Chef José Avillez: “É difícil ficar na moda muito tempo, porque tudo anda mais rápido, mas esta seria a altura ideal para nos impormos”

Entrevistámos o chef português que, em Fevereiro de 2019, abrirá mais um restaurante, desta vez, no Dubai, para levar mais longe a cozinha contemporânea portuguesa. Mas como terá evoluído a culinária regional, a base desta cozinha, dentro de portas? O que a diferencia da dos outros países? O que é preciso fazer para a tornar mais conhecida?

O Belcanto, aberto em 1958, conquistou as elites lisboetas. Depois da reabertura, em 2012, o Belcanto (2 estrelas Michelin) conseguiu perpetuar o mesmo legado?
Antigamente havia mais isso das elites de Lisboa e o restaurante não era só um restaurante. Tinha outras ofertas menos gastronómicas que fizeram com que se tornasse, de alguma maneira, um clube de homens, com clientes fixos, fiéis. A seguir ao 25 de Abril passa a ser só um restaurante. Quando abrimos o “novo” Belcanto, perdemos 90 por cento dos clientes habituais do “velho” Belcanto, porque o conceito muda radicalmente. Havia pessoas que, antigamente – apesar de ter sofrido várias alterações com os vários proprietários que teve –, vinham almoçar diariamente ao Belcanto. Mantinha o mesmo chef de cozinha, que trabalhou connosco uns anos – o Sr. Zé, um grande cozinheiro, que se reformou este ano, e ficamos com a dona Ana, a copeira, que esteve aqui e está, agora, no Cantinho. Em Janeiro de 2012 vira um restaurante muito mais gastronómico e começa a chegar ao mundo inteiro. Fizemos, entretanto, umas obras há dois anos e meio. Aumentamos a cozinha e reduzimos os lugares da sala. Passamos de 45 para 32 e colocamos uma pequena chef’s table na cozinha, com capacidade até quatro pessoas, para oferecer outra possibilidade em termos de experiência no Belcanto.

Quando e como o restaurante “passou” as fronteiras do país.
Os três primeiros meses esteve sempre cheio com os clientes antigos, que tinham alguma expectativa sobre este restaurante. Foram meses violentíssimos, porque estávamos a tentar conciliar uma carta – que era continuação de um trabalho que vínhamos a fazer no Tavares – com alguns clássicos do restaurante, para não haver a arrogância de querer cortar completamente com o passado. Havia pratos que não dominávamos – não conseguia fazer aqueles ovos mexidos com a aquela quantidade de manteiga queimada. Adaptávamos pratos, mas não ficavam nada ao gosto dos antigos clientes. No final de Março desse ano caiu imenso. Tínhamos feito um investimento enorme aqui e comecei a assustar-me. Tivemos assim, se calhar, três semanas. Em Abril, numa visita surpresa, esteve cá o Frank Bruni, um dos melhores críticos do The New York Times. Logo, na altura, escreve um tweet com a frase “estou a ver o futuro da cozinha portuguesa num copo de Martini invertido”, que era um sumo de azeitona com uma esfera de Martini, que tínhamos como aperitivo. Depois escreveu um artigo no The New York Times que fez com que, de um dia para o outro, o telefone não parasse de tocar. Chegámos a ter aqui 40 clientes, na mesma noite, por causa desse artigo. Ainda hoje, temos clientes dessa altura. Aqueles seis meses, um ano, foi uma loucura! Fez a ponte com a estrela [Michelin] em Novembro [de 2012] e com a segunda passados dois anos.

“Não sei se são elites ou não. São pessoas que vêm, essencialmente, atrás da gastronomia, e é o cliente que nós gostamos.”

Há uma média de 70 por cento de estrangeiros. Não sei se são elites ou não. São pessoas que vêm, essencialmente, atrás da gastronomia. É o cliente que nós gostamos. Não é aquele cliente de ver e ser visto. Não tenho nada contra ele, mas temos pessoas que fazem um grande esforço financeiro para vir cá, as que têm possibilidades para vir sem preocupações financeiras; há muitas celebrações, como é hábito neste tipo de restaurantes – pedidos de casamento, aniversários, aniversários de casamento… divórcio ainda não tivemos. As pessoas vêm pela gastronomia. Há três anos um casal de ingleses vieram ao engano. Só tinham 50 euros. Entretanto, pediram para ver o menu de degustação e não tinham dinheiro suficiente. Disse-lhes para ficarem, não tinham de pagar o jantar, até porque já eram nove e meia da noite e, a essa hora, já não iriam encontrar nada. Acabei por fazer um prato com um bife e batatas fritas, para a senhora, e um outro, para o senhor. Obviamente que isto não é a Santa Casa da Misericórdia. É um negócio que emprega muita gente mas, nestes casos, não é por isso que vamos ficar mais ricos ou mais pobres. Marcamos a diferença na vida das pessoas, que nunca mais se esquecem que lhes aconteceu isto em Portugal. É bom para o turismo, é bom para todos. Por isso, tentamos ter estes gestos, que não têm de ser ofertas, são gestos que as pessoas percebem que estamos a cuidar delas.

Isso fica sempre na memória.
Fica sempre na memória. Falo sempre de uma coisa que é “temos de superar as expectativas”. Isto está estudado em livros de Marketing: quando uma pessoa tem uma boa experiência, conta a uma pessoa; quando tem uma má experiência, conta a sete pessoas. Acredito quando se tem uma experiência excelente, que supera as expectativas, pode contar a 15 ou a 20. Quando ouço alguém a dizer “adoro estas azeitonas!”, sai de lá de dentro uma caixinha com azeitonas, para que o cliente as possa comer duas por dia. No Cantinho [do Avillez], uma senhora disse a um dos nossos empregados que adorava a camisa da farda. Então ele foi ao cacifo dele, tirou uma lavada, do “seu bolso”, enrolou-a e ofereceu-a à cliente. Tivemos mais quatro ou cinco clientes dinamarqueses que tinham ouvido esta história. É muito importante esta indústria da hospitality que é isto: cuidar das pessoas.

“(…) o feedback do mundo inteiro, das pessoas que viajam e comem em todo o lado, faz-nos crescer muito e ter os restaurantes cheios, para conseguirmos pagar as contas, os ordenados.”

A cozinha evoluiu bastante desde há seis anos. Quão marcante tem vindo a ser essa mudança em Portugal e, em particular, no Belcanto?
Há uma coisa que é absolutamente incontornável: o aumento do potencial do mercado que temos hoje e não tínhamos. Acho que não há muito melhores cozinheiros hoje do que havia há dez anos. Há dez anos não havia clientes. Nós vivemos a melhor fase em termos turísticos e, por isso, desenvolvemos melhor o nosso trabalho. Uns puxam pelos outros e há uma maior abertura por parte dos portugueses perante uma cozinha mais contemporânea. Quando comecei há dez, 11 anos, no Tavares, fazer uma cozinha contemporânea portuguesa, para grande parte dos portugueses, era uma estupidez! Só depois de ganharmos a estrela no Tavares é que os portugueses começaram a olhar-nos de outra forma. Já outros faziam uma cozinha mais de petiscos, mas havia muito pouco da chamada “alta cozinha”. Nos últimos seis anos houve um crescimento turístico enorme. Por isso, o feedback do mundo inteiro, das pessoas que viajam e comem em todo o lado, faz-nos crescer muito e ter os restaurantes cheios, para conseguirmos pagar as contas, os ordenados. Ninguém consegue ser criativo se está na miséria. Ninguém consegue estar entusiasmado, se tem o salário atrasado. Não conseguimos os melhores produtos, se devermos aos fornecedores. Se calhar o lado menos romântico – a parte financeira – é fundamental. Isto leva a mais eventos gastronómicos, a uma maior promoção da gastronomia. Hoje, as maiores exportações que fazemos são termos os turistas estrangeiros a comer nos nossos restaurantes. Em vez de exportarmos os nossos produtos, estamos a servi-los frescos, com mais sol, ao mesmo tempo que temos pessoas simpáticas a comer cá e que, depois, levam as memórias para o mundo inteiro. Isso faz com que a gastronomia portuguesa ganhe algum destaque, que nunca teve, no mundo inteiro. Pode ser a cozinha mais rica do mundo, mas nunca teve o destaque que está a ter hoje em dia. Porque não há só uma cozinha portuguesa. Mas não temos uma dimensão de mercado. Estamos num país que vive uma crise ano sim, ano sim; ou, em dez anos, vivemos dois fora da crise. Tudo isso faz com que não haja um desenvolvimento da marca da gastronomia portuguesa, das cozinhas regionais portuguesas.

Mesmo assim, apesar dessa crise, até mesmo quem não tem grandes possibilidades financeiras, acaba por vir a este restaurante para ter uma experiência diferente.
Lá está, as pessoas mudaram muito. Mudaram a maneira de ver a cozinha. Já não a vêem como forma de matar a fome. Ao ser uma experiência, as pessoas estão mais predispostas a pagar mais. Há pessoas que têm prioridades: quem gosta de carros, tem uma casa pequena e um carrão à porta; quem gosta de viajar, gasta mais dinheiro em viagens; quem adora bons hotéis, vai para grandes hotéis; quem prefere conhecer melhor a gastronomia, gasta mais dinheiro em restaurantes do que em hotéis. Acima de tudo e sem generalizar, para não ser ofensivo, há pessoas que fazem esforços para vir e outras que fazem menos esforços. Para nós, os clientes são todos iguais. Tratamo-los da mesma maneira. Sinto-me muito lisonjeado quando fazem um esforço grande para vir gastar dinheiro que faz falta numa experiência assim e com muito prazer. Acho que há mais gente jovem a fazê-lo. Há quem pense que a média de idade deste restaurante é de 50, 60 anos, mas há noites que, aqui, temos clientes com idades abaixo dos 30 ou entre os 30 e os 40.

Referiu atrás que fazia “uma cozinha contemporânea portuguesa”. Como se transforma a cozinha portuguesa tradicional em “alta cozinha”?
Não há um caminho só e nem sempre é a cozinha portuguesa que é transformada. É a criação de uma cozinha portuguesa contemporânea inspirada na cozinha tradicional portuguesa, nas cozinhas regionais portuguesas, nas paisagens portuguesas, nos produtos, nos costumes, na cultura. Há a necessidade de um aligeirar não só de quantidade, mas também de intensidade, sobretudo de gorduras, algo que começa, também, a acontecer na cozinha tradicional portuguesa. Quando temos um menu de degustação, tudo isso é tido em conta, porque não posso ter uma quantidade enorme de proteína nem de hidratos de carbono, por exemplo. Tenho de equilibrar com os legumes. Vivemos num país muito rico em matérias-primas, mas muito pobre, no sentido de que a cozinha que nasce nas casas das pessoas não é uma cozinha palaciana. A cozinha alentejana e a transmontana são, talvez, as mais criativas e as mais ricas do país, porque eram as regiões de mais rigor climatérico, mas com mais dificuldades, daí que as pessoas tivessem de ser mais criativas. São cozinhas diferentes, onde há os milhos, as açordas ou os ranchos… Olhar para tudo isto e desenvolver uma cozinha contemporânea portuguesa é um grande desafio, mantendo a alma da cozinha regional, da cozinha tradicional portuguesa.

“Temos de pensar muito nas pessoas quando fazemos o que queremos.”

O valor nutricional é também uma missão importante dos chefs aquando da elaboração de um menu?
Sim. Falamos muitas vezes da cozinha contemporânea como sendo uma arte, mas não o é. É mais uma expressão artística. Temos de pensar muito nas pessoas quando fazemos o que queremos. Na minha opinião tem de ser bom. Há na história momentos em que os chefs decidem que a cozinha não tem de ser boa; têm é de marcar caminhos, criar novos conceitos, querem ser de vanguarda. Isso nunca conseguirei fazer, porque a minha profissão baseia-se muito em agradar os outros. Por isso, no dia em que tiver muitas pessoas a dizer que não gostam disto ou daquilo, porque acham que faço só porque é bonito ou porque quero criar um caminho, eu não consigo fazer. Não é a minha maneira de ser. Estou aqui para dar prazer às pessoas, daí que haja uma adaptação ao mercado e às pessoas. Não cozinho diferente para os portugueses ou os estrangeiros que vêm cá. Cozinho, porque sinto o que quero fazer e sei que as pessoas vão gostar. A passagem pela cozinha tradicional faz-se respeitando muito os costumes, os gostos, as estações do ano mas, se calhar, o arroz de pato da avó é sempre melhor do que o do chef. Diria até que poderia não ser, mas gosta mais da avó do que do chef. Sei, hoje, que faço pratos muito melhor do que a minha avó alguma vez fez, mas tenho saudades de estar com ela, de almoçar em casa dela. Tudo isto é muito emocional – a cozinha, a companhia, as luzes, o serviço, os sabores que nos fazem voltar vinte anos atrás. Há um lado técnico, mas também há o lado das sensações e das emoções.

De que maneira transmite o conceito, a informação acerca de como quer a sua cozinha, para a sua equipa?
Com estas conversas, com provas o tempo inteiro, com a troca de experiências. Falando sobre os pratos, as tradições, a cultura portuguesa.

“Aqui, nesta equipa, estão pessoas que gostam de ler, de viajar, de aprender.”

É fácil encontrar, hoje em dia, jovens que conheçam as tradições portuguesas?
Ninguém sabe quase nada.

Sabem como se faz uma feijoada, um cozido à portuguesa, um simples arroz?
Há uns melhores do que outros e uns com mais vontade do que outros. Muitas destas gerações, mesmo não vivendo em Lisboa, não comeram em casa o que é tradicional. O Norte, mesmo assim – não desprestigiando ninguém – é melhor do que o Centro e o Sul. O Norte mantém as suas tradições, tem um lado cultural, em termos alimentares, mais enraizado. Mas tudo isto passa muito por cada um. Quem gosta de aprender e quem quer ler, é mais fácil. Há pessoas que nunca leram um livro na vida. Nem os da escola leram! Por isso, é muito difícil que evoluam. Aqui, nesta equipa, estão pessoas que gostam de ler, de viajar, de aprender.

É importante viajar pelo país para conhecer as nossas cozinhas.
E mesmo fora, para perceber o “dentro”. Conquistámos 54 países na altura dos Descobrimentos. Andámos 400 anos a chegar a todo o lado, o que faz com que, de repente, vamos à Tailândia e damos com umas das sobremesas mais típicas que são os nossos fios de ovos. Sem tirar nem pôr. Chamam-se foy tong – o nome foy quer dizer “fio” e tong significa “ouro”. Ou chegamos ao Líbano, onde temos tremoços em cima da mesa e pensamos nas influências árabes que tivemos. Além de outros países gastronomicamente muito influentes, como o Japão, entre outros da Ásia. A ponte que fizemos de África para o Brasil com o que levámos de cá, como as caldeiradas com o azeite africano – o óleo de dendê –, os temperos e o coco, que acabaram por ficar na Baía; as moquecas e o pirão, que são papas de farinha de mandioca. Estas relações todas só se percebem saindo daqui, viajando. E só percebemos o que temos quando conhecemos outras culturas, outras cozinhas, outras maneiras de comer. Tudo isto é muito relevante para o nosso crescimento e para a nossa maturidade profissional e pessoal.

“Temos, do nosso passado, muitas influências, relações e multiculturalidades que nos tornam diferentes.”

O que diferencia a cozinha tradicional portuguesa das outras?
Temos muitas semelhanças com outras cozinhas pelas influências que levámos e que trouxemos. Temos semelhanças com o Estado de Minas Gerais, no Brasil, porque tem muitos pratos parecidos com os nossos e que foram adaptados. Somos o único país da Europa – tirando umas regiões da Andalusia e das Canárias que têm algumas receitas de coentros – que temos receitas tradicionais com coentros. Somos dos poucos que usa arroz branco para acompanhar, o que denota influências árabes e algumas asiáticas. Temos a canja que é o congee chinês, uma sopa que se come quando a pessoa está doente, e que trouxemos da China. Temos, do nosso passado, muitas influências, relações e multiculturalidades que nos tornam diferentes. Por Portugal ser um país de pequenas dimensões, com estas estradas que temos no país chegamos, em 45 minutos, de carro, a cozinhas praticamente diferentes. Dá para almoçar e jantar em duas regiões diferentes. Temos muita intensidade de sabores, uma grande variedade de produtos do Litoral para o Interior. O que nos diferencia, realmente, é esta grande riqueza culinária no nosso país, estas influências que provamos e trouxemos de outros países. Mas quando pensamos numa feijoada, faz diferença o tamanho do país. Aí a feijoada à brasileira tem mais força. O mesmo está a acontecer no mundo do vinho. Há um tempo, os produtores defendiam a mudança do nome da casta Touriga Nacional para Touriga Portuguesa. Hoje, produz-se vinho do Porto e Touriga Nacional na Nova Zelândia. Daqui a uns anos, ninguém irá saber que Porto é uma cidade em Portugal e que tem um vinho muito especial; e que Touriga Nacional é nacional de Portugal. Por exemplo, o Vinho da Madeira tornou-se muito conhecido nos Estados Unidos, porque era utilizado no molho dos bifes e poucos sabem o que quer dizer Madeira sauce. Mesmo nós temos esse problema com o bife à café, a respeito do qual as pessoas acham que este prato leva molho com café, mas nunca levou café! O bife à café é uma versão mais barata de um bife “à Marrare”, que tinha nascido no Café Marrare, aqui, em Lisboa. É muito difícil escolher coisas que são muito diferentes do que estamos habituados a comer. No entanto, somos o único país no mundo onde o produto mais emblemático e dos mais consumidos em Portugal, nós não temos: o bacalhau. Somos um dos países do mundo com o melhor peixe, mas o que mais comemos não é de cá. Descobrir-se um peixe que dava para salgar e secar, era barato, não precisava de frigorífico e chegava a todas as regiões, até mesmo ao interior [do país], foi do melhor, na altura. Por isso, tornou-se o “fiel amigo”. Colocava-se numa serapilheira, com uma corda presa a uma pedra, e demolhava-se no rio; ou nos autoclismos. Quando havia só uma casa de banho na rua com aqueles autoclismos antigos, onde o metiam, em que as pessoas puxavam a água e, por isso, estava sempre demolhado e com água a ser renovada.

É curioso.
Há curiosidades que sempre tive, como a proximidade dos pinhais em relação ao mar. Sempre achei que havia uma relação entre os pinhões, as pinhas e a resina com o marisco, mas nunca tinha encontrado receitas que reflectissem isto. Já usava aqui, há muito tempo, gambas da costa com leite de pinhão, pinha verde relada, caruma. Um dia em que estou a falar com um senhor, ele conta-me a história: “o meu pai era pescador. A minha mãe ia à missa. Quando as mulheres saiam da missa, os pescadores levavam umas bandejas grandes cheias de caruma a arder, com amêijoas por cima, para as amêijoas abrirem.” E eu pensei: “grande ideia!” Era uma coisa que já se fazia há 200 anos. Estou a fazê-lo aqui. A amêijoa fica com um bocadinho do sabor da resina e do fumo. A pessoa agarra e uhm! Há sempre um lado linguístico muito interessante em tudo! No século XVI, quando chegámos ao Japão, os japoneses chamam-nos de sakana, que significa “peixe” em português. E porquê? Porque temos os olhos redondos como os peixes. Uma boa parte dos nossos marinheiros e almirantes, no mar, eram alentejanos. Uma das coisas com que o Alentejo nunca conseguiu deixar foi o pão. O grande desafio deles era ter pão a bordo e arranjar maneira de levar o pão pré-cozido e diz-se que o vigia, ao avistar as ilhas nipónicas, disse: “Já há pão!” [risos] Porque o pão seria cozido quando chegassem a terra. Por isso, o grande desejo deles era encontrar terra para cozer o pão e comê-lo. Então, “já há pão” passou a Japão. Diria que é mais uma graçola, mas dá para entendermos estas histórias.

Apesar da cozinha francesa manter alguma influência, é o chef catalão Ferran Adriá que, na década de 1990, revoluciona todo este universo.
Eu sempre tive influências da cozinha francesa e da cozinha espanhola. Tenho uma base de cozinha francesa, mais até por causa da cozinha que era feita em casa – uma cozinha burguesa, que não entra no registo das tradicionais – e, mais tarde, baseada na minha formação, com o estágio que fiz na Fortaleza do Guincho e em França. A minha relação com os espanhóis também acabou por ter influências. Depois tento ter o menos influências possíveis e acabo por estar mais virado para a nossa entidade.

“Acho que a música e a cozinha devem ter sido as melhores invenções do mundo.”

É precisamente ai que queria chegar. Ou seja, após essas duas grandes influências começou a haver um maior respeito pela cozinha portuguesa.
Desde que fui para o Tavares que tenho a cozinha portuguesa como base. Podia ter influências de técnicas espanhola ou francesa, mas começámos com a cozinha portuguesa e fomo-nos aproximando de uma cozinha regional portuguesa, no sentido em que vamos mais às regiões e começamos a separar o Algarve do Alentejo, o Porto de Trás-os-Montes, o Interior do Litoral. Não reflectido em nomes, na carta, mas sabemos que os milhos da Madeira são diferentes dos do Algarve; que, no que toca ao xerém, o interior do Algarve é uma coisa e o litoral desta região é outra; e os milhos transmontanos também são diferentes. De repente estamos a tratar do mesmo produto aplicado de maneira diferente nestas regiões. A diferença de solos, de clima proporciona essa riqueza gastronómica enorme! Até o facto de se fazer cópias dos pratos dá para criar, tentar mudar coisas, reinventar. Por exemplo, a base da música – os acordes – não mudou nada em 250 anos, porque ficou muito bem feita nessa altura, portanto, não há necessidade de mudar. Acho que a música e a cozinha devem ter sido as melhores invenções do mundo. Ambas estão ligadas, de alguma maneira, porque desde que o bebé nasce, ao mamar, a mãe está a embalá-lo. Acho que tudo isto nos faz pensar na cozinha de uma maneira diferente. Faz-nos pensar que estamos a cozinhar para alguém e que estamos a transmitir as nossas emoções e a querer despertar emoções do outro lado. É um acto de generosidade, pois estamos a entregar-nos, de alguma maneira, a quem está comer o que fazemos.

Como é que um chef se torna responsável por quase uma vintena de restaurantes em Lisboa e no Porto?
Com uma grande equipa! Não há grandes segredos É delegar. Delegar é sinónimo de confiar na equipa, na formação das pessoas. É aprender com elas, também, e deixá-las crescer connosco. Quando, há dois anos, abri mais cinco restaurantes, pensei que não ia fazer mais isso na vida. Foi a loucura! De repente, em menos de um ano, abrimos cinco! Há muito mais gente responsável, que conhece os valores e a cultura da empresa, por isso pegam sozinhos nas coisas, sem qualquer problema. Meto-me em tudo. Estou sempre em tudo. Mas há um em que não me envolvi, mas está muito bem feito e estou muito contente. Mesmo muito contente! Esse é o caminho em todas as áreas. Nunca tive medo de me rodear de pessoas melhores do que eu, porque aprendo imenso. É preciso ter alguma coragem. Porque houve uma altura em que quis ser o melhor e, agora, há muitos melhores do que eu.

“(…) há sempre lugar no topo. Tem de se trabalhar muito para lá chegar. Tem de se fazer muitos sacrifícios. Se houvesse mais cozinheiros jovens mais consolidados, seria mais fácil. Mas há muitas entradas e saídas dos restaurantes.”

A cozinha tradicional portuguesa poderia ser reconhecida no mundo, assim como foi a francesa, a espanhola ou a nórdica?
A cozinha francesa teve 400, 500 anos de monopólio. Isso nunca vai acontecer com a nossa. A espanhola teve um movimento altamente concertado entre vários chefs e Governos. Houve uma promoção enorme da gastronomia [espanhola] como um dos principais pontos de atracção turística e com chefs altamente talentosos, que mudaram o rumo da história da gastronomia. Isto é o país do Dali, do Picasso. Há ali muita matéria. Estão à nossa frente em quantidade, em tempo. Se calhar, alguns dos melhores de cá já se comparam com alguns dos melhores de lá, mas eles têm 40 na linha da frente e nós, cá, temos três ou quatro. Isso faz diferença na divulgação da cozinha. A cozinha nórdica tem um nome, mas houve uma altura em que foi muito influenciada pela cozinha espanhola. O René Redzepi, do Noma, é que deu a volta à cozinha nórdica, à cozinha de um povo que nem era muito conhecido por gostar de comer. O Andoni [Luis Aduriz], do Mugaritz, tem uma influência de Michel Bras. O Noma tem influências do Ferran Adriá e do Andoni, e constrói uma linha dele. Hoje, em Inglaterra, há também uma grande influência nórdica. Vou ser muito sincero: já estive mais optimista a esse respeito. É difícil ficar na moda muito tempo, porque tudo anda mais rápido, mas esta seria a altura ideal para nos impormos. Temos aqui uma janela de dois, três anos para a frente para aproveitarmos ou “vamos perder o barco”, porque as coisas mudam de repente. Nós vimos o que o Peru conseguiu notoriedade com uma estratégia concertadíssima com o Governo. Acho que, tradicionalmente, somos piores a fazer alguma coisa em conjunto. Em Espanha, há chefs que não gostam de outros chefs, mas eles põem a importância da união à frente das rixas. Têm 25 cozinheiros que são os melhores do mundo, porque eles dizem isso o tempo inteiro uns dos outros. Cá não! É o contrário. Dizem: “eh pá! Esse gajo é um bluff!” Em Portugal há uma necessidade de: “eu só vou conseguir ser bom, se o outro for pior, porque não quero trabalhar muito. Isso dá muito trabalho. Por isso, vou puxá-lo para baixo, fico ao nível dele ou, até, acima dele.” Não há uma atitude de: “vou chegar ai a cima, para ficar igual a ti ou melhor.” Isso é transversal. E há uma verdade discutível: há sempre lugar no topo. Tem de se trabalhar muito para lá chegar. Tem de se fazer muitos sacrifícios. Se houvesse mais cozinheiros jovens mais consolidados, seria mais fácil. Mas há muitas entradas e saídas dos restaurantes. Há projectos novos que estão condenados a seis meses, porque são mal pensados. Em Espanha, há restaurantes que só foram reconhecidos ao fim de dez anos. O Quique Dacosta está há 30 anos no restaurante dele! Há 15 anos não tinha ouvido falar no Quique Dacosta. Não precisamos de estar aqui a discutir quem é o melhor. Vamos dar tempo. As coisas não acontecem de um dia para o outro. Por outro lado, há a cozinha italiana, a mais espalhada pelo mundo inteiro, essencialmente, por causa da emigração italiana, com a abertura de restaurantes em todo o lado e, hoje, com o reconhecimento da alta cozinha pela mão do Massimo Bottura, da Osteria Francescana, por ter ficado, durante dois anos, no primeiro lugar dos [The World’s] 50 Best [Restaurants], sem contar com a indústria alimentar que copia a italiana, com as mozzarelas, as massas, entre outros produtos que são produzidos noutros países e já sem qualidade. Ninguém vai pegar num queijo ou num prato português. Não tem um registo de alta cozinha, nem tem uma representatividade no mundo em termos de restaurantes. Não sei muito bem como vai ser. Ou se dá o caso de um de nós chegar ao nível dos cinco melhores do mundo nesses 50 Best, que têm uma grande projecção, ou é muito, muito, muito complicado.

Para fecharmos a entrevista, fale-nos um pouco acerca do novo projecto no Dubai.
Vamos abrir, para o ano – Fevereiro de 2019 –, no Dubai. Temos uma operação concertada para poder abrir mais internacionalmente, para termos uma cozinha contemporânea portuguesa representada lá fora. Acho que pode vir a ser uma ajuda. Agora, não dá para nada. O Marketing é, aqui, muito importante. A cozinha é das áreas em que mais revoluções aconteceram – houve três ou quatro marcantes – o que é raríssimo acontecer numa área de intervenção. Parece que os próximos 20 anos se vão desenvolver mais ou tanto que os últimos 300, em geral. Isto pode dizer muita coisa. •

+ José Avillez
© Fotografia: João Pedro Rato

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