A designação cozinha de autor surgiu, em Portugal, há cerca de três décadas, pela pena do crítico de gastronomia Nogueira Gil, que a atribuiu ao chef portuense, graças à coerência do seu trabalho na cozinha.

Cozinhar foi sempre um gosto maior para Miguel Castro e Silva, natural do Porto. Esta paixão evoluiu para ganhar dinheiro extra, quando esteve na Alemanha, época em que frequentou o curso de Biologia. Mas o início do percurso como cozinheiro ficou registado, na Quinta dos Vales, em 1992, seguindo-se o Restaurante do Miguel, localizado na Foz, Porto, em 1994, época marcada pelos jantares vínicos. Três anos depois, surge o Bull & Bear, o auge da carreira profissional do chef portuense. Volvida uma década, ruma a Lisboa, com o deCastro Elias, Largo, deCastro Flores, o Less by Miguel Castro e Silva e Mercado da Ribeira, de onde parte, mais tarde, para a Ribeira do Porto, com a finalidade de abrir o Restaurante Casario, a par com o chef José Guedes, e, posteriormente, o Cantina, restaurante da Quinta do Ventozelo, no Douro, bem como para manter o deCastro Gaia.
Mas é a Miguel Castro e Silva que cabem as honras nesta entrevista feita no âmbito do Casario, ou não fosse o chef pioneiro, em Portugal, da chamada cozinha de autor, tamanha a audácia, a criatividade e a experiência inspiracionais que lhe são reconhecidas desde há quase três décadas. Aliás, a designação “cozinha de autor” é-lhe associada há, sensivelmente, três décadas, pelo crítico de gastronomia Nogueira Gil.

O amouse-bouche vai mudando e aqui apresenta-se fiel ao verão, com bolbo de aipo assado e carapau curado com sal e citrinos
Muitas mudanças surgem à boleia da passagem do tempo. Que ajustes foram feitos na cozinha no Casario, desde a abertura, em setembro de 2018? O restaurante abriu numa perspectiva de menus, fine dining, mas sempre com um toque não pretensioso. Depois do Covid, continuámos com o rigor que tínhamos aqui, mas libertamo-nos um pouco. Com uma equipa mais pequena, sugeri que abrissemos só ao jantar. Para fechar à meia-noite, passamos a abrir às 17h00. A minha esperança era, a essa hora, vendermos tábua de queijos e um copo de vinho, com a perspectiva de começar a faturar às 19h30. Qual foi o meu espanto, quando descobri um horário de jantar que desconhecia, o qual é a partir das 17h30 para alguns estrangeiros, nomeadamente asiáticos. Quando entro aqui às 18h00, este espaço está cheio de asiáticos. Voltamos a ter um menu de degustação, mas simples, com cinco pratos, neste espaço com 24 lugares, que já chegou a servir 80 pessoas, ou seja, chegou a rodar pouco mais de três vezes, e, na maioria das vezes, fazemos maioritariamente menus. Não é um menu sem fim. Faz-se em pouco mais de uma hora. É relaxado, tem um pouco de tudo – amouse bouche, uma entrada fria, peixe, carne e sobremesa. Quem não quer carne, fazemos dois pratos de peixe; quem prefere carne, fazemos pratos com esta proteína. Nós é que definimos o menu e há sempre um ou dois pratos que não estão na carta. Ainda temos uma solução vegetariana. É totalmente despretencioso, queremos ver as pessoas felizes! [O Casario] é uma casa de vinhos. Temos de ter preços sensatos.

O pudim de peixe em quenelle e acelga em fricassée é uma verdadeira caixinha de surpresas no que à textura e à harmonia de sabores diz respeito
É um espaço que promete viagens inesquecíveis em torno da gastronomia portuguesa. Descreva o roteiro gastronómico que tem vindo a ser feito nesta casa. Quando me propuseram abrir o Casario, sugeri que fosse a quatro mãos. Na altura, dava-me muito bem com o Zé [chef José Guedes] – hoje damo-nos lindamente – e foi uma experiência muito gira! Durante dois ou três meses, íamos os dois para a cozinha experimentar pratos. O DNA base é meu, mas tem muito do trabalho dele. Nas sobremesas, a base é muito mais dele, porque tecnicamente é muito melhor nestas coisas. No fundo, a ementa daqui, que vai mudando muito ao longo dos anos, é um diálogo entre nós os dois. Praticamente todos os pratos têm tanto dele, como de mim. Por exemplo, fomos para a cozinha recriar o meu super antigo cachaço, que tem vinte e tal anos, e surgiu um novo cachaço com ideias dele e ideias minhas. Há, de facto, uma harmonia muito grande entre os dois. No pós-covid, com a introdução do muito que havia no Less [em Lisboa], tornou tudo mais fresco, mais leve [no Casario]. Temos menos elementos no empratamento, mas os pratos não ficaram a perder. O rigor e a essência estão lá. Por outro lado, permite-nos ter preços mais acessíveis. Tenho um arroz de limão, com açafrão e lagostins que é uau! Tiramos os lagostins, mas o arroz [vieira, arroz de açafrão e limão, ovas avruga] está lá. A essência está lá. O Zé Guedes dá tanta importância ao produto português como eu dou. Já são 14 anos a trabalharmos juntos. Passei a minha portugalidade, que já vem de outros tempos, ao Zé Guedes e ele defende isso tanto como eu. Mas há um prato que ele faz aqui, o qual vem do Less, que é o lollipop [de lula e camarão]. É um must! É um prato ‘bem disposto’. Os pratos portugueses continuam, mas com frescura, com uma abordagem mais descomplexada.
Falar de cozinha portuguesa é, por si só, um itinerário de aromas e sabores díspares. Quais são os que criam a simbiose perfeita com a cidade do Porto? O bacalhau como à Gomes de Sá. O Gomes de Sá nasceu ali, no Muro dos Bacalhoeiros, aqui, na ribeira do Porto. O prato foi criado por Gomes de Sá e vendido a um restaurante que havia neste muro. Fui fazendo várias abordagens ao Gomes de Sá. Aqui, há uma versão mais estilizada deste prato. Tem tudo o que tem o bacalhau à Gomes de Sá: batata cozida, bacalhau de cura portuguesa, ovo, azeitona, azeite e salsa. O bacalhau é cozinhado a baixa temperatura. A batata é assada, com casca, lentamente, no forno; é descascada e envolvida muito lentamente com o bacalhau. Leva ovo ralado e azeitonas secas.

Há outro prato protagonizado pelo “fiel amigo”, desta feita confecionado com Vinho do Porto e misu
Há portugalidade na ementa do Casario. Também há pratos eventualmente menos portugueses, como o robalo com laranja e funcho, que está na capa do meu último livro [“Na cozinha de Miguel Castro e Silva], que o [crítico gastronómico] Fernando Melo apelidou como o melhor prato de sempre… É um prato cujos ingredientes, à exceção do robalo, são do Douro – funcho, laranja, azeite, tomate –, ou seja, tem todos os ingredientes do Douro, mas não é um prato da região. O rodovalho com arroz de algas, as quais têm portugalidade q.b. ou o porco Bísaro, migas de couve lombarda, da Beira Baixa, que eu gosto muito, com feijão frade, ou o borrego com ensopado de grão e cogumelos do campo, representativo de Trás-os-Montes, no seu pleno. Depois há variantes, como a cavala com citrinos, que entrou este ano, ou a terrina de sapateira [e maçã verde]. Essencialmente, a ementa vive da portugalidade e, este ano, recuperei pratos que fazia no Bull & Bear, como o arroz de gorgonzola [pêra em Porto e balsâmico], que tem sido um sucesso. Temos aqui uma beterraba assada [queijo e framboesa] muito inspirada em criações que tinha em Ventozelo, ou a terrina de porco de coentrada [e tomate seco]… mais português é difícil.
Refere o Bull & Bear, marco do auge da carreira do chef Miguel Castro e Silva e da evolução da cozinha em Portugal? Acho que eu acabo por marcar a evolução da cozinha. Quando comecei, era uma cozinha mais petisqueira, tal como é, hoje em dia, o deCastro [Gaia], mas já tinha as minhas inspirações e as minhas ideias. Depois, a minha cozinha foi evoluindo no Bull & Bear. Mas quando abri o primeiro restaurante, já tinha viajado muito pelo mundo inteiro, enquanto estudante na Alemanha e enquanto trabalhei na área do têxtil. O Dirk Niepoort e eu fazíamos muitos jantares em casa. Ligava-me e dizia que vinham um alemão, um norte-americano… e perguntava o que eu ia fazer, não o que podia fazer. Fazíamos menus de experimentação. O Dirk é um bocado responsável por eu ter aberto o primeiro restaurante. Quando abri a Quinta dos Vales, já achava que a cozinha portuguesa era muito desconhecida e muito mal tratada. Aqui, no Porto, havia snack bares a servirem cozido à portuguesa, o que era antagónico. Além disso, a cozinha portuguesa cingia-se ao cozido, ao bacalhau e à feijoada. A primeira vez que me convidaram a cozinhar no estrangeiro, foi um desafio interessante, para pegar nos milhos, na broa… O meu último livro retrata isso mesmo. Se falarmos de polenta, toda a gente sabe o que é, mas nós temos mais ‘polentas’ do que os italianos. Temos os milhos fritos da Madeira, os milhos doces, os milhos de bacalhau, o xerém, entre muitos outros. Na cozinha de taberna, no interior, encontravam-se coisas fantásticas. A nossa morcela da Guarda é única! Há morcelas pela Europa, como a morcilla, em Espanha, boudin noir, em França, a blutwurst, na Alemanha, ou o black pudding, na Inglaterra, mas ninguém mais tem um black pudding como o da Guarda. Nós temos várias em Portugal, mas aquela é única!
Disse que viajou muito pelo mundo. Quanto dos destinos trouxe para Portugal? Quando viajava muito, ficava em hotéis de cinco estrelas em Hong Kong, Londres, Paris, Munique. Trabalhava no têxtil e ficava em sítios fantásticos. Ía anos seguidos a uma feira no Mónaco. Que chatice! [risos] Comia em Cannes, em restaurantes bons. Tudo faz parte do percurso. Contudo, continuo a ser a mesma pessoa. Continuo a dar atenção à apresentação, mas o mais importante é o sabor. O José Guedes diz mesmo que, aqui, fazemos uma cozinha com sabor. Servir uma coisa que depois sabe a outra… é ilusionismo?

O guloso porco Bísaro, migas de couve-lombarda, com molho à portuguesa
Sobre a questão da matéria-prima, objeto de debate entre vários chefs, qual a origem e o tipo de produção dos produtos que entram nesta casa? São memórias, memórias de um povo. Há 20 anos, o Fernando Neves, do Hotel O Colégio [em Ponta Delgada, ilha de São Miguel], pediu-me ajuda, porque tinha ficado sem chef nem sub-chef. Fui lá e, durante algum tempo, fiz o levantamento sobre a cozinha açoriana – algumas das coisas que são feitas hoje, por lá, fui eu que introduzi, como os chicharros recheados. Fiz esse trabalho de pesquisa, que não eram memórias minhas, comprei um livro sobre antropologia, porque a cozinha [açoriana] estava muito maltratada, e fiz uma ementa nova, com direito a apresentação. No fim do jantar, houve um senhor com mais de 70 anos, que veio ter comigo e disse: ‘chef, fez-me recuar 40 anos da minha vida.’ Fiquei muito feliz! O homem validou o que eu fiz, o que eu queria fazer, que era validar a cozinha açoriana.
O que é mais importante numa cozinha: o produto, a técnica, a criatividade ou os três? Porquê? Posso ter o melhor piano do mundo, mas se não sei tocar, o piano não me vale de nada. A criatividade é tudo e nada. Tem vários caminhos. Por exemplo, acordei uma manhã e fiz o lollipop, e nunca alterei uma vírgula da receita. A criatividade tem, acima de tudo, a ver com trabalho, porque posso abordar um prato de várias formas, através da pesquisa, acrescentando alguma técnica, resultando em pratos não forçosamente novos, mas evoluídos. Dando o prato de bacalhau como exemplo, tem tudo o que o bacalhau à Gomes de Sá tem e não insultava de todo, se ele provasse este bacalhau. A primeira pessoa a quem atribuíram a designação de cozinha de autor foi a meu respeito, num artigo do Nogueira Gil, nos anos 1990, que, depois de várias idas ao meu restaurante, falou de uma abordagem com uma certa coerência nos meus pratos. Ele era francófono e como há o cinema de autor francês, surgiu, assim, a designação ‘cozinha de autor’. É uma cozinha face à qual o cliente reconhece a autoria. Houve uma vez que fui fazer um almoço a Lisboa e ninguém sabia quem estava a cozinhar, mas alguém, na mesa, comentou ‘este tipo é alguém que está a copiar descaradamente o Miguel Castro e Silva’ [risos]. Se faço um bife à minha maneira, é feito à minha maneira. Cozinha de autor não é o próprio que o define, é outra pessoa que o diz, porque o reconhece como tal.
Nos restaurantes, fala-se, essencialmente, da técnica francesa. Haverá algum momento em que as técnicas da cozinha portuguesa sejam enaltecidas? Voltamos à história do piano. Para tocar piano, tem de se fazer escalas. Na minha opinião, há, grosso modo, três blocos de cozinha: a ocidental, a nossa, a oriental, da Ásia, e a árabe, no Médio Oriente. A cozinha líbia, para eles, é um bocadinho como a cozinha francesa para a nossa cozinha. Isto porquê? Porque foram os primeiros a codificar uma série de coisas. Não quer dizer que certas técnicas sejam comuns, da mesma maneira que as técnicas da cozinha asiática, em relação às quais, houve um ou outro país que precederam este caminho e o consolidaram. É óbvio que há características da nossa cozinha que não se encontrem tanto na cozinha francesa. Por exemplo, confitar é uma cozedura que também se faz em Portugal. Os franceses têm a perna de pato confitada, que é cozinhada a 80 °C, durante três a quatro horas, na gordura do pato; e nós temos a carne de porco do pingo – desmanchava-se o porco, retirava-se a banha, temperava-se a carne, cortada em nacos mais ou menos certinhos, e era cozinhada lentamente nessa banha. É em tudo idêntico ao confit francês. Depois, era guardada, em recipientes de barro, na loja, porque a carne conservava-se no pingo por três, quatro meses. Era uma conserva. A técnica é idêntica e é coerente. Culturalmente, há uma proximidade. Agora, houve um Escoffier que sistematizou muito a cozinha.

“Acho que estamos bastante melhor. Há 20 anos, havia três ou quatro malucos a defender a cozinha portuguesa. Hoje em dia, temos mais uma série deles a defender a cozinha portuguesa. Tenho ido a restaurantes fora dos centros urbanos, que estão a fazer uma cozinha genuína, que se identificam com o lugar“
chef miguel castro e silva
O chef Miguel Castro e Silva disse, há pouco, que a cozinha portuguesa foi muito maltratada. E hoje? Recuperar produto foi sempre o meu leitmotiv, porque, a dada altura, um bom chouriço estava em vias de extinção, por causa dos chouriços industriais. Os queijos… Eventualmente, alguns colegas meus e eu tivemos um papel importante ao ir aos sítios recuperar os produtos e dar-lhes visibilidade e viabilidade. No período de adesão à Europa fomos mais “papistas do que o Papa” e, de repente, tudo o que era cozinha artesanal quase desapareceu, até que alguém percebeu que o conceito de cozinha artesanal pode ter segurança alimentar. Acho que estamos bastante melhor. Há 20 anos, havia três ou quatro malucos a defender a cozinha portuguesa. Hoje em dia, temos mais uma série deles a defender a cozinha portuguesa. Tenho ido a restaurantes fora dos centros urbanos, que estão a fazer uma cozinha genuína, que se identificam com o lugar, no ambiente de aldeia e há pessoas que viajam para lá ir.
O bacalhau para além das 1001 receitas
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