Alentejo, terra do Cante, de bons momentos à mesa, de paisagens serenas

No concelho raiano, a cidade de Serpa é o ponto de partida para a descoberta de um território pejado de cultura, determinado pela morosidade dos ponteiros do relógio, pela riqueza gastronómica e pela vontade de voltar uma e outra vez.


A Casa de Cante é palco de um património colectivo que se quer imortalizado

Estão abertas as portas da Casa do Cante, no n.º 14 da Rua dos Cavalos, na cidade de Serpa, espaço que dá voz a este género musical típico da maior região do país. De origem desconhecida, este património colectivo e cultural do Alentejo teve Sérgio Tréfaut, realizador português, como responsável pela apresentação deste legado de gerações à UNESCO, valendo-lhe a eleição, a 27 de Novembro de 2014, de Património Imaterial da Humanidade.

{1 Ponto. 1 Alto. 1 Coro}

A composição do grupo de Cante Alentejano começa no Ponto, segue-se o Alto, que dá início à moda. Ambos são solistas. E entra o resto do grupo, o Coro. Todos cantam a capella. São maioritariamente os homens quem o faz, apesar de, nos lares, a partilha permanecer viva entre vozes femininas e masculinas.

Graças ao reconhecimento fora de portas, o Cante é, actualmente, ensinado nas escolas. Em Serpa, faz parte do currículo, ou seja, é obrigatório, tendo Pedro Mestre como o orientador desta disciplina que tem conquistado aprendizes de tenra idade. Mas o Cante vai mais longe. Em jeito de contradição – ou não – são entoadas músicas de compositores e cantores portugueses, sonoridades diversas boas de ouvir, quanto mais não seja em ensaios abertos ao público. Já lá iremos…

As expressões das artes habitadas 

Parte do acervo do município de Serpa está reunido na Galeria de Arte Contemporânea

A próxima paragem é no n.º 14 da Rua Pedro Anes. Onde, em tempos, fora o armazém da Cooperativa Agrícola de Serpa é, hoje, a mais recente Galeria Municipal de Arte Contemporânea, espaço onde se encontra reunido o acervo do município local. As paredes são como expositores de uma imensidão de quadros de autores conhecidos, reconhecidos e desconhecidos no âmbito das expressões artísticas, desde a pintura, a litografia, a serigrafia à escultura, fotografia, instalações multimedia. Entre a lista de nomes constam o de Júlio Pomar, Graça Morais, Vieira da Silva, Cruzeiro Seixas, Manuel Cargaleiro, Justino Alves, bem como de artistas locais, como Maria Galamba, Maria José Moreira, Luís Afonso, Bento Sargento ou Francisco Bentes, além de outras figuras das artes nascidas fora de portas. 

A Galeria Municipal de Arte Contemporânea foi criada no âmbito do projecto Serpa Museu Aberto, rede de espaços associados ao património cultural do concelho, como a Casa do Cante, o Museu Municipal de Arqueologia, entre muralhas, no centro histórico da cidade, e o Museu Municipal de Etnologia de Serpa, entre outros. Dentro deste contexto estão inseridos os futuros pólos museológicos com instalação prevista em cinco localidades: Brinches, Pias, Vale de Vargo, Vila Nova de São Bento e Vila Verde de Ficalho.

A mostra artística continua, desta vez, com entrada n.º 1 da Praça da República. O interior do edifício da Câmara Municipal de Serpa é um verdadeiro museu. Nele proliferam trabalhos artísticos dignos de uma visita durante o horário de funcionamento dos serviços.

O itinerário prossegue cidade fora, pois há mais espaços a conhecer. Basta aceder à aplicação Serpa Tour, desenvolvida apenas para smartphones, criar o seu próprio roteiro e descobrir o território, com base no património paisagístico, cultural, edificado. 

A mudança dos tempos na relojoaria 

A colecção privada patente no Museu do Relógio é constituída por 2.000 exemplares mecânicos

Sem descurar do tempo e com o merecido vagar, é feita a visita ao Museu do Relógio. Instalado no vetusto Convento do Mosteirinho, este espaço, aberto desde 1995, tem no seu fundador, António Tavares d’Almeida (1948-2012), o reflexo da paixão pelo universo da relojoaria despertada no momento em que recebe três relógios de bolso da herança de seus avós. A necessidade de os restaurar foi o ponto de partida para procurar mais pelo país e pelo mundo. 


O relógio mais antigo data da primeira metade do século XVII

Com o passado do tempo, a colecção foi crescendo em número e valor reunindo, entre peças adquiridas e doadas, 2.600 exemplares mecânicos desenhados e concebidos por mais de uma vintena de marcas numa colecção privada. O mais antigo, da autoria do Mestre relojoeiro da coroa inglesa, Edward East, data de 1630, tendo chegado a Portugal aquando das Invasões Francesas.


Mostra de uma oficina de restauro de um Mestre relojoeiro

A salvaguarda do espólio está, actualmente, nas mãos de Eugénio Tavares d’Almeida, de 38 anos, filho do fundador, que mantém a exposição permanente, constituída por dois mil relógios de bolso, de pulso, de parede, de sala, em Serpa, com loja e oficina de restauro. Os restantes 600 integram a mostra patente no Palácio do Barrocal, em Évora.

Com as planícies sobre os nossos pés

A imensa paisagem alentejana predominou a vista durante a viagem de balão de ar quente

O bom tempo, com vento de feição é, por outro lado, o maior aliado de um passeio matinal de balão de ar quente. Acorda-se cedo, é certo, mas vale a pena. À nossa chegada, os balões estão estendidos sobre a terra às portas de Beja. O nascer do sol, os tons dourados da paisagem e a serenidade alentejana fazem parte do cenário.

Depois do briefing com os participantes, os balões começam a ser insuflados a frio. “É um jogo de paciência, porque é um actividade que depende das condições meteorológicas”, diz-nos Hugo Costa Domingos, director da Emotion – Life on Adventure. Logo a seguir solta um balão preto para verificar a direcção para a qual está a soprar o vento. Assim sabe-se, de antemão – e à partida – qual será o local de aterragem. 

Somos convidados a entrar no cesto previamente deitado. Depois há que colocar as costas contra a parte que está voltada para o chão, agarrar nas cordas com firmeza e flectir as pernas – a mesma posição é para repetir aquando da aterragem. “Ninguém sai sem indicação”, avisa Hugo Costa Domingos.


O concelho de Castro Verde está classificado como Reserva da Biosfera

A viagem decorre sob a Reserva da Biosfera de Castro Verde, vila do distrito de Beja. Trata-se da 11.ª primeira do país e a primeira a sul do Tejo a constar, desde 14 Junho de 2017, na Rede Mundial de Reservas da Biosfera da UNESCO.

As extensas planícies do Alentejo pejadas de tonalidades diversas de castanho dos pousios e das searas dão corpo ao bucólico cenário apaziguador em redor pontilhado, aqui e além, pelo verde de escassos arvoredos. A agricultura posta em prática reflecte o respeito pelos requisitas implementados a favor da nidificação e da alimentação das aves.

Ao longe, levantam voo as abertadas, uma das mais emblemáticas aves da região. A águia-imperial-ibérica é outra das presenças assíduas para estas bandas, prova de que o apreço pelas espécies é tida em conta no dia-a-dia, além do peneireiro-das-torres, espécie de falcão que, segundo Hugo Costa Domingos, nidifica nos buracos das ruínas do casario concentrado no Monte Paraíso.

Cerca de uma hora e meia depois é chegada a hora da aterragem. Seguem-se as indicações e, sem contratempos, o cesto pousa no chão. Já de pés bem assentes na terra, Hugo Costa Domingos e a sua equipa arrumam o equipamento para, depois, em conjunto, rumarmos para um lugar calmo onde é feito o brinde com uma flute de espumante, em tributo ao término das viagem de balão de ar quente de outrora.

Roteiro de garfo e faca

Vale a pena assistir aos ensaios de Cante do grupo “Os Camponeses de Pias” na Taberna dos Camponeses de Pias

Acalentar o estômago é, também, uma forma de arte indispensável à vida. E, no Alentejo, o receituário faz justiça à comida de conforto, aos sabores e à tradição. Comecemos este itinerário pela centenária e afamada Taberna dos Camponeses de Pias, onde a mesa e os bancos corridos sob o chão de pedra convidam ao convívio entre quem entra para almoçar. Prontos estão o caldo ou sopa de peixe do rio, os pezinhos de coentrada e o cozido de grão confeccionados pelo restaurante vizinho O Adro. Sem formalismo nem acanhamento, pega-se no prato, serve-se e senta-se onde se apraz. Esta comida precisa de tempo, de conversa e de vinho, para que fique temperada a preceito. 


Os Vinhos Margaça – Sociedade Agrícola de Pias são imperativos à mesa desta casa

O final é reservado ao Cante. A actuação é feita pelo Grupo Coral e Etnográfico “Os Camponeses de Pias” fundado na década de 1950 e formalizado em 1968. Actualmente, é constituído por 26 homens. António Lebre, responsável por este conjunto de índole musical, fala sobre este palco do Cante tradicional e inspirado em letras de músicos portugueses. “O Cante está lá todo. Simplesmente tem outras letras”, explica. “Acho que não devemos ficar presos com o que alguém deixou para trás” afirma, referindo-se à substituição das letras herdadas do passado “sem perder a linha do Cante de Pias”

Enquanto aguardam pelo início das obras de remodelação do espaço interior da Taberna dos Camponeses de Pias, “Os Camponeses de Pias” continuam com ensaio marcado à quarta-feira, às 21h30, no Verão, e às 20h30, no Inverno. “Quem quiser pode assistir. Pode marcar com a Casa de Cante ou passar por aqui e entrar.” 


Francisco Engrola, na sala, e Maria Isabel, na cozinha, formam a dupla de proprietários do Café Engrola, em Serpa

O n.º 11 da Rua da Porta Nova, em Serpa, tem Maria Isabel com a missão de cozinhar o que o Alentejo põe na mesa. Na sala está Francisco Engrola, sobrinho do antigo proprietário desta casa que tem a pesca de rio como tradição familiar, daí que a caldeirada do peixe de rio seja a especialidade deste Café Engrola, sem descurar a sopa de tomate, a carne de porco alentejano, as migas de tomatada, as pataniscas ou os chocos fritos. As portas abrem às 11h00, para os almoços, até às 16h00 e reabrem às 18h00, para o jantar. “No fim, cantamos uma canjiquinha e contamos umas anedotas” e os domingos estão reservados para as idas à caça e à pesca.


Torresmos, petisco alentejano, deve apresentar-se estaladiço como manda a cartilha do receituário desta região

O Alentejano é outro dos restaurantes recomendados. Instalada num edifício datado do século XIX situado na Praça da República de Serpa, esta casa tipicamente alentejana tem o receituário da região como o seu prato forte. Desde os queijos às sobremesas, passando pela sopa de tomate à alentejana, a sopa de cação de coentrada, o ensopado de borrego à postura, a tradicional carne de alguidar ou a carne de porco alentejano, há mais duas mãos cheias de sugestões à escolha.

Viagem pelo Alqueva

Quem alinha na viagem de barco pelo Alqueva tem a Marina da Amieira como ponto de partida

Para o turno da sesta está marcado um passeio de barco pelo Alqueva. O ponto de encontro é na Marina da Amieira. Aqui, os passageiros são submetidos a uma hora de formação, com o propósito de aprenderem a navegar. Depois é pôr as mãos no volante e seguir a sinalética pré-definida no GPS e no sonar da embarcação. 

A viagem pelas águas calmas do maior lago da Península Ibérica recai no barcos casa. Há-os com capacidade entre duas a 12 pessoas, para desfrutar durante umas horas ou para pernoitar. A experiência inclui petiscos e vinho regionais, mas a cozinha está aberta a quem quiser mostrar os seus dotes culinários a bordo. Salve-se quem efectuar previamente o pedido de churrasco, que fica sempre bem. 

Aproveite para complementar a serenidade da envolvente inóspita deste imenso lago com as visitas pelas aldeias ribeirinhas. Amieira, com a sua mais recente praia fluvial, Alqueva, Campinho, Telheira. Monsaraz, Morão, Juromenha e Estrela são algumas das povoações a descobrir no site e a conhecer in loco.

Além dos barcos casa, estão disponíveis, também, os cruzeiros disponíveis para grupos maiores.

Pão, pão, queijo, queijo

O queijo de pasta mole de Serpa feito a partir de leite de ovelha é o mais apreciado pelos locais

Ao pão alentejano, tão apreciado pelo comum dos mortais, é de se lhe juntar o queijo feito com o rigor de antigamente. Ou quase. Apesar das máquinas serem regidas pelo imperativo, o “fazer à mão” continua a merecer o respeito nos dias de hoje. É o caso da Tradiserpa, a queijaria do n.º 6 da Rua do Cano, em Serpa, ou rouparia, designação dada, antigamente, a estas casas, porque “usavam-se os panos brancos para coar o leite”.

A explicação é dada por Hélio Mateus, o cicerone da loja e fábrica de François Vez e Ana Palma, o casal produtor deste queijo feito a partir de leite de ovelha proveniente do rebanho da propriedade de ambos, o Monte do Barretos, onde Passo seguinte: o leite é aquecido a 30° C. Adiciona-se o sal e o cardo. Este é pesado de acordo com a quantidade da matéria-prima principal. Antes e depois de juntar o leite, a mistura é coada com o auxílio de um pano branco, entre outros passos simples que são realizados como se de um hábito se tratasse. 

Uma hora depois, está feito. O queijo é colocado na câmara frigorífica por 30 dias, findo os quais é disposto para venda na montra do espaço contíguo à pequena fábrica. Trata-se do queijo de paste mole, o mais procurado pelos clientes de Serpa e arredores. A certificação DOP (Denominação de Origem Protegida) só é atribuída ao produto com peso acima dos 735 gramas. Já o curado basta ser submetido a três meses de cura. 

Quanto à venda, esta sobre no Inverno. Esta época do ano está associada ao aumento da produção de leite, “o que é proporcional à quantidade de fabrico de queijo”, esclarece Hélio Mateus.

Copos ao alto

Herdade do Vau é um dos enoturismo a visitar, desfrutar e pernoitar com tempo

O que falta aqui? Vinho, claro está! E o Alentejo é a região detentora mui enorme diversidade de referências vínicas. Portanto, nada melhor do que pernoitar numa unidade de turismo rural com vertente de enoturimo. 

A Herdade do Vau, no Lugar Monte do Vau, em Quintos, no concelho de Serpa, é a fusão do silêncio com a rusticidade de uma paisagem toldada de verdes, ora do arvoredo, ora do vinhedo. “É um projecto claramente de emoções”, revela Miguel Sousa Otto, o proprietário, produtor e douto em matéria de economia. 


A propriedade vinhateira de Miguel Sousa Otto é um verdadeiro refúgio

A herdade comprou-a em 2006 e para ela trouxe a família e os amigos. Da filha mais velha, Maria Sousa Otto, recebeu o projectou de arquitectura do edifício principal, datado do século XIX, com oito quartos, e dos restantes espaços reservados ao alojamento – um quarto na Casa do Forno e dois nas no antigo estábulo. Além dos três apartamentos instalados no outrora lagar desta propriedade com um horizonte a perder de vista.

Entretanto, a vinha tinha sido plantada. Nuno Magalhães teve – e tem – um papel primordial na viticultura predominada por castas tintas, para fazer vinhos de lote dos quais Miguel Sousa Otto confessa ser “um fervoroso adepto”. As variedade de uvas brancas são adquiridas. Luís Sottomayor, amigo de longa data, cumpre com o seu trabalho de enologia.


Há três provas vínicas à escolha para melhor conhecer os vinhos Riso



A conversa prossegue no miradouro da propriedade, enquanto no sopé do lado de lá de uma das colinas situadas em frente corre devagar o rio Guadiana. O cenário de estio, agraciado pelos dourados do pôr-do-sol, é de cortar a respiração. Em baixo, na discreta piscina infinita, os hóspedes são agraciados pela mesma composição paisagística ornamentada por semelhantes cores. Irremediavelmente, é por aqui que são realizadas, no Verão, as provas vínicas acompanhadas por petiscos.

O jantar é, simplesmente, pretexto para continuar a conversa na sala de jantar da casa onde, todas as noites, é servido um menu e, logo pela manhã, é reservada ao pequeno-almoço para os hóspedes. Os momentos de convívio à mesa são harmonizados pelos Riso, nome atribuído ao portefólio de vinhos da Herdade do Vau, ao qual será adicionado, brevemente, a boa nova.

Sharish, o gin alentejano

António Cuco, o mentor do Sharish, soma e segue nestas andanças da arte de bem fazer gin

Apesar do pôr-do-sol estar a milhas no que ao tempo diz respeito, antes da despedida, aguarda-nos a visita guiada ao Centro Interpretativo do Gin. Situado na Quinta do Moureal, em Reguengos de Monsaraz, este espaço, aberto há um ano, pertence a António Cuco, destilador do célebre Sharish Gin que “voa”, desde há um ano, na companhia aérea nacional TAP. 

Mas desçamos à terra. O objectivo do centro interpretativo é implementar o “ginturismo”. A ideia é os visitantes conhecerem a história do Sharish Gin, descobrirem os botânicos e a fruta utilizados na feitura de cada uma das referências criadas por António Cuco. Para o efeito, está patente um núcleo explicativo e expositivo inerente a esta bebida. “Os primeiros gins foram feitos na panela de pressão adaptada”, o alambique onde, inicialmente, os botânicos eram destilados um a um, seguindo-se a mistura dos mesmos. 

Incluídos neste percurso estão, também, a destilaria e o armazém. Aqui, estão cerca de dois mil baldes de infusões diversas. A fruta e o alecrim, por exemplo, são portugueses. Os botânicos são provenientes, maioritariamente, de outras paragens. A água engarrafada é proveniente de Paredes de Coura.

A visita guiada (gratuita) pode terminar no bar instalado neste espaço, onde é feita a prova de gins (paga) ou começar num passeio com ou sem almoço, já que, agora, o Alentejo não é só vinho.


+ Turismo do Alentejo
© Fotografia: João Pedro Rato

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