“Talvez seja o único chef com duas estrelas, pelo menos, em Portugal, que não quero a outra estrela, porque estou muito bem aqui com duas” / Chef Benoît Sinthon

O caviar de peixe espada é o mais recente produto de Benoît Sinthon, o chef francês que, desde 2004, está de pedra e cal no Il Gallo d’Oro, restaurante do The Cliff Bay, no Funchal, com duas estrelas Michelin. A primeira é anunciada em Novembro de 2008 e as duas já constam no Guia Michelin de 2017. Mas há mais ou não fosse, o nosso entrevistado, um entusiasta das novidades na cozinha e, acima de tudo, do terroir madeirense. Vamos lê-lo!


Antes de mais, vale a pena a introdução sobre Benoît Sinthon, nascido em 1972, na vila de Gardanne. A sua ligação à avó, com quem passava os fins-de-semana, em Marselha, cidade portuária do sul de França, remete o agora chef para os aromas da comida caseira confeccionada com os produtos comprados no mercado local. Foi, porém, a pastelaria que o motivou a entrar no mundo da cozinha, desta feita, na escola profissional da hotelaria de Gap, nos Alpes franceses, mas cedo percebeu que o que queria era cozinha.

“Comecei num antigo Relaix et Châteaux. Era um pavilhão de caça, onde tive a sorte de apanhar aí duas escolas muito boas: a cozinha francesa tradicional, com um chef com quase 60 anos, e um chef de 35, que vinha de casas grandes de três estrelas. Tinha aqui o chef criativo, daqueles que fazemos “uau!” quando entramos na cozinha e queremos ser assim, e o chef com método, com rigor. Uma cozinha criativa e uma cozinha de Escofier.” Chamava-se Le Moulin de Vèrnegues e está situado em Aix-en-Provence e Avignon. 

Após o estágio quis regressar à escola. “Só nos dias que cozinhava é que estava feliz, mas havia outros em que tinha de ir para o computador fazer a parte da contabilidade. A meio do ano desisti e entrei numa casa com estrela Michelin que se chamava – e ainda se chama – Hotellerie du Vallon de Valrugues. Era maravilhoso, mas duro. Estive lá três meses. A cozinha era brutal! Como tinha um amigo de infância que trabalhava lá comigo e, depois, arranjou um outro trabalho num Relaix et Chatêaux com uma estrela [Michelin], na Côte d’Azur, o Château Saint-Martin, em Vence. É um sítio lindo de morrer! Grande casa, grande equipa! Almoços e jantares, na mesa do chef, dentro da cozinha. Todos os dias um cozinheiro cozinhava para todos e o chef comia connosco. Foi fantástico!”


Em 1991 regressa a Aux-en-Provence. Prosseguiu o seu trabalho como cozinheiro em sítios diferentes até, em 1993, conhecer a sua mulher, natural da Madeira, no Château de Rochegude. Em 1994 viajam até à “Pérola do Atlântico” em direcção ao Reid’s Palace, onde no festival gastronómico, então designado de “Tee & Toc”, conhece o chef Jean-Michel Lorain. Como era o único da cozinha a falar francês, ficou encarregado de traduzir os seus pedidos enviados via fax e de o acompanhar durante o evento. Em 1996 estava, novamente, em França, mais concretamente no La Côte de Saint-Jacques, localizado em Joigny, na região da Borgonha.

“Uma grande escola! E, como costumo dizer, quando o piloto de rali ou de carro que, quando chega à Fórmula 1 e faz grande prémio, ou seja, de repente, está perante o melhor fogão, a melhor loiça, os melhores pratos, a melhor equipa. Fiz preparação de peixe, preparação de carne, estive 11 meses no saucier (secção dos molhos, caldos)… O homem foi espectacular para mim. Só pensava: ‘quero fazer um três estrelas para, quando regressar, poder criar a minha cozinha com um ambiente madeirense.’ Foi o que aconteceu. Regressámos – a minha mulher e eu – em 1998 e casámos em Agosto desse ano. Fui para o [Hotel] Savoy, onde fiquei com sub-chef, porque queria aprender a parte da logística, da gestão, aprender como se lidera uma equipa grande, onde fiquei um ano e meio. Estava como encarregado do restaurante gourmet deles, o Flor de Lis. Na altura em que os Blandy queriam ter o primeiro Relaix et Châteaux na ilha, contrataram-me assim que saiu o chef inglês deles. Permaneci, entre quatro a cinco anos, na Casa Velha do Palheiro, com o director Jan-Eriç Ringertz que, mais tarde, veio parar aqui, ao Porto Bay. Quando o chef do Cliff Bay foi embora, em 2004, propuseram que viesse… et voilá! Cá estou!”

Podemos afirmar que o desafio é uma constante no percurso seu pela cozinha.

Soube sempre onde queria chegar e o que queria fazer, desde que vim para esta ilha pela primeira vez. Dizia sempre: “a Madeira é linda, a hotelaria é brutal, mas falta trabalhar a gastronomia”. Tenho um amigo que, nos tempos em que ainda estava em França, dizia: “de todos nós que estamos aqui, eu vou ganhar a estrela Michelin”. E eu dizia: “penso que serei eu o primeiro na Madeira a ganhar uma estrela.” Então combinámos que o primeiro a ganhar a estrela telefonasse para o outro. Um dia ligou-me e disse: “Benoît, estou na Suíça. Acabei de ganhar uma estrela!” Respondi: “Estou a tentar uma na Madeira”, respondi-lhe. Isso aconteceu em 2006. Em 2008 ligo-lhe eu: “meu amigo, lembra-te do que te dizia de que iria ser o primeiro da Madeira a ganhar a estrela. Já está!” Ainda hoje falamos sobre isso. Sempre foi o meu objetivo. Ninguém acreditava que seria possível. Em Novembro de 2016 são anunciadas as duas estrelas [Michelin].

Lembra-se da primeira carta que criou para o Il Gallo d’Oro?

Lembro! Uma das minhas condições, para ganhar tempo, foi trazer a minha chef pasteleira da Casa Velha do Palheiro e uma cozinheira que está comigo desde o [Hotel] Savoy e que, agora, está na pastelaria. E cerca de 70 por cento da carta que tinha na Casa Velha do Palheiro encaixei no Il Gallo d’Oro. Funcionou muito bem! Foi uma mudança suave. Como o restaurante se chama Il Gallo d’Oro, a única coisa que o marketing tinha de informar era de que se tratava de uma cozinha mediterrânica e não de um restaurante italiano. Foi o que fizemos. Com este menu, os clientes sentiram a diferença: mais rigor na cozinha, mais técnica, mas com os sabores de antes. Ou seja, de 2004 a 2008, fizemos uma cozinha mediterrânica. Com a primeira estrela, já apostava nos ingredientes madeirenses. Hoje é assim, mais Madeira. Com a segunda estrela, os produtos de cá são cada vez mais trabalhados. Nos peixes temos bodião, pargo, cherne. Uso muito pouco linguado, robalo. Como a Madeira está na rota dos Descobrimentos, aproveitámos o atum, a cavala, a lula para introduzir a influência asiática, o que funciona bem.


Foi fácil encontrar, em 2004, na ilha, os produtos que queria?

Não! Era preciso fazer um trabalho de pesquisa muito grande, saber onde encontrar os produtores. Um grupo de chefs amigos meus íamos ter com os produtores, falávamos dos produtos que tínhamos e que queríamos. Não se conseguia cozinhar só com produtos vindos de França ou de Itália. Estávamos na Madeira e queria ter produtos de grande qualidade. O mais difícil é ter um restaurante gastronómico num hotel, mas eu queria ter mais fornecedores, porque preferia carne e peixe frescos. Não queria nem carne nem peixe congelados. E tinha Jan-Eriç Ringertz, que me apoiou muito! Como queria ganhar a estrela, tinha de desafiar a “ginástica” dos pequenos produtores que acreditavam em mim e em outros chefs. Queria que todos acordasse, e percebesse, que os chefs, na Madeira, queriam trabalhar produto de qualidade. Entre 2006 e 2012 fazíamos, também, showcookings pela ilha, o que levou a conseguíssemos mais produtos regionais e a eliminar as encomendas semanais vindas de França. 

O que mudou a respeito da matéria-prima madeirense, tendo em conta que houve este processo de mudança de mentalidade dos agricultores, de fazê-los acreditar que havia mercado para os produtos deles?

Mudámos muito! E a administração sempre me apoiou em tudo, até na horta! Estamos a chegar à horta.

Vamos, então, à horta. Foi iniciada em 2015 e a primeira vez que “deu frutos” foi em 2016. Veio preencher um vazio no seu dia a dia no Il Gallo d’Oro. Este vazio já está completamente preenchido, tendo em conta que tem uma cozinha exigente? É um chef exigente?

Tem de ser! Nesta linha, se não somos exigentes, podemos perder as estrelas. Se, a este nível, não se tiver rigor, perde-se logo! Quando ganhamos uma, temos de olhar para a segunda, para manter a primeira. Quando queremos a segunda, temos de batalhar, para quem, uma dia, possa chegar. Assim que temos duas, temos de olhar para a terceira, mas eu não quero a terceira. Sou o primeiro, na Madeira, a não querer a terceira. Talvez seja o único chef com duas estrelas, pelo menos, em Portugal, que não quero a outra estrela, porque estou muito bem aqui com duas.

Já lá vamos a essa questão (risos). Voltemos à horta.

A horta veio tapar este buraco. Tenho, agora, produto fabuloso!

Parece que tudo o que é semeado e plantado aqui, nasce. É verdade?

Fui o primeiro, em 2016, a ficar babado com a horta. Também o nosso director, António Pais, que entrou em 2014, ficou muito feliz. Esta mudança foi muito boa, porque o António Pais é fanático pelas hortas. Tem uma horta na casa dele! O homem sabia tudo sobre a horta e criou-a! Foi quem fez tudo para que tivéssemos a horta. Em 2016 começámos a ter beringela, abóbora, couve, erva aromáticas… de repente, tinha tudo! A respeito à sua pergunta, sim, é verdade: cresce tudo aqui! É incrível!


O irrepreensível caviar de peixe espada é o protagonista do primeiro snack do menu do Il Gallo d’Oro e o produto estrela do chef Benoît Sinthon


O chef é conhecido como o embaixador do produto madeirense. Quanto à cozinha de cá li, numa entrevista, que aprendeu a fazer cuscus com uma senhora em São Vicente. Conte essa história.

Para servir cuscus no Il Gallo d’Oro, por exemplo, tenho de perceber se está bem feito, tenho de contar uma história ao cliente, não posso arriscar! Ou seja, tudo o que vai para a mesa do Il Gallo d’Oro foi testado as vezes necessárias. Tem de ir tudo direitinho. Por isso, fomos lá com toda a equipa de cozinha envolvida e fizemos o cuscus, com segorelha, com a D. Fátima. Comemos com a senhora e as três amigas dela que também sabiam fazer o cuscus. Foi lindo! Toda a costa norte da Madeira é terroir, um tesouro! As pessoas gostam de comer bem. Tem produto, tem gente que cozinha na lareira, que coze pão em folha de couve, que cozinha os bolos de noiva, que tem a sopa é feita no pão, que tem o cozido no panelo, com inhame, carne de porco, pimpinela e é servido em folhas de couve e as pessoas partilham… Ou seja, tenho aqui a técnica francesa e, por outro lado, tenho um terroir fantástico. Fizemos, no mês passado, uma coisa nova: criar um caviar de peixe espada. Vamos apostar neste. E quero usar os produtos de terroir da Madeira.

Tem sido fácil manter a relação com os fornecedores? Faço esta pergunta também pelo facto de não haver uma raça DOP na Madeira.

Sou muito transparente. Agora está na época do veado, por isso compro o veado de França. Neste momento tenho pombo royal, de França, leitão, do continente, e galinha bio, daqui, da Madeira. No meu à la carte há o meu “Do Vale à Montanha”. A alternativa ao pombo fresco é a galinha bio, que também o é se, para a semana, tiver veado ou leitão. Adoro leitão! Aqui há um ou dois sítios onde já se come bom leitão. Quanto à sua pergunta, sim, é fácil. Quando ganhámos uma estrela, as pessoas ficaram surpreendidas. Ou seja, é como quando o Leicester ganha na Primeira Liga, porque todos apostam no Chelsea ou no Manchester United. Aqui aconteceu o mesmo. ‘O Il Gallo d’Oro? Onde? Na Madeira?’ Não conheciam. A Michelin gosta de baralhar isto tudo! Foi o que aconteceu com o Bon Bon, quando ganhou a estrela Michelin. Ou o G, em Bragança? E, este ano, a Mesa de Lemos. É óptimo! Quando ganhamos, todos queriam saber quem eram os nossos fornecedores.


“Ondas Cristalinas” é o nome deste memorável prato que convida o palato a embarcar nos sabores genuínos dos produtos do mar


Mas isso é óptimo, até porque ajuda a impulsionar a economia. 

Foi fantástico! Mas tive ir procurar outros produtos. Obriga-me a ser sempre mais criativo. 

Como se tem vindo a revelar a postura dos cozinheiros, de quem quer vir trabalhar para a sua cozinha? Acha que quem chega aqui sente-se como “peixe na água” e que este trabalho é “sem espinhas”?

Cada caso é um caso. O meu braço direito está comigo há 13 anos. O meu número dois está há dez. O número três deve estar há cinco. Depois tenho dois que sairam porque tinha outros objectivos, com o Avista, onde está o João Luz, que está comigo há uns seis anos e para quem criámos uma equipa com a qual me sinto bem. É o meu Real Madrid! Quem fica aqui passa por todas as secções, fica a conhecer a escola francesa e a escola madeirense. De volta à sua pergunta: para quem tem 22 anos e quer ser chef aos 32, o Il Gallo d’Oro é uma excelente casa. Mas não chega! E isso falta em qualquer parte do mundo. Se nas suas folgas e férias não for comer a outros restaurantes com estrelas Michelin, não aprende como se faz vinho, não pesquisa sobre o Vinho Madeira, não vai a Champagne, para provar champanhe e perceber como se faz, ou não vai a Borgonha, a Bordeaux, a Chateau de la Loire, ou ver como se cozinha leitão… Pode trabalhar nas melhores casas do mundo, com os melhores chefs do mundo, mas se não for um epicurista e não fizer este investimento, não chega lá! A nossa geração fazia isso. Gastava o meu salário num três estrelas Michelin, em Paris, mas precisava de ter esta experiência. Senão, é-se um cozinheiro atrás do fogão sem referências. Não se pode pensar que, ao fim de três anos, já se sabe cozinhar foie gras, caviar de espada. E o básico? E o inhame? “O inhame é uma árvores enorme, com um tronco enorme…” Perante esta resposta, ninguém é chef! Por isso precisamos de conhecer o terroir, saber de onde vem a batata, de onde vem o inhame…

Estou a ver que o inhame é um produto estrela! 

Já foste! Vai passar a ser! (risos)


“Do Vale à Montanha” é outro dos momentos do menu do premiado restaurante do hotel The Cliff Bay, aqui com o veado como produto principal


O que tem a dizer acerca do horário dos estágios de cozinha, das nove às cinco? Acha que este é um dos motivos que resulta na má preparação dos jovens para o mercado de trabalho na cozinha? O que acha que deveria ser mudado, para ajustar este registo com a realidade.

Está tudo errado! A sorte é que ainda há os estágios nas estrelas Michelin. Se um jovem madeirense quer falar comigo e eu estiver aqui, recebo-o. É a única maneira de o integrar aqui, porque se estiver numa escola de hotelaria tem de ter a sorte de lhe calhar no The Cliff Bay ou o Reid’s Palace. E há outros hotéis que estão a fazer um ótimo trabalho na Madeira. Caso contrário, vai para um restaurante de praia, ou um buffet, ganhar e fazer o mesmo toda a vida. E quem nasce sem dinheiro e quer ir para a Escola de Paul Bocuse, por exemplo? Não consegue. É triste ver que ninguém olhe para a gastronomia como deve ser! É preciso mudar as mentalidades.

Se arrecadasse três estrelas Michelin, o que faria para reconquistar esse desafio?

Da experiência que tiro de todos os três estrelas que tenho ido – já fui a muitos –, tinha de fazer uma remodelação no Il Gallo d’Oro. A cozinha tinha de passar para a sala, onde ficaria a mesa do chef. O meu escritório seria muito simples. Seria do género de um aquário, para receber os jornalistas, para dar entrevistas, e com um ecrã, para que não houvesse papel. A mesa do meu escritório seria em madeira, corrida, de forma a que permitisse ser acrescentada para seis pessoas, mas que desse, também, para quatro ou três clientes… ou nove. A minha comida seria praticamente a que tenho hoje, ligeiramente mais restritiva e com cada vez mais terroir madeirense.


É um recado para o Dr. António Trindade? Tem tudo bem definido!

(Risos) Tenho tudo bem pensado mas, como costumo dizer, sou o primeiro a não querer a terceira estrela [Michelin]. Três estrelas [Michelin] custa muito dinheiro! Quero fazer como Villa Joya: festejar os 20 anos com as duas estrelas Michelin. Bom, o certo é que não pensávamos que iríamos ter uma, mas ela apareceu. Não sonhávamos que seria possível ter duas, e ela aí estar. E depois? A terceira nem o chef quer!


A banana da Madeira é apresentada, à sobremesa, em várias texturas sob a designação “Inspiração Exótica” ao lado da cana-de-açúcar e do Vinho Madeira, três elementos que conferem a identidade da ilha


Além do “A La Carte”, a respeito do qual o chef Benoît Sinthon sugere menus de cinco, seis, nove e dez momentos, os comensais do Il Gallo d’Oro podem escolher o “Menu Confiance”. Todas as possibilidades podem ser acompanhadas pela selecção de vinhos a cargo de Sérgio Marques, escanção do restaurante.

+ Il Gallo d’Oro
+ Grupo Porto Bay

© Fotografia: João Pedro Rato

(A Mutante agradece à TAP o apoio a esta viagem à ilha da Madeira)

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