Chef Vítor Matos / “Os meus pratos são os meus quadros”

A cozinha é uma arte intrínseca das tendências da gastronomia. O culto de uma criação nobre, ávida de experiências sensoriais à mesa, de partilha entre familiares, amigos e colegas de trabalho, e desconhecidos. Uma paixão despertada nos primeiros anos de vida, concretizada com realismo fora de portas. Na Suíça. O país de uma Europa determinante, exigente, com bases de um ofício em permanente ebulição numa mutação constante de saberes enraizados em tradições, costumes, sabores, cores… memórias indissociáveis à origem do ser humano. Às origens de um Portugal intemporal, tão ligado à terra e ao mar, reinventado pelas mãos de Vítor Matos, o chef executivo do Largo do Paço, o restaurante da Casa da Calçada Relais & Chateaux, em Amarante, que fomos encontrar no Cais da Villa, em Vila Real, onde tivemos o prazer de degustar um harmonioso repasto desenhado com mestria.

O gosto pela arte de cozinhar está associado à família. À avó. À mãe. A Vila Real, a terra que o viu nascer e crescer ao longo da primeira década, até ao momento em que os pais decidiram calcurrear novos caminhos, juntos, longe do país que levavam na alma e no coração.
O meu pai teve de emigrar para a Suíça. Foi o primeiro. Depois fomos nós. A falta que senti do meu país… Para nós, o regressar a Portugal era muito importante. Frequentei a escola, tive boas notas para seguir outro percurso profissional que não este, mas não quis; preferi experimentar a cozinha, uma escolha que fiz com apoio do meu pai e da minha mãe. Chegava da escola e experimentava fazer tudo na cozinha. Experimentei esta “carreira” com o apoio do meu pai e da minha mãe. Hoje posso, portanto, dizer que gosto do que faço. Vivo e respiro cozinha. Não consigo desligar! É tema de conversa em casa, com os amigos… Mas esta cozinha não é de sobrevivência. É uma cozinha com terroir, com uma história por trás.

Inicia o curso de cozinha com apenas 16 anos, num país muito diferente do nosso, onde o grau de dificuldade é superado com a vontade superlativa de melhorar o seu desempenho e de ser o melhor.
A Suíça é muito exigente, muito contida. Não é fácil para um português, com sangue quente, estar num país que não é o nosso. Além de que o meu chef não gostava de portugueses. Independentemente disso, quis sempre ser o melhor e fazer o melhor possível, porque se não fizermos mais e cada vez melhor, não vale a pena termos objetivos de vida. Com isto ganhei mais estímulo, mais gosto pela cozinha, mais determinação. O mal que me aconteceu foi o melhor que me aconteceu. A minha forma de estar na cozinha é muito diferente da dos miúdos de hoje em dia, que não estão habituados nem preparados para novos desafios. No entanto, veem a cozinha como uma arte, está na moda. Não é bem assim, pois têm de aguentar a exigência do serviço, o que nem sempre acontece. Há pessoas que, ao fim de dois dias, se vão embora, porque não aguentam tanta pressão. Não são apenas as horas, tem de sair tudo perfeito. Se há falhas, não entra.

O percurso pela cozinha valeu-lhe a participação em concursos, a fórmula aplicada para se obrigar a aprimorar a arte de bem cozinhar, sendo distinguido com a Medalha de Ouro no concurso Chefe Cozinheiro do Ano de 2003.
Há um momento da vida em que acontece uma viragem. Porque, ou fazemos sempre a mesma coisa até morrer – o que acontece com a maioria – ou fazemos como eu que, a partir de um momento da minha vida disse “Alto! Quero fazer mais”. Por isso, participei em muito concursos, que trazem mais valia, trazem know-how. É uma oportunidade de ver o que os outros fazem, de aprender com eles. Ao vê-los só pensava que não valia nada ao lado deles. Mas eu quero ser melhor do que eles. No bom sentido, que fique bem claro. Queria sempre mais e melhor. É um investimento para o futuro, uma forma de abrir a nossa mentalidade perante a cozinha. Agora estou numa fase diferente. O meu concurso é o meu dia a dia.

Os sabores numa cozinha são o prefácio de uma viagem ao passado. Um misto de experiências vividas em momentos tão díspares, como uma conversa com um amigo ou a contemplação de uma paisagem.
Quem fala de sabores fala de experiências, de partilhas, dos momentos em que estou com os meus amigos, com os meu colegas, de uma paisagem… Os Alpes, os pastos… tudo isto serve de inspiração para os pratos da minha cozinha. Só para dar um exemplo, na minha carta há os caramelos moles, a sobremesa inspirada nos caramelos que comia quando estava mais nervoso. Gostava tanto! Depois das aulas na escola ainda tinha as aulas do curso de cozinha [em Neuchâtel] e, nos momentos em que estava mais stressado comia caramelos moles. A cavala marinada com granizado de gaspacho [dada a provar num jantar especial, no Cais da Villa], por exemplo, tem muito o sabor de terra e de mar. É um prato de verão. O salmonete com molho de ouriço do mar, canelonne de carabineiro e percebes sabe muito a mar. Na cozinha há que reiventar sabores, não podemos ficarmos presos ao que já sabemos; tenho de vender sabor, produto, vender alma. Portanto, tudo tem de ser bom, tudo tem de estar bem feito, tem de ter muita cor, ser fresco… é uma cozinha de autor, servida ao momento.

A liberdade de criar é a interpretação concreta do ofício do chef Vítor Matos, sendo aquela um dos principais ingredientes da sua cozinha, assim como a experiência sensorial provocada pelos sabores, pelas texturas, pelas cores, pelos aromas…
Isso é cozinha! E está também muito ligada às novas tecnologias, que permitem que a cozinha seja mais aromática e tenha mais sabor e mais cor. O ponto de cozedura de um legume ou o ponto de textura de uma carne ou de um peixe é que permite conhecer os verdadeiros sabores. Tudo tem de estar no ponto, tudo tem de estar perfeito. A cozinha é uma experiência e as pessoas estão sempre à espera do melhor.

A sua cozinha é um autêntico laboratório de experiências cujas cobaias são os comensais do Largo do Paço.
As cobaias são os clientes que vão com frequência à Casa Calçada. Ou seja, lançamos os pratos todos muito antes de elaborarmos a nova carta [são duas por ano: primavera/verão e outono/inverno], em relação aos quais recebemos o feedback. Neste momento já sei o que vou ter na minha carta de outono/inverno. Parece simples, mas não é. Ideias temos nós todos os dias. Anoto-as num bloco de notas no momento em que estou a idealizar um prato – tenho um bloco de apontamentos à cabeceira da cama –, as quais passo para o computador. Quando tiver de elaborar a carta nova, risco as que não interessam, as que são melhores confeciono-as na cozinha, depois faço nova seleção em função dos produtos da época, se contém ou não flores… Uma carta provém de várias ideias, de momentos, de experiências. Tudo isso faz um prato.

E um repasto incita cada um a viver uma experiência multisensorial, até porque, para o chef, comer é uma religião.
O povo português tem um culto à mesa muito curioso. Gosta de comer. É como ir à igreja. Quando vai à igreja, o que acontece? Tentamos esquecer os maus momentos. Portanto, comer é uma experiência que suprime os maus momentos.

Considera a cozinha uma das mais belas artes do mundo.
A cozinha é uma arte. Quando alguém faz um prato, isso é arte. Os meus quadros são os meus pratos. Quando um pintor pinta um quadro é para as pessoas verem. A gastronomia, por sua vez, tem uma vantagem: Primeiro estranha-se, depois entranha-se, como diz Fernando Pessoa. Por exemplo, o pudim de Abade de Priscos da carta da Casa da Calçada é descrito como “Era uma vez o Abade de Priscos”, uma hostia com a história do senhor Abade de Priscos, impregnada numa calda de açúcar, canela e limão, a qual é comida. Quem a come, come a história, come a sobremesa. Come o pudim de Abade de Priscos do futuro – mais leve, mais moderno, mais arrojado. É uma arte assinada. •

Leia aqui o artigo sobre o Antiqvvm cuja cozinha está nas mãos do chef Vítor Matos.

+ www.vitormatos.com
© Fotografia: João Pedro Rato