A viagem pelos sabores de tão versátil região começa pelo mar, com o receituário piscatório e a arquitectura a ele aliadas, e as tradições que se querem perpetuadas no tempo.
Terça-feira, hora de jantar. O cheiro a asfalto molhado das chuvas, a anunciar o final do Verão, invade as ruas da Praia de Mira, no distrito de Coimbra, em sintonia com o silêncio. A contraponto está O Salgáboca, espelho da boa cozinha desta terra banhada pelo Atlântico, habitat natural de peixe e marisco, que protagonizam as sugestões da carta e a montra disposta na sala contígua à generosa garrafeira desta casa fundada em 2013.
Além de duas mãos cheias de entradas e de pratos de carne e de peixe na brasa, a tradição da comida de tacho continua a dar cartas.
A recomendação? Pitéu de raia. Este prato, em que a raia é servida com um molho feito à base dos fígados daquele peixe, é homenagem à arte xávega, arte piscatória preservada na Praia de Mira, isto é, o processo é igual, mas os métodos utilizados são bem diferentes.
Em tempos, uma pequena embarcação, munida de quatro remos, reunia cerca de 42 homens. “Entravam no mar, deixando uma parte da corda na praia e, depois, voltavam com outra corda, que era puxada com a ajuda dos bois”, descreve Martha Camarneira, representante do Museu dos Palheiros de Mira. Hoje, embarcam entre três a quatro pessoas, a força “motriz” dois remos é complementada pelo motor e as cordas são puxadas para terra com o auxílio de um tractor.
A história é contada no âmbito das habitações dos pescadores, cujos telhados eram feitos em estorno, uma espécie de palha muito comum nas localidades do litoral e que deu origem ao nome palheiros de Mira. Face à inconstância das marés, optou-se por construções com palafitas, isto é, os pescadores passaram a assentar as casas em estacas em madeira. Numa terceira fase, o estorno é substituído pela telha de canudo.
Mais tarde, os palheiros de Mira são constituídos por dois ou três andares, à semelhança da réplica construída de raiz, para instalar, em 1997, o Museu e Posto de Turismo Palheiros de Mira. Nele está patente, diariamente, ao público a avenida da Praia de Mira, maqueta representativa da memória viva concebida pelas mãos de três artesãos locais, entre outras estórias alusivas a esta temática que merece ser preservada, em nome de um passado coletivo, para as gerações vindouras.