O clássico, o conceptual, o arrojado. O menu integral dos três jantares no restaurante do Altis Belém Hotel & Spa, em Lisboa, protagonizou um desfile de pratos de chefs de cá e d’além fronteiras no maior festival gastronómico português de alta gastronomia.
A esplanada da Cafeteira, com uma Mensagem, outrora de paz que D. Manuel enviou ao Papa Leão X por intermédio de um rinoceronte, símbolo do exotismo declarado na época dos Descobrimentos, foi o ponto de encontro para um almoço almoço alinhado e bem descontraído com alguns dos 11 chefs que, este ano, aceitaram o convite do chef do Feitoria (1 estrela Michelin), do Altis Belém Hotel & Spa, João Rodrigues, para mais uma edição da Rota das Estrelas, nos dias 15, 16 e 17 de maio. Com o Tejo a servir de pano de fundo, o repasto traçou o que de tão bom há na nossa gastronomia, numa verdadeira sonata ao verão, que se avizinha a passos largos, e com tradução direta para quem veio do outro lado do Atlântico.
À conversa com João Rodrigues
Os chefs Kamilla Seidler, do Gustu, em La Paz, na Bolívia, e João Rodrigues, o anfitrião do restaurante do Altis Belém Hotel & Spa
Depois de um intenso trabalho de pesquisa, que iniciou em novembro do ano passado, e sem uma temática concreta, mas com enfoque no produto sazonal, o chef anfitrião quis trazer os “muito diferentes” chefs que aceitaram o desafio de integrarem o cartaz da 6.ª edição da Rota das Estrelas no Feitoria, “acima de tudo, pessoas com conceitos e filosofias definidas e bem latentes” numa interpretação de livre convergência eclética que vai do estilo clássico ao contemporâneo, passando pelo tradicional e pelo alternativo. “Mas o conjunto faz sentido, pois há um fio condutor que é todos têm maneiras de pensar muito definidas”, garante.
Leonardo Pereira, Felipe Rameh, Joaquim Sousa e Paolo Casagrande na cozinha do Feitoria
Em jeito de apresentação, o anfitrião do Feitoria fala sobre cada um dos protagonistas dos três jantares. Leonardo Pereira, de 30 anos, chef do Areias do Seixo, em Santa Cruz, “é declaradamente diferente, completamente alternativo, com uma linha que sai fora do que é o normal, um desafio para nós, em Portugal”.
Acerca de Felipe Rameh, de 33 anos, chef dos restaurantes Trindade e Alma Chef, ambos em Belo Horizonte, no Brasil, e de Kamilla Seidler, uma dinamarquesa de 31 anos, chef do Gustu, um restaurante sui generis na cidade de La Paz, na Bolivia, João Rodrigues salienta “o exotismo” que ambos trazem da América do Sul. “Felipe apresenta uma linha clássica que, só depois, é que nos transporta para uma cozinha mais descontraída, um pouco à semelhança do que faço”, enquanto Kamilla Seidler se destaca pelo seu trabalho “muito vegetal, muito puxado à origem, à tradição, à pesquisa”.
De Joaquim Sousa, de 41 anos e chef responsável pela equipa de pastelaria do hotel The Oitavos, no Guincho, o anfitrião do Feitoria salienta a linha clássica francesa que caracteriza o seu trabalho, “muito bem feito e com um aport muito cénico”.
A análise prossegue com Paolo Casagrande, de 35 anos, um chef italiano à frente de um restaurante em Barcelona, o Lasart (2 estrelas Michelin) que “representa a linha mais clássica que existe, em que tudo é extremamente bem pensado e absolutamente irrepreensível”. Já “o Josean [Alija] é completamente conceptual”, diz-nos João Rodrigues quando fala deste chef de 35 anos, à frente do Nerua (1 estrela Michelin), no Museu Guggenheim, em Bilbao, Espanha.
Joachim Körper, Josean Alija, Ricardo Komori e Michel van der Kroft, o reflexo de quatro nacionalidades presentes na última noite
Ricardo Komori, o chef do Bonsai, em Lisboa, apresenta, por sua vez, “uma linha clássica japonesa, de um japonês adaptado que faz todo o sentido e tem um grande valor”, enquanto Joachim Koerper, o chef alemão de 62 anos, responsável pela cozinha do Eleven, em Lisboa, “representa uma linha muito clássica”.
Da Holanda veio Michel van der Kroft, chef do restaurante do ‘t Nonnetje (2 estrelas Michelin), em Harderwijk, que, pelo segundo ano consecutivo, marca presença na Rota das Estrelas, no Feitoria, demarcando uma cozinha “com uma vertente muito técnica, muito estética, geométrica e interactiva”.
Os irmãos António e Óscar Gonçalves, que trouxeram os sabores de Trás-os Montes para Lisboa
Por fim – the last but not the least, dizemos nós – a dupla Óscar, de 39 e António Geadas, de 29 anos, do restaurante G, da Pousada de São Bartolomeu, em Bragança, com “uma tradição hoteleira na família com quase 40 anos, são duas pessoas que fazem um trabalho absolutamente fabuloso”, porque “se reinventam todos os anos (…) trabalham o produto da região, recorrendo a produtores locais”, e gerem “o negócio de forma sustentável”, remata.
Os bastidores de um evento que demove duas mãos cheias de aprendizagem e partilha
Porém, importa focar ainda o trabalho constante na cozinha e na sala, onde muitos chefs e cozinheiros de Lisboa – e não só – agarram este desafio com toda a determinação, formando uma equipa coesa, onde a dedicação, a prontidão, a perspicácia e a rapidez são fundamentais, para que tudo corra a preceito, sem esquecer o trabalho do escanção, responsabilidade de André Figuinha, o sommelier da casa que, em conjunto com João Rodrigues e a equipa do Feitoria, elegeu os vinhos para cada prato que desfilou nas três noites.
A natureza portuguesa e o exotismo da América do Sul
A chegada da primavera de João Rodrigues
Mas vamos por partes. Começamos com as boas-vindas à primavera de João Rodrigues, com os ovos verdes, “para comer de uma só vez”, recomenda o chefe aquando a apresentação do amuse bouche das três datas desta etapa da Rota das estrelas, no Feitoria.
As favas, o levístico e ervas halófilas, de Leonardo Pereira, e a cañihua, os legumes frescos e ervas, de Kamilla Seidler / A vitela baronesa, tutano e ervilhas, e o sargo e a baixa-mar, ambos do chef do Feitoria
Agora sobre a noite de 15 de maio. Leonardo Pereira levou as favas, o levístico e ervas halófilas: “A ideia por detrás do prato das favas reflete um pouco a nossa posição para com o local onde trabalhamos e o espaço envolvente. Desde o ínicio que as favas eram uma das colheitas que, garantidamente, iria funcionar dadas as características do nosso solo e clima de inverno. Este ano, a chuva caiu pouco e as nossas favas tiveram uma época curta, mas enquanto as tivemos foram suculentas, cremosas e sempre com um sabor vincado a verde. A particularidade da fava, tal como outras leguminosas – de conseguir provocar sensações de doce e amargo – fez com que nos focassemos nesses tons, daí tentarmos amplificar o doce natural da fava ao transformar parte dela num puré, usando, para isso, um caldo, também ele enriquecido com algas doces e umas natas (quase) artesanais, daqui da zona [oeste]. O amargo, assim como a salinidade, foi realçado pelas ervas halófitas.” Há poucos meses no Areias do Seixo, Leonardo Pereira sublinha a sensação “refrescante” de “poder estar de novo na presença e companhia de grandes cozinheiros num evento que o Feitoria soube transportar com um semblante descontraído e ao mesmo tempo de bom gosto” e fala sobre a sua cozinha e a implementação de um “menu de cariz vegetal”, mas que se encontra “em plena procura e expansão”, pelo que identidade de mesma “virá à medida que cultivamos o nosso paladar” sem descurar “o verdadeiro luxo de Portugal”, o qual está, segundo as suas palavras “naquilo que sempre nos acompanhou desde pequenos, – o azeite, o peixe, o vinho…”
A baroa com cogumelos, frutos secos e brotos, de Felipe Rameh
Por sua vez, Felipe Rameh trouxe na bagagem um creme de batata-baroa ou mandioquinha com cogumelos, frutos secos e brotos (rebentos) e pá de cordeiro de leite com falso ovo e roti foram os pratos com sabor a Brasil trazidos pelo chef Felipe Rameh, para os dias 15 e 16 de maio.
Também do sul da América, desta vez da Bolívia, Kamilla Seidler, optou pela cañihua, um grão andino, parecido com a quinoa, que fez acompanhar com legumes frescos e ervas na primeira e segunda noites, o que se traduziu num prato vegetal com queijo de Santa Cruz de la Sierra, na Bolívia, o qual “é semelhante ao parmesão”, e rematado com um picante do país onde vive.
Já João Rodrigues apresentou o ciclo de alimentação do sargo no prato, com o intuito de reportar os comensais “para uma zona rochosa, junto ao mar” e no qual não faltam os percebes, “o alimento preferido do sargo” e a vitela baronesa, tutano e ervilhas.
A “mise-en-scène” do país vizinho
A seleção de tomate biológico em molho de ervas e alcaparras, de Josean Alija / A presa ibérica com foie gras, salada marinha e gelado de mostardas, de Paolo Casagrande, e a língua de bacalhau com molho pil-pil, do chefe do Nerua
Começamos com Josean Alija que, desde 2011 é chef do Nerua, em Bilbau, no País Basco, de onde trouxe uma seleção de tomate-cereja biológico e cada um contém um molho de ervas aromáticas, o que se traduz num prato composto por várias surpresas, ou seja, “cada tomate é um segredo”, explica, e as línguas de bacalhau com molho pil-pil para a segunda noite do evento.
Sobre a Rota das Estrelas, o chef do Nerua fala de uma experiência que permite a cada comensal “desfrutar de diferentes cozinhas, ao mesmo tempo, que dá uma pequena volta ao mundo” à mesa e, por outro lado, de uma “iniciativa em que os cozinheiros têm a oportunidade de ensinar e, ao mesmo tempo, de aprender”. Afinal, “a partilha é a evolução da aprendizagem da humanidade”, reforça Josean Alijá, que valoriza os produtos e os produtores locais, com enfoque na sustentabilidade e na constante procura de novos produtos para a sua cozinha de autor, “uma cozinha pura”, onde se aposta forte na inovação. Afinal, “há que dar mais e melhor ferramentas e ensinamentos aos futuros chefs, para que sejam melhor do que nós”.
No Feitoria esteve também Paolo Casagrande, um chef de Treviso, Itália, que há 12 anos se rendeu a Espanha e desde 2006 permanece à frente da cozinha do restaurante Lasarte, no Hotel Condes, em Barcelona. E foi precisamente na capital da Catalunha que Paolo Casagrande se inspirou para o seu prato apresentado na segunda noite da Rota das Estrelas, no Feitoria: Presa Ibérica, foie gras, salada marinha e gelado de mostardas. “Um prato de mar e de montanha, com a presença do sabor a mar, da salada marinha, e da terra, através da carne”, explica o chef italiano. Sobre o festival gastronómico português, Paolo Casagrande enfatiza a criação de sinergias, o companheirismo e a possibilidade de criar pratos com novos produtos.
O sashimi, o foie gras, a vieira e o bísaro
A terrina de foie gras e enguia fumada, vinagre balsâmico envelhecido e beterrabas, de Michel van der Kroft, e a vieira salteada com dois caviares e vinagrete de ostra, de Joachim Koerper / O edomae sashimi, de Ricardo Komori, e o lagarto de porco bísaro, limonete e maçã de Carrazeda de Ansiães
Ricardo Komori, que começou a trabalhar a cozinha nipónica em 2002, coube a honra de iniciar o repasto da última noite, com o edomae sashimi, um prato em que recorreu a “técnicas antigas de preservação do peixe em tempos em que não havia refrigeração, ou seja, na era Edo no japão, em que todos os peixes foram marinados de maneira diferente, usando algas, kombu sake, soja…”, explica. Os peixes em questão “eram o atum, a lula, o salmonete, a cavala e o imperador”, acrescenta o chef do Bonsai que participou pela primeira vez na Rota das Estrelas. “Adorei a experiência e a possibilidade de partilhar o mesmo espaço com grandes profissionais, desde o chef anfitrião aos chefs convidados ao serviço de sala e a todos os outros que ajudaram neste evento.” A respeito da sua cozinha, Ricardo Komori diz “tentar ser o mais purista possível em relação aos cônones da cozinha japonesa”.
Michel van der Kroft foi o autor de uma terrina de foie gras e enguia fumada, vinagre balsâmico envelhecido e beterrabas. “A ideia foi fazer o casamento entre o foie gras e as enguias e contrabalançar a gordura de ambas com o vinagre balsâmico”, um prato que interpretado de uma ideia com 15 anos e uma especialidade e um ex-libris do seu restaurante. Casado com uma portuguesa natural da Serra da Estrela, Michel van der Kroft confessa-se um adepto da nossa gastronomia: “Sou dos poucos chefs da Holanda que faz pratos de bacalhau. Sou dos poucos que trabalha o carabineiro”. No topo está ainda o Queijo da Serra da Estrela, que classifica como “o melhor queijo do mundo, principalmente o amanteigado”.
Joachim Koerper foi o senhor que se seguiu neste desfile de chefs, no Feitoria, apresentando as vieiras e o caviar Oscietra, “que precisam ser tratados com delicadeza”, com ketchup de pepino, lemon finger e vinagrete de ostras. Um prato “fresco e delicado”, cuja inspiração “e a razão da escolha são o clima”, uma ode ao verão que está à porta.
De Trás-os-Montes, Óscar Gonçalves trouxe os produtos da terra fria e juntou-os num só prato. O resultado foi o lagarto de porco bísaro, com maçã de Carrazeda de Ansiães, roché de alheira, ganhache de castanha e o limonete de Tiago Relhas e Susana Rocha que, em 2014, fundaram o + Ervas (para ler aqui). Tudo produtos da terra fria da região transmontana. Porém, Óscar Gonçalves já tinha participado neste festim. Aconteceu há dois anos, “nos bastidores do Feitoria”, em prol do produto português, daí a aposta forte no lema que partilha com o irmão, António Gonçalves: “Beber local e comer local”. Frase essa que justificou a presença de um vinho de Trás-os-Montes nesta etapa da Rota das Estrelas.
A criatividade do açúcar
A célebre sobremesa do chef de pastelaria do The Oitavos
As honras da sobremesa do segundo e terceiro repastos couberam ao chef do Feitoria, na qual os morangos, os protagonistas, se juntaram também aos hibiscos numa sopa, onde não faltou o gelado de leitelho de ovelha saloia da região da Arrábida. “Uma sobremesa fresca” para estes dias de calor.
De volta à primeira noite, Joaquim Sousa mostrou, uma vez mais, a sobremesa do momento, a floresta negra, em resposta ao desafio apresentado por João Rodrigues. Uma composição de morangos silvestres (fraises des bois), que revela ter sido “o produto mais problemático para arranjar. A restante mise-en-place também veio connosco visto que não termos de fazer muitos quilómetros”, para marcar presença na Rota das Estrelas, que “foi uma experiência fantástica estar com chefes de outros país, juntar culturas diferentes, sabores e técnicas num só menu”, conta, dando ênfase à “partilha que existe nesse tipo de evento entre os chefs, equipas, colegas, alunos de escola de hotelaria e todo o pessoal de sala”.
Sobre a pastelaria em Portugal, Joaquim Sousa enaltece a importância da pastelaria tradicional e conventual, que “sempre esteve e sempre estará bem, porque é única no mundo. No entanto, tornou-se, como a cozinha, mais mediática, mais vistosa e cuidada”. Uma tendência ditada pela “evolução da profissão”, razão pela qual defende “temos que nos adaptar para continuar a responder às expectativas dos clientes” e só resta “aos empresários, hoteleiros, chefs de cozinha apostarem na mão de obra qualificada para verem melhores resultados no futuro”.
E por falar em futuro, João Rodrigues e a sua equipa estão, de certo, a pensar já na próxima edição para 2016 da Rota das Estrelas. •
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© Fotografia: Paulo Barata
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