mas, às vezes, acontece. Alguns de nós também temos de o fazer, mas temos de passar por essas fases.

“Ser chef é liderar uma equipa, o que leva anos e anos a perceber as pessoas, a liderar pessoas, é saber controlar o teu ego e saber minimizar o ego do outro.”

Nuno Amaral, sub-chef do Restaurante L’AND, e Miguel Laffan, o chef

Acontece que ainda há chefs “à força”.
Quando era novo queria ser piloto da Força Aérea. Todos nós queremos ser muitas coisas! Mas quando quis ser chef, quis ser chef e sabia que ao querer sê-lo implicaria muito trabalho – grande, árduo! Abdiquei de muita coisa. Aqui a questão, é que os jovens cozinheiros têm – e ainda bem – mais formação do que nós tivemos e são mais esclarecidos. O mais difícil numa cozinha não é o teu conhecimento técnico nem a criação, é o saber liderar e o saber lidar com pessoas, saber ter calma, saber estruturar, para além da parte criativa, porque ter uma equipa de onze pessoas a trabalhar para o mesmo e ser severo, ser pai, ser cúmplice e saber gerir isso leva anos de vida. Ou seja, ser chef é liderar uma equipa, o que leva anos e anos a perceber as pessoas, a liderar pessoas, é saber controlar o teu ego e saber minimizar o ego do outro.

Em suma, é um pedagogo, pois para além da equipa do L’AND está a dar apoio a mais de uma dezena de restaurantes do distrito de Évora.
A Associação Comercial de Évora contactou-me para dar quatro workshops lectivos in loco a 14 restaurantes. Tive de fazer uma abordagem directa aos proprietários, sentir o serviço, ter uma refeição, para fazer um levantamento geral das cozinhas. No fundo, é para a Associação Comercial de Évora perceber em que estado está a restauração no distrito de Évora e, ao mesmo tempo, para os ajudar – sem impor – a melhorar o restaurante.

“(…) daqui a dez anos vejo-me como proprietário de restaurantes, como chef/empresário.”

É uma relação que, no fundo, se tornará um legado.
Tenho de ter clareza sobre a minha vida, as minhas vontades aos 40 anos. Temos de ir dando lugar aos outros nesta cadeia, faz parte da evolução e, aos 50 anos, não me vejo todos os dias na cozinha. Vejo-me a criar, a provar, a fazer parte da vida de um restaurante. Se me perguntares como me vejo daqui a dez anos, digo que daqui a dez anos vejo-me como proprietário de restaurantes, como chef/empresário.

Gostaria de voltar a Lisboa ou prefere manter-se pelo Alentejo?
Irei voltar para Lisboa. O erro não foi ir para Lisboa, o erro não foi ausentar-me do L’AND. O erro cometeu-se porque não foi estruturado nem pensado. Aconteceu tudo muito rápido, fez-se muito barulho, e o Guia [Michelin] ‘assustou-se’.

A célebre LSD, ou seja, Lichia “in the Saky with Diamonds”, iogurte, pinhão caramelizado e gelado de pêra, o par perfeito para uma aguardente suíça de pêra recomendada pelo escanção Gonçalo Mendes

Como se sentiu na noite em que (re)conquistou a estrela?
Não queria acreditar numa sorte inédita. Senti que justiça tinha sido feita! Quando isso aconteceu [retirada a estrela] aceitei, tive de aceitar, e aceitámos todos – trabalhámos, e trabalhamos, em equipa, com novos pratos e um novo serviço. É inexplicável! E emotivo (risos). Segurou muitas pessoas e segurou o projecto. •

+ L’AND
© Fotografia: João Pedro Rato

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