Meta-se a colher onde se é chamado e aprecie-se o conteúdo num repasto que se desdobra em viagens ponderadas, acompanhados por um trabalho consistente aliado a uma originalidade irrepreensível, numa ode marítima e aconchegante aos dias frios das novas estações do ano.
“Quero que haja, cada vez mais, um conceito por trás do restaurante, com este tipo de estética que foge ao normal.” João Rodrigues, o chef do restaurante Feitoria (1 estrela Michelin), do Altis Belém Hotel & Spa, em Lisboa explica, assim, o formato do novo desafio moldado pela estética inspirada na nouvelle cuisine, “em que tudo constitui uma evidência” – bem estruturada, acrescente-se – na viagem de sabores que percorre a nossa costa, atravessa fronteiras em direção ao oriente e segue, mar adentro, até ao sul da América. Mesmo assim “há sempre o fator surpresa”, revela e muitos foram os pratos que partiram de uma não-ideia pré-definida, porque “a ideia evolui gradualmente e o produto final é a soma das partes positivas”.
Chame-se os comensais à cozinha. Porque não? João Rodrigues prepara o que chama de limpa palato – melão fusionado com hibisco e frutos vermelhos, e zest de limão, um conjunto de sabores que confere a “acidez e frescura que prevalece no palato” salientadas pelo chef.
Terra e mar. O primeiro amuse bouche é composto por “telha de milho, tosta de milho e guacamole, gamba da costa cozinhada como se fosse ceviche, e codium” (uma alga), num fiel registo marinho e, por outro, air baguette de queijo de Azeitão e azeitona, traduzida numa boa rima se sabores.
De Baco, marca presença o Champanhe Pol Roger Réserve Brut, a escolha de André Figuinha, escanção e chefe de sala do Feitoria, que acompanha os dois amuse bouches que se seguem.
O falso tomate. “Uma lembrança do verão” deixada pelo chef, “antes de passarmos para os pratos mais invernais”. “Inspirado na estupeta de atum”, este “é substituído pelo carapau trabalhado num tártaro” e envolto num gaspacho que, com gelatina, toma o formato de um tomate de pequena dimensão. A acidez presente no caldo que compõe o prato combina com a ténue presença do mar, para comer com colher – o chef do Feitoria justifica o uso daquele talher com o conforto, o mesmo conforto que ansiamos nos dias frios que teimam em ficar por uma mão cheia de meses.
Que se interrompa o repasto para uma breve explicação do couvert: Flatbread com sementes de sésamo, manteiga de leite de ovelha da região de Azeitão, manteiga de vaca, a qual é oriunda Esposende, cristais de sal de Castro Marim e azeite virgem extra feito a partir da variedade de azeitona galega. Uma mão cheia de produtos que ditam a preferência de João Rodrigues pelo que se faz dentro de portas.
Vamos ao Peru. A ideia que veio da América do Sul – onde o sub-chef do Feitoria, André Cruz, permaneceu por sete meses –, é recriar um dos típicos pratos daquele país, o qual se traduz num churrasco de rua, o anticucho de corazón que, no Feitoria, João Rodrigues substitui pelo coração da alface. Um aperitivo com sabor de churrasco de rua representado num amuse bouche cem por cento vegetal, para abrir caminho ao palato a um desfile de pratos num jantar que ainda vai no ‘adro’.
Tártaro de carabineiro com rabanete e wasabi q.b.. Um prato que remete para o equilíbrio de sabores no palato sem que nenhum dos produtos se sobreponha na boca. “A evolução de um clássico”, este composto por carabineiro e pepino, complementa o chef. Para ligar a Baco, a escolha recai num Barranco Longo Grande Escolha 2014, feito a partir de Arinto e Chardonnay.
Mão de vaca ou bacalhau p’la mão de vaca. Uma interpretação sublime e ousada, no muito bom sentido, do prato típico da cozinha ribatejana, em que a substituição do ingrediente principal é feita por sames de bacalhau, a escolha certeira para combinar com os produtos que compõem prato tão sui generis, uma vez que a textura é semelhante à mão de vaca, além de ser o peixe que melhor se casa com grão e notas de enchidos.
De novo na garrafeira, André Figuinha, o escanção e chef de sala do Feitoria elege o Casa do Capitão-mor Alvarinho Reserva 2013, um monocasta da sub-região de Monção e Melgaço, da região dos Vinhos Verdes, o qual “dá frescura e com a acidez final para contrastar com o prato”. Confirma-se.
Próximo desafio: “Entrem no bosque e procurem as trufas. Qual é o animal que gosta de trufas?” A pergunta fica no ar até ao momento em que a primeira garfada entra na boca. O porco é a resposta ou não fosse este o animal outrora usado para encontrar tão peculiares e mui apreciados fungos comestíveis, aqui presentes com a moderação esperada de um chef de um restaurante com estrela Michelin.
Para acompanhar é eleito um Gloria Reynolds Antão Vaz 2012, de Arronches, do Alto Alentejo, um branco com madeira q.b. “para ligar com as notas fumadas e de terra do prato”.
Cebola ou não? Eis a questão. É lula, camarão, amendoim e dashi. É o bilhete de ida ao oriente – ou o resultado de uma viagem de João Rodrigues na Tailândia – num prato que prima pela originalidade e comprova a criatividade e o trabalho constante na cozinha do Feitoria. Com o caldo, muito utilizado na cozinha nipónica, ainda quente, o chef rega a lula cortada em tiras muito finas – por baixo das quais estão os amendoins tostados e o camarão —, com o intuito de a cozinhar e, deste modo, a deixar com a textura de um noodle.
De Portugal segue o néctar de Baco, um Niepoort Redoma branco 2011, da região demarcada do Douro, feito a partir das castas Rabigato, Viosinho, Arinto, Gouveio, Boal e Códega do Larinho, e com efeito de truz na harmonização com o prato.
De regresso ao país, João Rodrigues ‘recebe-nos’ com a dourada acompanhada por uma feijoada não de búzios nem de choco, mas sim de caracóis do mar. Um prato com um intenso sabor a mar ou não estivéssemos nós tão perto do Atlântico, e a interpretação de uma aposta forte pelo chef natural de Lisboa e um apaixonado pela flora e a fauna da nossa costa.
Por sua vez, André Figuinha apresenta o Principal Reserva branco 2011, composto pelas castas Chardonnay e Sauvignon Blanc, da região da Bairrada – “mais mineral, mais fresco e com estrutura” suficiente para casar com um prato surpreendente.
A presa ibérica protagonizou o prato que se seguiu, ao lado de barriga de leitão e de um puré feito a partir de amido de batata, couve e demais produtos que cabem no ciclo da alimentação do porco, os quais mantiveram o equilíbrio no palato. A harmonização coube a um Quinta da Ponte Pedrinha Reserva tinto 2011, um vinho da região do Dão feito com Touriga Nacional, Alfrocheiro e tinta Roriz.
Façamos, agora, uma curta viagem, de novo, ao sul da América, para provar com a calma devida os chilly chocolats, a pré-sobremesa dos deuses – uma surpresa. A composição: Malagueta desidratada, resultado de uma experiência de André Cruz. Assim, este fruto perde o picante, tornando-se ligeiramente doce, uma combinação de truz com a ganache de chocolate, com a qual é preenchida pelas mãos de João Rodrigues.
Maçã, aipo, gelado de nozes pecan, e telha e pó de iogurte. São estes os ingredientes que cabem na mui refrescante sobremesa que rematou o pantagruélico repasto na companhia de um Vinho da Madeira, o Blandy’s Dry Sercial 5 anos.
Em suma, João Rodrigues (leia aqui a entrevista) foge ao óbvio, explorando o receituário português – porque “temos de mostrar o que é a nossa cozinha” a quem vem de fora –, e enaltece a criatividade na construção de um prato, assim como na conjugação de sabores, com um tom provocador q.b., dando particular ênfase ao peixe da nossa costa e, por outro lado, às iguarias oriundas de países com registo nos anais portugueses. Uma manifesta mudança comprovada por um roteiro de experiências múltiplas em cozinhas tão díspares da cidade de Lisboa conjugado por viagens e pela oportunidade de trazer novas ideias na bagagem para uma cozinha que ressurge na escolha da louça, detalhe que prima pela proeminência e aguça a curiosidade.
Curiosos a respeito das boas novas à mesa do Feitoria, no Altis Belém Hotel & Spa, em Lisboa? Para breve… •
+ Restaurante Feitoria
© Fotografia: João Pedro Rato
Legenda da foto de entrada: O prato de bacalhau inspirado na mão de vaca
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