É ribatejano. Tem, desde 2022, o Rossio Gastrobar, do Altis Avenida Hotel, nas mãos. Gosta de criar em equipa, de desafiar todos os que o rodeiam manter o cérebro a trabalhar infinitamente, de reavivar memórias gustativas, de partilhar sabores. Dá primazia ao produto nacional e mantém uma relação de amizade de 20 anos com fornecedores em solo português.

A vista sobre a cidade é apenas o aperitivo, no Rossio Gastrobar
João Correia foi o “aluno mais novo, com 14 anos, a entrar na Escola de Hotelaria e Turismo de Lisboa”, quando esta instituição de ensino se localizava nas Olaias. Faz a inauguração do hotel Vila Galé Ópera, em Alcântara, em 2001, e, três anos depois, está no Hard Rock Café, em Lisboa. Ao fim de um ano, opta pelo Pestana Palace, onde, ao longo de dois anos, aprendeu a ser cozinheiro, graças às lições intensas de culinária do incontornável chef francês Aimé Barroyer. Seguiu-se a Bica do Sapato, por três anos, e o Casino de Lisboa, onde integra na equipa do chef Fausto Airoldi, com João Rodrigues, chef do Canalha, em Lisboa, e João Simões, chef do Casta 85, em Alenquer. A entrada no Grupo Altis Hotels acontece em 2008, ano da inauguração do Altis Belém Hotel. Ao fim de cinco anos, é convidado a chefiar o Rossio, restaurante do Altis Avenida Hotel.

“Sou um cozinheiro à antiga, uma pessoa muito preocupada em servir, em cozinhar para alguém. Não tenho a cozinha como algo para o meu ego ou para me fazer feliz”
chef joão correia
A mudança para o Rossio Gastrobar surge na primavera de 2019, aquando da restauração e ampliação do Altis Avenida Hotel. Inicialmente, é João Rodrigues que desempenha a função de chef executivo, enquanto João Correia tem nas mãos a presença assídua neste espaço instalado no sétimo piso da referida unidade de cinco estrelas. Em 2022, João Correia assume a liderança da cozinha deste espaço intimista, onde a música rima com a movida lisboeta, a comida criativa tem o vinho e os cocktails como companhia, e a vista sobre a cidade se estende ao rio Tejo. Leia a entrevista ao chef.
Que adjetivos elege para o definir como chef?
Acabei o curso com uma ideia sobre o que é ser cozinheiro, mas quando cheguei ao Pestana Palace percebi que não era cozinheiro. Foi onde me formei como cozinheiro. A escola francesa e a forma apaixonada com que o [chef] Aimé [Barroyer] vivia, e vive ainda hoje, acaba por me influenciar. A mim e a todos que por lá passaram. Portanto, sobre mim tenho a dizer que sou uma pessoa muito apaixonada a cozinhar. Sou verdadeiramente feliz a fazer pessoas felizes, a partilhar o que faço. Sou um cozinheiro à antiga, uma pessoa muito preocupada em servir, em cozinhar para alguém. Não tenho a cozinha como algo para o meu ego ou para me fazer feliz.
Quão enriquecedor foi aprender com grandes nomes da cozinha, como o chef Aimé Barroyer?
E os chefs David Jesus, Henrique Mouro… Foi um enriquecimento muito grande, uma dura chapada de realidade culinária sob a alçada de uma rígida escola francesa, onde se falava de uma forma muito ríspida, dura, ordinária, às vezes, que pouca gente aguentava durante um longo período de tempo, mas que, com alguma perseverança e vontade de querer chegar mais longe, me permitiu enriquecer muito a minha biblioteca culinária e sair com uma formação que me fez acreditar ‘agora sim, sou cozinheiro’.

Presa de porco alentejano, alface grelhada e “as melhores batatas fritas da cidade de Lisboa”, garante o chef
O que mudou desde então na alta cozinha?
Tínhamos várias abordagens em relação a este tema. Muito mudou em relação ao produto, aos recursos humanos… Muito mudou na valorização da profissão. No final dos anos 90 e início do ano 2000, estávamos muito virados para o produto estrageiro, como o foie gras, as coxas de pato confitadas que mandávamos vir de França, os produtos japoneses… Foi preciso vir um chef francês explicar-nos que nós tínhamos o melhor produto do mundo e ensinarmos fazer alta cozinha com o nosso produto. Foi a partir daí que começámos a olhar mais para dentro. Hoje, o que é nosso – o nosso produto e a nossa cozinha – é prioritário. É o nosso produto, é a nossa identidade. O que vem de fora vem para acrescentar valor ao nosso prato e não para brilhar. A respeito dos recursos humanos, foi inevitável que a cozinha com este nível, com pressão e, às vezes, com desrespeito para com os subordinados, tivesse a tendência de desaparecer. Acho que essa mudança se dá e acelera quando veio a pandemia. Obrigou a que repensássemos as estratégias e abordagens ao nível dos recursos humanos, para garantirmos pessoal para trabalhar. Quem quer trabalhar num ambiente hostil?
Que descrição faz sobre o projeto gastronómico do Rossio Gastrobar?
Diria que esta dinâmica foi pensada à volta do bar. Aquilo em que nos focámos, numa fase inicial, ainda com o João [Rodrigues] cá, foi: um gastrobar aporta uma responsabilidade em dose dupla. Ter a melhor barmaid do país deu-nos logo a alavancagem que precisávamos. Gosto muito de trabalhar com a Flavi [Andrade] e com o Gui. Construir gastronomia à volta daquilo que é esta espetacular equipa de bar, não é difícil! É criar, basicamente, o encontro entre o produto bem identificado, fácil de interpretar à mesa, para não se sobrepor à criatividade gastronómica dos cocktails feitos pela Flavi. Confesso que, antes, não fazia ideia sobre o que se fazia no mundo da cocktelaria. Tem sido uma aprendizagem muito boa. Acabamos por trocar técnicas, o que faz com que todos, o conjunto, no nosso gastrobar, seja muito bem conseguido, seja algo muito rico. Todos os dias, pomos a cabeça a pensar. Tanto eu como a Flavi assumimos que é um processo de equipa. Nunca gostei de me assumir como um criador a solo. Gosto muito de trabalhar em equipa.
Quanto vale o processo criativo para um chef de cozinha de autor? O marcante trabalho de equipa não invalida que haja um líder na cozinha.
É como imaginar um Lego. Um tem cinco peças, um tem duas, outro tem três e outro tem uma. No fim, acabo por montar tudo, com o meu know-how, a minha experiência, a minha biblioteca mais aumentada, obviamente, do que a deles, para acabar por chegar ao produto final, que vai agradar a todos. Mas sempre numa vertente de equipa. Não quero chegar ao fim e assumir o crédito do prato. Gosto de ir à mesa e digo às pessoas de quem é o prato. Chamo e digo ‘a ideia deste prato é deste menino que aqui está!’ Adoro fazer isto e adoro que participem. Gosto mais de chegar ao fim do dia e receber um aperto de mão e ouvir ‘estava espetacular’ do que ouvir ‘está aqui a tua tip de 20 euros’.

Os queijos, outra das grandes paixões de João Correia, estão disponíveis durante os meses frios do ano
O produto nacional é a peça-chave do Rossio Gastrobar. Que valor tem aqui? É fundamental. Sou ribatejano, por isso sempre tive muita vontade de trabalhar o produto português. Quando comecei a trabalhar com cuscuz, no ano 2004 ou 2005, se calhar a maioria dos cozinheiros, em Portugal, não sabia o que era cuscuz ou o redanho. O João Rodrigues é uma mente brilhante com o Projeto Matéria, onde explora precisamente o produto nacional e dá a conhecer aos chefs o produto nacional. Sempre foi um explorador por natureza, deu-nos a conhecer muita coisa, trouxe 100% de produto português para o Rossio Gastrobar. Portanto, seria descer de nível não manter esse produto. A matriz é essa e é essa que queremos manter. Trabalhamos com muitos produtores há já muitos anos. Continuo a trabalhar com uma pessoa que me acompanha há vinte e tal anos, ou seja, desde o tempo da Bica do Sapato. É o António Pinheiro. É exímio a encontrar o que mais ninguém encontra. Trabalho com o André, do peixe, do Mercado 31 [de Janeiro], com a Nutrifresco, a SEL… Felizmente, não temos dificuldade em trabalhar com o melhor produto nacional.
O que pesa na decisão de escolher um produto em detrimento de outro?
O trabalho de equipa estende-se para lá da equipa do Rossio Gastrobar ou da minha equipa de cozinha. Gosto de ter proximidade com os produtores e os fornecedores, e permitir que também tenham uma influência direta no que estou a comprar ou a escolher comprar. Às vezes, estou a falar com o André à uma da manhã, porque apareceu aquela barriga de atum ou umas golas de atum espetaculares, ou porque os salmonetes estão extraordinários… Ou seja, eu deixo-me influenciar muito pelo que os parceiros e amigos têm para me trazer, daí que a nossa carta acaba por não ser muito extensa, porque queremos fomentar o “Fora da carta”.
De que forma são apresentadas as sugestões “Fora da carta” são feitas aos clientes?
Antes de iniciar do serviço, fazemos um briefing, onde é apresentado o “Fora da carta”. Muitas vezes, trago o prato para experimentarem. Para mim, é muito importante que quem está na sala experimente o prato antes de o vender, porque é importante que “salive” quando está a explicar o prato. Portanto, o cliente entra e os nossos colegas dizem qual é o prato “Fora da carta”.
Que ingredientes ou pratos se mantêm na ementa do Rossio Gastrobar desde o dia em que assumiu a função de chef neste espaço?
O bacalhau à Braz, por exemplo. Mas há pratos que saem por causa da sazonalidade. Por exemplo, no verão passado tivemos uma sanduíche, que, a pedido de muitos clientes, vamos voltar a ter este verão. Criatividade sim, é giro. Gostamos muito de fazer coisas novas, mas também gostamos muito de agradar o cliente e voltar ver o cliente a reviver memórias. Mas, afinal, o que é que o cachorro tem que ninguém gosta? O pão é enfadonho, a salsicha é insípida e não há uma chapada de surpresa gastronómica numa dentada naquilo. Vai sentir ketchup, maionese e mostarda, e o crunchy da batata. Aqui, a ideia foi reconstruir o cachorro a partir do zero. Temos uma salsicha de porco preto, com nuances de picante, feita no Alentejo; a base ou o pão é um folhado. Temos maionese de cebolinho, kimchi, feito por nós, e cebola frita. A junção disto tudo é… tem de experimentar. Portanto, processo criativo sim, mas há memórias que vale a pena reviver.

O bacalhau e molho tártaro é a boa nova das propostas gastronómicas para este verão
Como surgiu a ideia para este bacalhau e molho tártaro, novidade na ementa do Rossio Gastrobar?
Ainda sobre o bacalhau à Braz, a ideia foi desconstruir o prato original e misturar o bacalhau no prato à frente do cliente. A inspiração para o bacalhau e molho tártaro foi muito simples: queríamos ter um bite de bacalhau para o verão, que fosse crunchy e fresco ao mesmo tempo. Ou seja, para acompanhar um drink, uma cerveja ou um cocktail, lembramo-nos do choco frito, mas a ideia foi não fazer o choco frito, mas sim bacalhau frito. Agarrámos no bacalhau fresco e cortámos umas tranches gordinhas, para sentir a humidade do bacalhau, e fizemos uma marinada de gengibre, sumo de lima e coentros. Depois, panámos o bacalhau e fritámos. Fizemos o nosso molho tártaro, desde a maionese aos pickles, com cebolinho fresco e um pouco de lima, para dar acidez ao molho e termos um bite bem fresco.
Como é feita a coordenação entre o chef João Correia, a vossa equipa, o escanção e a Flavi Andrade?
O Rossio Gastrobar está aberto ao almoço. Servimos almoços. Mas o nosso core business é o final tarde e a noite. A mudança do som, a mística do Gastrobar puro e duro acontece das cinco e meia para a frente. Há um briefing às cinco e meia e arranca. Desde o início que fomentamos a ideia de que os cocktails são altamente gastronómicos. Gostávamos que houvesse cada vez mais abertura para fazer uma refeição totalmente acompanhada por cocktails. Dou sempre um exemplo muito prático: adoro comida de tacho. Sou ribatejano. Adoro uma boa feijoada, cozido à portuguesa… Mas se comer uma feijoada com um vinho tinto bestial, carregado, o mais provável é dormir uma sesta debaixo de um chaparro. Se fizer a minha refeição de feijoada com um cocktail feito à base de shrub, gengibre, lima e limão, mel e uísque, que tem um poder digestivo extraordinário, chego ao final da refeição e estou pronto para comer queijos. Mais do que aceitar que é giro, é aceitar que [o cocktail] é um complemento digestivo. Posto isto, temos um menu [de degustação] de cinco momentos, com sugestões de pairing com cocktails e vinho. Também temos uma panóplia de chás. Têm de vir e provar! Estamos num contexto cinco estrelas e quando é assim, não existe o “não”! Tenho de ir ao encontro com o que o cliente quer à refeição. Não é vinho que quer? Temos chás, temos cocktails. Quer um sumo de abacaxi? Nós fazemos. Se não tiver a matéria-prima, tentamos outra coisa semelhante. O que eu quero é que o cliente saia daqui com a sensação de que teve o que queria.
É ir!
O bacalhau para além das 1001 receitas
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