A cozinha está virada do avesso. Ou talvez não… Haja Quorum!

Inquieto, provocador, pesquisador, criativo. Há mais palavras que definem Tiago Santos, chef deste novo capítulo do restaurante do n.º 30 B, da Rua do Alecrim, em Lisboa. Para já, fiquemos por aqui, até porque há toda uma culinária de matriz portuguesa, desde as décadas de 1940 a 1970, a explorar.

Descem-se as escadas para a pequena sala do restaurante Quorum, com 24 lugares. Os candeeiros suspensos, de luz intimista, envolvente, incidem sobre as mesas de madeira. Ao fundo, o espelho, com as mesmas medidas do sofá corrido, empresta a ilusão de um espaço maior, mais profundo, mas profunda é a arte de Tiago Santos, de 31 anos, festejados há tão pouco tempo e, por esse motivo, com tanto tempo para dar à cozinha.

Dão-se as boas-vindas, desta feita, com um Vinho do Porto branco seco, da quase bicentenária J.H. Andresen. Aliás, a carta vínica é composta apena por referências vínicas produzidas em Portugal, com ênfase em colheitas já com uns bons anos de vida. 

O pão, a manteiga, a banha e o azeite para a mesa

Enquanto a espera é tomada por um misto de expectativa e descontracção, Tiago Santos serve, descomprometido, às mesas do restaurante. “Como em nossas casas, há pão, azeite, manteiga… e banha”, diz-nos o chef. A dupla de pães, de fermentação lenta – demora três dias –, é de centeio, do Sabugueiro, e um inspirado no pão padas, de Ílhavo. O azeite é o eterno Angélica, de Moura, no Alentejo, e a manteiga é dos Açores. A banha é, por sua vez, feita da mesma que sobra do porco bísaro – raça autóctone de Trás-os-Montes –, um dos produtos utilizados na cozinha desta casa.

Embarquemos neste “Mar Português”

Pão com chouriço, para comer todo de uma vez só, as finas pataniscas de bacalhau e o polvo seco, e Quinta da Romeira Reserva Bruto Vinhas Velhas, um DOC Bucelas feito a partir da casta Arinto, ou seja, na referida Região Demarcada pertencente aos Vinhos de Lisboa

Sem se desligar da herança de uma cozinha de tempos idos, Tiago Santos avança com o célebre pão com chouriço, o polvo seco ao sol – servido num pequeno fogareiro de barro aceso – e, claro, as pataniscas de bacalhau. A apresentação de cada um é, no mínimo, curiosa e o sabor marcante. Porém, foi o último snack o mais surpreendente e, por isso, comido com prazer mesmo pelo mais novo comensal presente à mesa. Mas é o polvo que acende o lado das memórias de Tiago Santos: “ficava entretido com o polvo seco e um Sumol de ananás que o meu avô me dava…”

A versão do ovo de tomada por Tiago Santos com Piloto Collection Moscatel Roxo 2017, uma espécie de blanc de noir dos Vinhos da Península de Setúbal que resultou num paring em que o vinho em nada se sobrepôs ao prato

Ovo de tomatada. Assim se chama a entrada do menu “Mar Português” cuja receita facilmente se encontra na Internet. Sem rodeios, o jovem chef decidiu inovar neste prato, outrora, confeccionado pelo avô fragateiro: 80 por cento é constituído por tomate, mas este quase nem se vê. Sente-se na boca, valendo-lhe ainda a delicadeza da técnica na sua cozinha.

Os ravioli de gambas rosa do Algarve mergulhados num caldo feito a partir de chouriço e presunto da Serra do Barroso, com alface do mar com Casta Malvasia Rei, um vinho regional de Torres Vedras da colheita de 1985, que funcionou na perfeição

A gamba rosa do Algarve escolheu Tiago Santos para rechear ravioli servidos num caldo feito a partir de chouriço e presunto fumado – ambos provenientes da Serra do Barroso, localizada no concelho de Boticas, em Trás-os-Montes. A analogia é feita ao caldo de cozido das Furnas, mas a técnica é a mesma que se utiliza na feitura do dashi – caldo utilizado na culinária japonesa. A composição inclui, ainda, alface do mar. Só não se come com as mãos.

O mar e a terra num só prato acompanhado por um Areias Gordas branco 2000, um vinho ribatejano feito com as castas Fernão Pires, Arinto e Trincadeira das Pratas

No prato de peixe da nossa costa serviu-se o brama ou chaputa, com tubérculos – batata e nabo – e sucos de cebola fermentados, “como se fosse molho de soja”, esclarece o chef, que ouviu elogios ao prato do comensal mais novo da mesa.

Chega o momento do limpa-palato: sorvete de vinagre de Rui Moura Alves, enólogo muito conhecido na região da Bairrada, em cone de bolacha americana.

O coelho bravo em arroz de Salreu, com capuchinhas e tortulhos, o prato para este Inverno que esteve muito bem ao lado do Lapa dos Gaviões tinto 2014, néctar alentejano de João M. Barbosa, feito com as variedades Alicante Bouschet, Touriga Nacional, Trincadeira e Aragonês

Do peixe passamos para a carne. Desta feita, Tiago Santos serve arroz de Salreu – povoação de Antuã, no concelho de Estarreja – envolvido em um Queijos da Ilha, neste caso, das Flores, nos Açores. Na sua composição também estão os nastúrcios ou capuchinhas, os tortulhos (espécie de cogumelos selvagens) e o coelho bravo que, em conjunto, resultam numa ode deleitosa às papilas gustativas.

A história deste prato é simples: “estava em Estarreja, quando vejo o coelho bravo a comer nastúrcios e tortulhos.” Eis a moral da história deste coelho da “Alice do País das Maravilhas” do chef, o qual é servido em pequenas caçoilas de barro de Bisalhães, aldeia da freguesia de Mondrões, no concelho de Vila Real, Trás-os-Montes.

O Quinta do Arcossó tinto, de Trás-os-Montes, feito a partir da casta Bastardo, mostrou-se à altura do cozido de grão com porco bísaro

A paixão pelas terras transmontanas regressa logo a seguir. É o ‘nosso’ cozido de grão de bico e porco cozinhado por 28 horas a 65°, tendões e coentros.

O suíno é proveniente de Gimonde, aldeia da freguesia do concelho de Bragança. O caldo feito com cabeça e joelho de porco resulta no cozido de grão de bico.

É “um prato de inspiração osmótica” que reflecte o investimento de Tiago Santos na constante experimentação nos bastidores do Quorum. “Há clientes que acabam na cozinha, porque perguntam como se faz este ou aquele prato. Isto é hospitality!”

Uma “laranja dos pobres” generosamente regada de azeite e acompanhada por Quinta da Romeira Colheita Tardia 2004, feita a partir da Arinto, a casta-rainha da Região Demarcada de Bucelas

A recuperação da culinária regional estende-se à chamada laranja dos pobres. A pré-sobremesa retrata a laranja amarga a que os menos afortunados tinham acesso, daí adicionarem “o mel, para a tornar mais doce, o poejo, para proporcionar a frescura, e o azeite, para proteger as pupilas do choque causado pelo amargor e a acidez do citrino”, esclarece. A mesma é servida num prato de padrão alentejano.

Os pedaços de enxovalhada do Barreiro são acompanhados por um doce de maçã de Alcobaça feito em camadas e sorvete de maçã e nabiças

A enxovalhada do Barreiro é, por sua vez, uma parte da sobremesa. Esta é complementada com um refrescante sorvete de maçã e nabiças, que contrasta com o doce da maçã de Alcobaça compilado em camadas e a enxovalhada, bolo resultante da mistura de massa de pão, açúcar, canela, banha e raspa de limão, tradicionalmente, ligado aos camarros, os pescadores do Tejo na zona ribeirinha do Barreiro velho.

A conclusão poderia levar a pensar numa cozinha simples face à apresentação de cada prato, mas por detrás desta reserva-se uma pitada generosa de pesquisa, trabalho diário e muita dedicação. Dentro e fora da cozinha, com a mais-valia das viagens feitas pelo país, à descoberta de produtores e dos seus produtos, com a equipa.

Alinhamento da harmonização vínica feita por Bruna Esteves

É ir, para experimentar o “Mar Português” (€69) ou a “Viagem a Portugal” (€49) combiandos com os vinhos seleccionados pela escanção e chefe de sala Bruna Esteves (€35 ou €24, respectivamente) ou por uma harmonização premium (€55 ou €39, respectivamente), de terça-feira a sábado, das 19h30 às 23h00.

Bom apetite! •

+ Quorum
© Fotografia: João Pedro Rato
Legenda da foto de entrada: o chef Tiago Santos, ao centro, sentado na poltrona, Bruna Esteves, Marta dos Santos e Tiago Madeira (do centro para a direita), Inês Santos e um casal dinamarquês, clientes do Quorum (da esquerda para o centro)

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