A eterna arte do Vinho do Porto / The Fladgate Partnership (parte III)

“Trabalhar para as gerações vindouras com a herança do passado”. Eis o mote da conversa com António Magalhães, o diretor de viticultura na Taylor’s, na Croft e na Fonseca, detentor de um saber ímpar e de um incomensurável humor, e um apaixonado pela mais antiga região vitivinícola demarcada do mundo.

António Magalhães, o diretor de viticultura na Taylor’s, na Croft e na Fonseca

Antes da Quinta do Panascal, situada no extremo norte do rio Távora, a cerca de quatro quilómetros a oeste da localidade do Pinhão, voltamos à Quinta da Roêda, localizada a dois passos do centro da vila do Pinhão, no Douro vinhateiro. Com o Centro de Visitas e a vinha com uma escola a céu aberto – já lá iremos –, aguarda pela nossa chegada António Magalhães, 57 anos, nascido numa família ligada à produção de Vinho do Porto e licenciado em engenharia agrícola.

Diretor de viticultura do grupo The Fladgate Partnership, revela-se um exímio contador de histórias testemunhados pelos anais sem, jamais, suspender a tradição nem a vetusta sapiência dos antepassados durienses e o “velho” hábito adquirido há cerca de duas décadas: enviar, regularmente, e por correio tradicional, cartas aos viticultores que fornecem as uvas para o grupo. O propósito é informá-los sobre o ano vitivinícola, no que concerne às ameaças de doenças e pragas das vinhas, e ao clima, bem como fornecer-lhes os resultados dos trabalhos de investigação científica.

A palavra ‘tradição’ está, por conseguinte, presente na dialética de António Magalhães, “não no sentido de conservar, mas porque tudo aquilo que se faz na região tem uma razão de ser.” Na The Fladgate Partnership “fomos acompanhando os tempos e onde esteve o proveito sábio da nossa região e da nossa empresa foi em ter sempre o foco no Vinho do Porto”, que resulta da co-fermentação, ou seja, da fermentação conjunta, da contribuição de várias castas autóctones e é “o único vinho que nos distingue no mundo”. Por essa razão, o diretor de viticultura do grupo reforça quão importante é pensar como os ingleses, para quem há que “trabalhar para as gerações vindouras com a herança do passado”.

Um local, um clima e um solo

Eis os três critérios elementares na feitura de um vinho que reflete uma herança que conta ir mais além do futuro num Douro vinhateiro com 240 mil hectares de área, uma região coabitada pela oliveira, outrora utilizada para demarcar as propriedades, e pelo mato mediterrânico, onde existem vários modelos de vinha sob um clima similar ao do Mediterrâneo, o qual propicia “a produção de uva com grande teor alcoólico, menos ácido e, como é muito violento nos meses de verão – é para além de mediterrânico, pois chega a ter pontos de um clima desértico –, acaba por exercer um excesso de amadurecimento da uva” feito a partir de castas autóctones que, deste modo, permitem potenciar um vinho “que é irrepetível em qualquer outra parte do mundo”.

Um legado produzido numa região de viticultura de montanha, sendo indispensável – e, por isso, garantida – uma arquitetura de terreno que perdura no tempo, uma “arquitetura que está na base da conservação do solo, ou seja, a construção de socalcos de vinha” que requer o auxílio de máquinas ao invés da mão humana, por forma a atenuar a penosidade de tão rigoroso trabalho. Porém, e apesar do incremento da mecanização nas vinhas, o grupo mantém a tónica na responsabilidade social, por forma a “não dispensar as pessoas”.

Sobre o ofício exercido pelos antepassados durienses, António Magalhães reporta-nos para os anos imediatamente a seguir à filoxera, em que o único modelo de vinha existente eram os tradicionais socalcos. A partir dos anos 1960’ e 1970’, e com a escassez de mão de obra, “houve a necessidade de se criar novos modelos de vinha que melhor se adaptavam à redução de trabalho manual, à simplificação e ao alívio da penosidade do trabalho”. Na década seguinte registou-se, segundo o diretor de viticultura da The Fladgate Partnership, o “grande volte-face, com o projeto de desenvolvimento rural chamado pedriteme – uma vinha em patamares largos, mas ecologicamente errado”.

“(…) patamares de vinha mecanizados cuja largura foi estreitada, tendo sido introduzido o laser (…)  e cada patamar tem uma inclinação longitudinal, e precisa, de três por cento”.

Com a finalidade de “arrumar a casa, o que conseguimos fazer dentro da empresa, e já neste século, foi ter modelos de vinha integralmente criados por nós, como a segunda geração de socalcos pós-filoxera ou outros modelos em que introduzimos condições únicas e que, hoje, estão generalizadas, como a construção de patamares de vinha mecanizados cuja largura foi estreitada, tendo sido introduzido o laser, que permite fazer a construção guiada desses patamares, de maneira a salvaguardar o solo da erosão, e cada patamar tem uma inclinação longitudinal, e precisa, de três por cento. Esta foi uma grande inovação em 2002”.

“Resumindo, a região do Douro não tem apenas um modelo de vinha, mas vários modelos de vinha e talvez, nesse aspeto, tenhamos sido a empresa que, neste século, mais contribuiu para ‘arrumar a casa’, para ter uma filosofia própria para cada modelo de vinha e, o melhor que nos podia acontecer – e que está a acontecer – é estar a ser adotada por outros viticultores. Eis a prova de que se trata de um modelo de vinha de bom senso e que, de facto, respeita a natureza e se foca no vinho que produzimos.”

A sustentabilidade da viticultura

António Magalhães fala, ainda, sobre outro desafio importante, a sustentabilidade que, segundo a sua filosofia, “não é uma palavra gasta”, até porque a proteção do solo da erosão é sustentada pela erva que, durante o outono e o inverno, devolve o verde à paisagem composta pelas videiras despidas. Ou seja, “no inverno, as vinhas perdem o verde que é conquistado pela terra”, pois a erva retém a água das chuvas, uma mais-valia neste ecossistema sustentável, já que “o Vinho do Porto é natural e não artificiado pela rega”.

Em contrapartida, no fim da primavera, a erva seca naturalmente gerando, deste modo, a semente para o ano vitivinícola que se segue. “Nós cortamos a erva seca e fazemos montes com ela, para proteger o solo da erosão.” E é este ciclo que se repete todos os anos.

Além disso, importa referir que a erva é são sempre a mesma, pois a época do ano em que surgem as primeiras chuvas e a quantidade de chuva registada são dois fatores que ditam qual o tipo de erva que nasce e “nós não interferimos com este ciclo da natureza”, esclarece.

A Mourisco e a Touriga

Porque é no fim que são selecionadas as castas, e porque é da história que se bebe a essência da sabedoria no presente, António Magalhães fala sobre a influência da escola francesa na composição de uma pequena vinha na Quinta da Roêda, testemunho do contributo para a vinha, por parte de John Fladgate, que vivia no Porto e adquiria esta propriedade em 1844, em consonância com uma carta aberta dirigida aos agricultores do Douro, sob o título “O Phyloxera no Alto Douro”.

Neste contexto, cabe a importância da Mourisco, casta tinta de grande importância nas vinhas da pré-filoxera. Resistente à secura e à filoxera, e dona de uma vigor inigualável, a videira da Mourisco perdurou no tempo – no pós-filoxera.

A Touriga é outra casta de grande valor no Douro. “Antes não era preciso dizer que era a Touriga Nacional porque Touriga só havia uma, uma casta muito importante na qualidade, mas muito caprichosa na produção, difícil de conduzir”, conta-nos António Magalhães numa conversa bem humorada com dedicatória permissiva ao mui afamado realizador britânico Alfred Hitchcock, a propósito de uma pequena parcela de terreno onde se concentram cada uma das castas existentes na Quinta da Roêda.

“Na altura da filoxera um senhor chamado Albino de Sousa que cruzou a Mourisco com a Touriga e produziu uma nova variedade do Douro, a qual se transformou na variedade mais importante, a Touriga Francesa. Porque razão é a mais importante desta região? Porque é a variedade mais consensual entre a escolha do viticultor/proprietário/produtor das uvas e o enólogo que faz o vinho.”

Eis a razão pela qual o diretor de viticultura da The Fladgate Partnership nomeia ambas as tintas enquanto fala sobre a vinha que “representa uma tentativa muito forte da escola francesa na altura da filoxera, que era separar as castas à boa maneira francesa – foi outra ideia que nunca vingou no Douro. Portanto, o que vemos aqui e até pela diferença de cores é a mistura das castas, entre as quais há uma outra criada no século XIX, o Alicante Bouschet, uma casta introduzida na Quinta da Roêda por John Fladgate. Ao que parece está, hoje, na moda, mas já isso acontecia há 100 anos atrás. Portanto se hoje dizem que está na moda, as pessoas apenas se limitaram a ir ao guarda-vestidos para ir buscar o vestido da avó, como se tivesse acabado de vir da costureira”, reforça.

A principal propriedade da Fonseca

Da Quinta da Roêda passamos, assim, para a Quinta do Panascal, uma belíssima propriedade adquirida, em 1978, pela Fonseca, devido à sua localização privilegiada que, a juntar à plantação de uma vinha tecnicamente avançada, permite a produção de vinho ao estilo exuberante e memorável desta casa portuguesa de Vinho do Porto fundada em 1815. Numa súmula, apresentamos a principal propriedade da Fonseca onde a encosta virada a oeste e sudoeste possui uma excelente exposição solar; as encostas íngremes do estreito do vale do rio Távora, afluente do Douro, onde o calor fica retido; e as encostas superiores, com mais 400 metros acima da água do mar e um declive suave, sendo a vinha arrefecida pelos ventos.

Sendo a principal propriedade da Fonseca, a Quinta do Panascal contribui grandemente para os lotes dos Porto Vintage clássicos cujo primeiro lançamento data do lendário 1840, o primeiro Porto Vintage da Fonseca e um ícone seguido pelos Fonseca 1868 e os 1927, 1948, 1977 e 1994 tendo, estes últimos quatro, recebido 100 pontos da revista norte-americana Wine Spectator.

No alinhamento do legado de Baco, falaríamos do Fonseca Bicentenary Crusted Port, do Fonseca Bin n.º 27, dos Fonseca Tawnies de 10, 20 e 40 anos e dos Fonseca Guimaraens Vintage Port cuja explicação encontra na primeira reportagem sobre a The Fladgate Partnership (para ler na íntegra aqui).

Aos apreciadores de Vinho do Porto, em particular da Fonseca, caracterizados pelos sabores elegantes da fruta negra, do alcaçuz e do chocolate finamente combinados com uma peculiar acidez q.b., fica a sugestão de um viagem ao Douro, com a Quinta do Panascal no roteiro, onde podem adquirir os vinhos da Fonseca e/ou o azeite biológico da Quinta de Santo António (outra propriedade da Fonseca), após uma visita pelo vinhedo e a entrada nos seculares lagares da quinta – durante a vindima, os mais curiosos têm caminho livre para observar a apanha da uva e da pisa nos lagares. Na sala de visitas ou no terraço, com vista para uma passagem inigualável, é feita a degustação de três vinhos do Porto Fonseca: Siroco (branco extra seco), BIN n.º 27 e Tawny 10 anos (5 euros por pessoa), havendo também a possibilidade de fazer a prova de Tawnies velhos ou de Porto 100 por cento biológico, ou reservar uma prova incluindo Vintages clássicos da Fonseca e Vintages da Quinta do Panascal. No Verão pode experimentar o Siroptimo, composto por Siroco com água tónica.

Antes de se despedir, entregue-se nas mãos da D. Leninha, exímia cozinheira do receituário duriense, e deleite-se com os sabores da região junto à casa da propriedade, em família ou com os amigos (grupos a partir de dez pessoas). Para reservar, ou caso queira receber mais informações, o melhor é fazê-lo através de ana.sofia@fonseca.pt.

Quanto ao horário do centro de visitas da Quinta do Panascal, de portas abertas desde 1992, mantém as mesmas portas abertas de segunda a sexta, das 10 às 18 horas, de novembro a março; e todos os dias, das 10 às 18 horas, de abril a outubro, carecendo de pré-reserva para as visitas aos fins de semana.

Boa viagem! •

+ The Fladgate Partnership
© Fotografia: João Pedro Rato
Legenda da foto de entrada: A Quinta do Panascal, propriedade da Fonseca desde 1978

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