O saber empírico partilhado e passado de mão em mão, feito tradição e integrado nos costumes de gente hospitaleira e ávida de dar a conhecer comeres e hábitos perpetuados nas palavras e na escrita.
Fernando Correia tem nas mãos a sabedoria de outros tempos e o conhecimento exigido, para preservar o futuro do barro preto de Vila Nova de Poiares
A ligação é propositada. Esta viagem começa na oficina de Fernando Correia, em Olho Marinho, localidade de Vila Nova de Poiares onde o barro preto conta com certificação própria. Oleiro, de 59 anos, o nosso anfitrião é filho, neto e bisneto de oleiros. “Sou do tempo dos fornos de câmara dupla e que funcionavam a lenha”, diz-nos. O seu trabalho reflete “uma tradição, com mais de 150 anos”. A aventura tornou-se um caso sério em 2006, quando investiu neste negócio de família através da compra de maquinaria “em segunda mão”, para dinamizar a produção de louça feita a partir de barro preto.
“Tenho o Ferrari da olaria”, afirma, referindo-se à roda de oleiro. Corta uma parte do barro preto e coloca na roda. A moldagem é feita com o auxílio de água a que Fernando Correia recorre, molhando uma esponja, que, depois, passa suavemente pela peça, que, em menos de cinco minutos, está pronta! Dito assim parece fácil, mas a mestria na ponta dos dedos mostra quanto ainda vale o saber empírico. A moldagem mecânica é recorrente na feitura de objectos de maior dimensão. Neste caso, o oleiro escolhe o barro preto com menor percentagem de humidade. Terminado o processo aqui, a peça passa para a roda de oleiro, para efectuar o acabamento.
A feitura de peças de barro preto respeita um processo moroso, com duração de cerca de 12 horas
As peças são submetidas a uma pré-secagem, seguindo-se a passagem pela roda de oleiro, “para rebordar, polir”. Vai novamente a secar e, só depois, é que vai a cozer no forno, a 1.020 °C, durante mais ou menos seis horas, dependendo do tamanho da peça. Este processo termina com o repouso dos objetos no interior do forno, por 24 horas. Findo este período, o barro fica totalmente preto. É o caso dos caçoilos. “Na minha opinião, só é considerada chanfana se for feita em barro preto”, afirma Fernando Correia, que, deste modo, acicatou o apetite dos presentes.
A cabra velha é o elemento principal da chanfana
Falemos, portanto, de cabra velha. Junte-se as cabeças de alho, folhas de louro, colorau, cravinho, vinho tinto e sal. Eis a chanfana, prato tradicional do distrito de Coimbra, nomeadamente em Vila Nova de Poiares, sem esquecer a típica chanfana à moda de Cernache, freguesia de Coimbra, nem a de Miranda do Corvo, destino eleito para o almoço.
No Museu da Chanfana, pertencente à Fundação ADFP – Assistência, Desenvolvimento e Formação Profissional, está tudo a postos para iniciar a refeição.
As sopas de casamento também são servidas no Museu da Chanfana, que, deste modo, preserva a tradição desta região
Antes da tradicional chanfana, servem-se as sopas do casamento. Feitas, em tempos, a partir do molho que sobrava do prato principal, ao qual se juntava couve e pão, para o dia do casamento, hoje este prato é uma especialidade gastronómica regional a preservar. Exemplo disso são também os negalhos, receita típica de Miranda do Corvo feita a partir do bucho e das tripas da cabra, cujos pés eram usados para fazer chispe.
Comida à parte, há que destacar o projecto vitivinícola da Fundação ADFP. A incidência na valorização da sub-região Terras de Sicó (Alvaiázere, Ansião, Condeixa-a-Nova, Miranda do Corvo, Pombal e Soure) resultou na criação do Rabarrabos, vinho feito a partir de uvas vindimadas de uma vinha localizada na aldeia de São Sebastião – nome atribuído, na década de 1950, em substituição de Rabarrabos –, em Penela. Já o Terras da Beira e o Monte Isidro, dois vinhos desta instituição centrada na inclusão social, são feitos com uvas colhidas no Fundão.
Finalizada a refeição, aproveite para visitar o vizinho Parque Biológico da Serra da Lousã, pertença da Fundação ADFP e onde pode observar os animais que habitam e habitaram este território.
Cabrito assado no forno é o prato típico de Condeixa-a-Nova
A cozinha serrana estende-se para Sul, em direcção a Condeixa-a-Nova, onde o cabrito é rei. A recomendação recai n’O Regional do Cabrito, restaurante localizado no centro histórico da referida vila. Cabrito assado à moda de Condeixa, acompanhado de batata assada no forno e grelos cozidos, é a especialidade desta casa fundada em 1968, onde o a gastronomia regional é respeitada.
Não deixe escapar estas iscas de cabrito do restaurante O Regional do Cabrito
Não deixe de experimentar o Queijo do Rabaçal DOP, nem as iscas de cabrito, enquanto aguarda pelo prato principal. Cabrito grelhado e chanfana são pratos a ponderar numa próxima visita. Termine a refeição com a escarpiada, doce típico do concelho de Condeixa-a-Nova.
Pingarelho Arinto 2020 e Pingarelho Baga 2019, uma dupla a conhecer
Quanto à garrafeira, O Regional do Cabrito faz uma seleção criteriosa, sem cair em convencionalismos, dando primazia aos vinhos da sub-região Terras de Sicó. É o caso da dupla do produtor Ricardo Costa: Pingarelho branco 2020, feito a partir da casta Arinto, e Pingarelho tinto 2019, elaborado com a variedade de uva Baga. A enologia de ambos esteve a cargo de Gonçalo Moura da Costa, enólogo da Fundação ADFP e dos vinhos Aperto, da Adega Vinhos Alegre, em Espinheiro, no concelho de Penela.
Condeixa-a-Nova é a terra-berço do escritor Fernando Namora
No final, aproveite para visitar a Casa-Museu Fernando Namora (1919-1989), a dois passos dos Paços do Concelho. Os livros, da autoria do escritor português, são o retrato literário das suas vivências, enquanto médico, na Beira Baixa, no Alentejo e, mais tarde, em Lisboa. A pintura comprova igualmente a sua enorme ligação às artes, sendo alguns dos seus quadros objecto constituinte da exposição patente ao público nesta que foi a sua casa, onde peças de mobiliário e alguns dos seus pertencentes fazem parte deste universo aberto todos os dias, das 10h00 às 13h00 e as 14h00 às 17h00.