João Rodrigues: “A sustentabilidade é uma obrigação”

Impedir a massificação do produto é um imperativo para o chef do Feitoria, o restaurante premiado do Altis Belém Hotel & Spa, em Lisboa, daí que a sua dedicação à cozinha continue a basear-se em três pilares: tradição, identidade e sazonalidade.

Crocante de grão de bico e amendoim tostado (na caixa de madeira) e bola de queijo recheado com tomate seco e azeitona (na taça)

Quando perguntamos ao chef lisboeta sobre a sua forma de actuar na cozinha do Feitoria (1 estrela Michelin), registo esse baseado em uma cozinha feita “às claras”, João Rodrigues justifica: “Acima de tudo quero preservar a autenticidade de cada produto.”

As tarteletes de favas com papada de porco ibérico são servidas aquando das pedras vivas (batata envolvida em tempura de tinta de choco e com maionese maturada) e das falsas folhas (crocante de batata doce recheado com tártaro de atum rabilho)

A explicação está associada ao respeito pela sazonalidade, ou seja, pela escolha dos ingredientes correspondentes a cada estação do ano. É uma espécie de “aula didáctica”, já que vê a necessidade de mostrar quais os produtos de época a quem se senta à mesa do restaurante do Altis Belém Hotel & Spa.

Este trabalho vem no alinhamento do seu Projecto Matéria. “Começámos com o Matéria oficialmente há dois anos, mas já o vínhamos a pensar e a testar há pelo menos mais um”, esclarece.

“A cultura de cada país é a sua maior riqueza e gastronomia é cultura.”

Creme de pil pil de bacalhau, língua de bacalhau, rebentos de ervilha e croutons

Além da apresentação inicial da matéria-prima em bruto, muita é servida sem que tivesse havido uma intervenção excessiva nos bastidores, “mas é claro que, por detrás desta aparente simplicidade, há muito trabalho, principalmente nas bases que são o forte da nossa cozinha. Por isso há uma parte que está ’às claras’ e outra que é a nossa base, e que é mais desconhecida”.

Os moluscos são cuidadosamente confeccionados tal como manda a tradição e acompanhados por Casal Santa Maria Malvasia 2015, vinho branco de denominação de origem de Colares, na região vitivinícola de Lisboa, feito a partir da casta Malvasia e com a mineralidade perfeita para acompanhar este prato

No fundo, impera o desvelo em relação a cada produto português utilizado na confecção dos pratos da carta do Feitoria, com particular incidência no “melhor que há no nosso país”, até porque, segundo João Rodrigues, este “estava esquecido, pouco trabalhado e pouco valorizado”. Perante esta realidade, o chef do Altis Belém Hotel & Spa passou a procurar um a um “e a aprender com quem os faz”, uma “vontade”, diz, que assenta no respeito pela tradição. Esta é, por sua vez, parte integrante e indissociável da cultura de um povo que o chef lisboeta quer respeitar, daí a necessidade assente na transmissão do receituário e do saber-fazer, legado que é património a preservar. “A cultura de cada país é a sua maior riqueza e gastronomia é cultura.”

É precisamente o retomar dos nossos costumes à mesa que estão cada vez mais visíveis na forma de estar de João Rodrigues e da sua equipa, para que a nossa cultura seja mostrada a quem escolhe o Feitoria para um repasto ainda mais intimista e, ao mesmo tempo, um roteiro pela gastronomia de cada região de Portugal. Até porque não há como descurar a escolha das referências vínicas feita por André Figuinha, o escanção do restaurante.

“O Feitoria centra-se, hoje, no sabor e em valorizar o produto (…) e não me importo que digam que é uma cozinha básica.”

Na truta marinada, rábano, leite de amêndoa e ovas de truta, o sabor predominante é o da acidez do rábano, a qual contrasta com o doçura do leite de coco

O trabalho de João Rodrigues resulta de um conjunto de experiências que tem vindo a adquirir ao longo do seu percurso na cozinha. A conclusão converge num ponto importante: o sabor. “Percebi que havia muita coisa que achava supérflua, muito acessório, muito sabor prejudicado em função de estética e técnica. Para além disso, 80% dos clientes não valorizam a técnica, apenas se focam na estética e, acima de tudo, no sabor. Por tudo isto, o Feitoria centra-se, hoje, no sabor e em valorizar o produto, seja ele um lavagante ou uma ervilha, e não me importo que digam que é uma cozinha básica.”

Para o prato de carabineiro do Algarve, a escolha recai, primeiro, na qualidade do produto, seguido da confecção, pois as cabeças são previamente grelhadas para, depois, serem prensadas na prensa de prata – relíquia do grupo Altis Hotels –, com a finalidade de se extrair os seus sucos

Desengane-se quem o diz. Se se considerar o trabalho de pesquisa feito pelas equipas de cozinha e de sala – esta é liderada por André Figuinha, escanção do Feitoria –, a ida ao local para conhecer o produto, a sua origem e o seu produtor, descobrir a sua história e a tradição que lhes estão associadas, cruzar a informação apreendida com o conhecimento, dar corda à imaginação, pôr em prática até o resultado garantir a satisfação pretendida, há um longo caminho percorrido até a matéria-prima chegar ao prato.

O arroz carolino de Alcácer do Sal acompanha a base do quinteto de bivalves – mexilhão, do lingueirão de pés-de-burro, do berbigão e do percebe –, convidando a um mergulho no mar acompanhado de diferentes algas; a harmonização coube a Herdade do Cebolal Castelão blanc de noir 2015, vinho desenhado pelo enólogo Luís Mota Capitão e pertencente à região vitivinícola da Península de Setúbal

Tradição, identidade, sazonalidade são nas palavras de João Rodrigues, “indissociáveis”. Por isso cada uma tem a sua influência no prato. “A sazonalidade marca a tradição; sem tradição não há identidade. Todos elas têm lugar de destaque nos meus pratos. Umas vezes ligamos mais ao produto em si, noutras fazemos umas pequenas brincadeiras com as palavras ou costumes, noutras procuramos situá-las na história.”

“Seja com estrela ou sem estrela, estamos a falar de algo maior e que merece o nosso compromisso.”

Gamba da Quarteira, ervilha e caldo de gamba e hortelã, e pregado de Peniche é um dos pratos-estrela deste desfile de sabores da nossa costa

A sustentabilidade é outros dos aspectos a considerar e um dos mais debatidos nos últimos tempos, além de que está profundamente ligada ao referido trio indissociável – tradição, identidade, sazonalidade. João Rodrigues remete para as técnicas utilizadas habitualmente na cozinha regional para preservar os produtos da estação. “Hoje, este mundo global, de conformismo e consumismo extremo, fez com que se perdesse essa necessidade”. Como consequência “fez com que o conhecimento desaparecesse e levássemos ao extremo o uso dos recursos”.

Lâmina de copita e caldo de cozido à portuguesa representam o deleitoso Portugal no prato

A preocupação com a escassez dos recursos é visível nas palavras do chef, que vê a sustentabilidade como “uma obrigação” nos dias de hoje, daí a importância de se voltar ao que se fazia em tempos idos: “Voltar a usar ao máximo os produtos, respeitar a natureza e as suas épocas, minimizar desperdícios, voltar a transformar.”

Corte de arouquesa com puré de batata, acelgas, cogumelos selvagens e jus de arouquesa premium (raça bovina autóctone da vila de Arouca, no distrito de Aveiro) acompanhado por Quinta do Mouro tinto 2012, vinho alentejano feito a partir das castas Trincadeira, Alicante Bouschet, Aragonês e Cabernet Sauvignon

Sobre esta matéria, tal como no seu Projecto (Matéria), João Rodrigues destaca o papel dos produtores, “não só nesta questão de transformar e produzir, mas porque ocupam o território, interior e litoral, fora dos grandes centros. Seja com estrela ou sem estrela, estamos a falar de algo maior e que merece o nosso compromisso.”

Os queijos nacionais comprovam a procura constante de João Rodrigues para o seu Projecto Matéria, aos quais junta os internacionais

Um compromisso a partir do qual o chef lisboeta quer criar uma rede entre produto, produtor e chefs.

+ Restaurante Feitoria
© Fotografia: João Pedro Rato

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